A maioria dos biólogos insiste, com razão, sobre a importância da noção de necessidade como elemento determinante das condutas humanas. Não é de admirar que ela se encontre no próprio âmago dos comportamentos econômicos. A polivalência dessa noção e sua diversidade quase inesgotável tornam, contudo, a sua interpretação científica difícil. Com efeito, a necessidade é uma coisa que varia ao extremo, não somente segundo as civilizações, as sociedades e os grupos no tempo e no espaço, mas segundo os indivíduos, em cada instante da sua existência e segundo as circunstâncias em que se achem. Como apreender uma realidade tão particularizada e tão evanescente? Sabemos, com efeito, que não há ciência do individual, só o universal pode ser objeto de ciência. Não admira, portanto, que a noção de necessidade tenha sido o mais das vezes considerada pelos economistas antes como um postulado da pesquisa do que como um objeto da própria pesquisa. Fala-se constantemente da necessidade em economia e se a noção é indispensável para aclarar os fenômenos econômicos, raramente é ela própria aclarada.
Ademais, as necessidades econômicas, que são com toda evidência de ordem material, são, na sua realidade, indissociáveis das outras necessidades humanas de ordem afetiva, intelectual, espiritual, etc… Não existe homem algum sobre a terra que beba ou que coma como se fosse pura e simplesmente a sede de uma reação química.
Afinal, como medir adequadamente uma necessidade sem traí-la, sem fazer evaporar a sua substância essencialmente qualitativa? Ora, a economia moderna, como todas as outras ciências positivas, aliás, tende a tornar-se uma ciência do mensurável.
Achamo-nos pois em presença de um paradoxo epistemológico inaudito: a economia está fundada sobre uma realidade que lhe escapa. Daí por que se erigem ao redor dessa noção fundamental os mais diversos sistemas de interpretação. Desde sua origem, a ciência econômica está dilacerada entre os pólos extremos do “liberalismo” e do “coletivismo”, eles mesmos divididos, e os resultados de sua divisão constituem o objeto de inumeráveis misturas mais ou menos arbitrariamente dosadas. Podemos pois nos perguntar se a economia não está previamente submetida a uma opção inteiramente subjetiva por parte de quem trata de clarificar o seu conteúdo, sendo essa opção mais ou menos camuflada sob uma cortina de fumaça qualquer. A economia se torna assim o campo fechado de intermináveis disputas sobre as quais se enxertam as paixões individuais e sociais. Seu curso real na vida dos homens é abandonado a si mesmo ou submetido a intervenções exteriores à sua natureza por parte de quem possua um meio de poder capaz de influenciá-lo.
O objetivo desta nota é mostrar que é possível superar essa aparente contradição que faz da economia um conhecimento daquilo que ela não conhece. A nosso ver, esta possibilidade não se pode abrir ao nosso espírito senão se chegarmos a orientar para uma necessidade essencial e universal a multiplicidade incoerente e inapreensível das necessidades econômicas e outras. Ora, uma tal drenagem é espontaneamente operada pelo próprio homem, sujeito dessas necessidades diversas. Existe, com efeito, no homem, uma necessidade fundamental para a qual todas as suas outras necessidades convergem: a necessidade de ser feliz. Beatos nos omnes volumus, observava Cícero. E Pascal sublinha que “todos os homens querem ser felizes, mesmo aqueles que querem se enforcar”. A felicidade é o fim último de todas as atividades humanas, quaisquer que elas sejam, e se define como um estado no qual nada falta, em que todas as necessidades do homem estão saturadas. “Uma só coisa é necessária, escrevia com humor e profundeza Chesterton: tudo; o resto é vaidade das vaidades”.
Os Antigos haviam perscrutado intensamente essa noção de felicidade, cujo segredo perdemos. Quer se tratasse dos filósofos pagãos, como Platão e Aristóteles, ou dos pensadores cristãos, tais como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, por exemplo, há acordo entre eles para conceber a felicidade do homem no cumprimento pleno de suas faculdades especificamente humanas: a inteligência e a vontade, concebidas como encarnadas num corpo que, também ele, faz parte da essência do homem. Como a inteligência é superior à vontade, que não pode se exercer sem ela, e como ambas são por seu turno superiores à matéria, eles classificam as atividades humanas em três grupos hierarquizados: as atividades contemplativas, pelas quais a inteligência do homem se nutre de verdade e tenta conhecer a realidade até em seu Princípio último; as atividades ditas práticas, pelas quais a vontade esclarecida pela razão, se orienta para o Bem que a satura; as atividades ditas “poéticas” (do verbo poiein, que significa: fazer) pelas quais o homem transforma o mundo exterior de maneira a tirar dele as coisas necessárias à sua subsistência. A filosofia (ou teologia), a moral, a técnica são as mais típicas atividades do ser humano, sendo a terceira subordinada às duas primeiras e a segunda àquela que a precede. É na medida que seus objetos lhes faltam respectivamente que essas atividades se exercem e é na medida que esses exercícios se equilibram hierarquicamente que o homem chega tanto quanto possível à felicidade. Em relação ao homem, as duas primeiras atividades lhe são imanentes: ficam nele para aperfeiçoá-lo, ao passo que a terceira é uma atividade transitiva e passa para uma matéria que lhe é exterior para aperfeiçoá-la. Em relação a seu objeto, as duas primeiras são teocêntricas, enquanto a terceiro é antropocêntrica.
Como revela a história, a atividade propriamente técnica do homem se desenvolveu com lentidão até uma época que podemos fixar, de uma maneira que não é aproximativa, na Renascença. Não simplificamos as coisas em excesso dizendo que a técnica e a economia que dela resulta estagnaram até então: poucas invenções novas, uma produtividade quase sempre a mesma cada ano, uma situação que podemos qualificar de estática ou mesmo de penúria. Daí porque as atividades especulativas e práticas do homem se desenvolveram particularmente, por compensação: as necessidades espirituais, intelectuais e afetivas do ser humano foram mais saturadas do que as necessidades materiais.
Com a Renascença, assistimos ao fenômeno inverso: a técnica e a economia se separam pouco a pouco da moral e da filosofia (assim como da teologia) e adquirem a autonomia completa que lhe conhecemos hoje. Ao teocentrismo substitui o antropocentrismo. Surge o humanismo, e o homem, pela voz de Descartes, se proclama “mestre e possuidor da natureza”. Essa inversão da hierarquia das atividades engendrou uma série de invenções técnicas extraordinárias e, pela primeira vez na sua história, o homem passou de uma economia de penúria para uma economia de abundância, a qual, se ainda não se estende a todo o planeta, é contudo desejada, em graus diversos, nunca nulos, por todos os seus benefícios. Um dinamismo econômico sem precedentes substituiu a economia estática de outrora.
Ninguém pode negar que se trata aí de um enorme progresso: que a humanidade veja afastar-se o espectro da fome e dos conflitos engendrados pela escassez dos bens materiais não é certamente alguma coisa de negativo. Mas assim como toda medalha tem o seu reverso, todo progresso comporta uma contrapartida: um prego expulsa outro, diz o velho provérbio. Não somente a atividade técnica e econômica do homem moderno provocou uma série de “recaídas” cujos efeitos nefastos começamos a medir, mas sua expansão sem medida, privada de qualquer subordinação a fins superiores, está em vias de desmantelar o homem e amputá-lo de sua natureza propriamente inteligente e voluntária. A humanidade evolui para o “perfeito e definitivo formigueiro” que o gênio de Valery previa. Pela primeira vez em sua história, a economia, comandada por uma técnica que quer bastar-se a si mesma e ser o seu próprio fim, volta-se pelo avesso: em vez de produzir para consumir, o homem moderno está adstrito a produzir por produzir. Na economia atual, o pleno emprego e a expansão econômica contínua são considerados como objetivos essenciais, que é absolutamente necessário perseguir e atingir sob pena de desgraça. O produto nacional bruto em crescimento ininterrupto se torna o critério absoluto da saúde das nações e dos trabalhadores que são seus membros. Ora, é claro que não se pode empregar mais pessoas e aumentar cada ano a produção nacional (e internacional) a não ser se se consome mais os bens assim produzidos em excesso por produtores em excesso. A finalidade normal da economia está assim invertida. O homem deve consumir a fim de trabalhar. Sob nossos olhos surge uma sociedade chamada sociedade de consumo, que é na realidade, a conseqüência necessária de uma economia centrada essencialmente sobre os produtores, qualquer que seja o nível em que eles se situem. Nessa sociedade os consumidores são tratados como vacas gordas em período de prosperidade e como vacas magras em períodos de penúria. As necessidades dos consumidores se acham dessa forma subordinadas, senão sacrificadas, às necessidades dos produtores.
O divórcio das atividades técnico-econômicas com as atividades morais e especulativas do homem, a inversão da finalidade da técnica e da economia que esse divórcio provocou não acabou de perturbar o planeta. Não é exagerado pretender que a revolução permanente na qual a humanidade se mortifica ou, mais exatamente, a desordem em que ela está estabelecida e suas inumeráveis seqüelas em todos os domínios provêm dessa causa primeira, muito raramente percebida, mais raramente ainda analisada.
Entre todas aquelas que poderiam chamar aqui a nossa atenção, contentar-nos-emos em sublinhar a transformação profunda do papel do Estado. Sob a influência crescente de uma economia centrada sobre os produtores, grupos de pressão econômica se organizaram e não somente pesam com todo o seu peso sobre as decisões do Estado, mas fazem com que este abandone cada vez mais sua função essencial de gerente do interesse geral para tornar-se o servidor dos interesses particulares dos produtores. A natureza mesma da economia se encontra nele perturbada até aos seus fundamentos. Se é verdade, como dissemos mais acima, referindo-nos às evidências do bom senso mais elementar, que produzimos para consumir e que a saturação das necessidades do consumidor constitui a só e única finalidade da atividade técnico-econômica, o Estado moderno a reboque dos grupos de pressão vai consolidar cada vez mais a inversão da economia e fazer a sorte dessa correr ladeira abaixo. Ora, ele não pode fazer isso senão desviando a economia do domínio essencialmente privado que é o seu e socializando-a totalmente. Com efeito, uma economia a serviço do consumidor não pode ser senão privada, pois o consumidor de carne e osso é o único capaz de consumir os bens materiais que são produzidos e o mesmo consumidor individual é o único capaz de determinar as necessidades que ele aspira a satisfazer. A vontade do Estado substitui assim a sua e sua liberdade de escolher se esteriliza pouco a pouco em sua raiz material. O homem se torna cada vez menos livre em todos os domínios. Sua libertação em relação à natureza, que a técnica domou, tem por correlativo sua escravização à coletividade, ao Estado e ao poder dos grupos que dirigem o Estado.
Mas uma economia cuja finalidade funciona ao inverso custa muito caro, por definição: são necessários cada vez mais meios, e meios onerosos, para inverter seu curso natural. Assistimos assim a um espetáculo extraordinário: uma economia cujos instrumentos técnicos são incomparáveis e cuja produtividade é enorme, torna-se cada vez mais enferma. Um mal-estar difuso, que por vezes explode em crises monetárias imprevisíveis, se enrosca numa prosperidade econômica sem precedentes. Em vão essa economia ao avesso tenta criar novas necessidades. Como observa George Friedmann num livro recente, “a multiplicação anárquica das necessidades entretém o desequilíbrio e, por sua vez, é estimulada por ele”. Há aí um círculo vicioso em todos os sentidos da palavra. O dinamismo da economia não pode ser indefinidamente desviado de sua finalidade natural sem risco de explosão.
Eis porque a economia jamais foi tão poderosa e jamais foi tão frágil. Jamais ela foi tão capaz de ajudar os homens e jamais foi tão apta a privá-los de sua diferença específica e de fazer deles unicamente “trabalhadores”, perpetuamente adstritos a produzir… As atividades propriamente humanas correm assim o risco de desaparecer em benefício da atividade tão somente técnico-econômica desdobrando-se ao infinito…
Se queremos beirar as margens do ano 2000 com esperança, é-nos absolutamente necessário resolver o problema do homem colocado diante do fenômeno inédito do dinamismo da economia. É tempo, já é mais do que tempo. Este problema não pode ser resolvido senão com uma dupla condição: a economia deve ser restituída à sua finalidade natural e recolocada a serviço do consumidor, por um lado, e por outro ela deve ser reintegrada numa concepção do homem que subordine a atividade produtora e consumidora dos bens materiais à atividade moral e à atividade contemplativa do espírito. Por outras palavras, o poder deve ser religado à sabedoria.
A primeira condição será cumprida quando a economia se tornar de novo, ou simplesmente se tornar uma autêntica economia de mercado, em que os melhores produtores serão recompensados dos serviços que prestam pelas escolhas que os consumidores farão, e quando o Estado, em vez de ser arbitrariamente juiz e parte como é hoje em dia, for restituído ao seu papel de árbitro independente das forças concorrentes. A segunda condição será por sua vez cumprida quando a atividade econômica do homem for de novo enquadrada num sistema moral fundado sobre a ordem natural e quando o mercado for submetido a regras do jogo, quer dizer, reintegrado num clima de costumes tal que as condutas materiais do homem possam articular-se com suas condutas superiores: as estruturas jurídicas da economia poderão dessa forma prolongar o impulso da natureza humana para sua realização tão plena quanto possível.
Não dizemos que essas duas condições sejam fáceis de cumprir nas circunstâncias atuais, em que todas as atividades humanas são artificialmente viradas pelo avesso. O que dizemos simplesmente é que elas respondem à necessidade mais profunda do homem: a necessidade natural da felicidade. o que dizemos simplesmente é que o dinamismo da economia é para nós a ocasião, se ele for finalizado e portanto regulado, de realizar, tanto quanto possível, essa felicidade à qual o homem aspira.
Somos, pois, ajudados em nossa tarefa pela natureza e pela técnica. As razões de esperar não faltam, portanto. Além disso, natura malorum remedia demonstant, como diz o adágio médico. A nós cabe, pois, se somos razoáveis, se queremos as coisas tais quais são e tais como devem ser, espalhar essas razões fundadas na realidade ao redor de nós.
Não existe exemplo de uma empresa que, respondendo à necessidade mais fundamental do ser humano, não tenha assegurado, com o tempo, o triunfo.
(Traduzido e publicado por “Hora Presente”, no. 17 – dez / 74)
Fonte: Permanencia