“Lucerna pedibus meis verbum tuum et lumen semitis meis” (Sl.118, 105). Tua palavra, Senhor, guia meus passos e ilumina como um facho o meu caminho. Jurei ser-lhe fiel. Sim, a palavra de Deus, objeto e razão de nossa Fé é a luz que nos indica, como na história dos meninos perdidos na floresta, o caminho de volta à Casa do Pai. Essa lua, lumen fidei, é a mesma que um dia veremos em todo o seu esplendor de glória, lumen gloriæ, mas agora vemos apenas como brilho de estrela na escuridão. Ensinam os doutores que são a mesma verdade e a mesma luz o lume da Fé e o luzeiro da Glória. São Paulo Apóstolo (1 Cor 13, 12) para descrever a penosa condição humana diz que agora vivemos entre sinais e enigmas, mas não se tire daí que a Fé com que vivemos, e de que vivemos, têm em si mesma algo de enigmático e de vacilante: essas coisas são as sombras que a luz da fé, interposta por corpos opacos, projeta em nossas veredas. As vacilações e os aspectos fantásticos não vêm da vacilação da estrela, mas da sinuosidade das coisas que nos cercam, e as quais tantas vezes damos toda a nossa atenção. E então parece-nos que dança o facho, a palavra de Deus, quando somos nós mesmos que dançamos.
A Igreja, depositária da palavra de Deus, sempre nos ensinou essa perfeita continuidade entre os artigos de Fé, que desde os primeiros tempos os Apóstolos compendiaram, e os dogmas definidos com o crescimento da Igreja e fundados na mesma e imutável Revelação; como também entre essa doutrina mais desabrochada e o esplendor da Glória. A Fé é virtude peregrina, facho de viandante, mas a luz que o alimenta tem teor de eternidade: “In æternum, Domine, Verbum tuum permanet in cælo” (Sl 118, 89). E a lição prática que tiramos desses ensinamentos para o nosso dia a dia é a do valor infinito da sagrada doutrina da qual depende nossa vida eterna. Se é luzeiro que no caminho escuro nos guia para a casa do Pai, e se é luz que de Deus mesmo nos vem, logo se vê que não podemos trocar esse roteiro por outro qualquer, e que não podemos perder uma só de suas santas indicações, sem extravios de conseqüências infinitas.
Daí se tira o entendimento da santa intolerância da Igreja, como também se explica a gratidão que temos por essa intolerância, e que se traduz em zelo de ensinar aos que ignoram, de confirmar na fé os que vacilam, de corrigir os que erram e de denunciar os que induzem os outros em erros e confusões. “Só vós, Senhor, tendes palavras de vida eterna” (Jo 6, 68) disse Simão Pedro pelos apóstolos numa encruzilhada, numa hora de defecções numerosas. E achado esse critério decisivo, o da vida eterna, todas as vacilações se desvaneceram, e aqueles pobres homens, fracos como nós, permaneceram em Cristo, e Cristo neles permaneceu.
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Hoje, na maior crise da história da Igreja, com que tantos, inebriados de valores efêmeros, se alegram, o que se vê com infinita consternação é o desprezo pelas palavras de vida eterna, é o descaso pela exatidão dos roteiros que levam à casa do Pai, não apenas nas praças públicas e nos lugares em que os homens fingem que se alegram, mas nos próprios recintos onde as verdades da fé deveriam ditar uma santa e inflexível intolerância. Em nome de um humanitarismo de bastardos que se dizem irmãos mas renegam Pai e Mãe, muitos homens de Igreja dão exemplo de uma intolerável tolerância. Pretendem eles que, para melhor servir os homens, devem começar por desprezar o Pai, e por esquecer que Deus é o Senhor. E entre os descendentes dos Apóstolos, por uma misteriosa mutação espiritual provocada pelos geneticistas dos infernos, multiplicaram-se os descendentes de Judas. Pecadores somos todos nós, ai de nós! mas nossa Mãe Igreja há dois mil anos mantém a eterna juventude e o eterno vigor com que nos carrega, nos alimenta, nos ensina e se debruça para nos levantar quando caímos. Mas tantos traidores que lhe mordem o seio e cospem o seu leite, tantos Judas, tantas víboras, nunca em toda a história se viu. Estão aí em todos os paises do mundo, a mutilar os catecismos, a afrontar os pronunciamentos dogmáticos, a torcer as palavras, a deformar as proposições, a atenuar as arestas da Fé onde se sentem arranhados, a diminuir, a fazer abatimentos, a conceder tudo e mais alguma coisa a um Ídolo monstruoso, divindade fabulosa chamada: “Exigências do Mundo Moderno”.
E em torno desses perversos traidores adensa-se a multidão de tolos que gostam de saborear pelos ouvidos o prazer sensual das palavras de vida efêmera.
A tolerância ganha terreno. Cada dia nos trazem os jornais notícias de novos amolecimentos. Amanha ou depois, quando alguém reclamar, dirão que são os jornais que deturpam as notícias vindas de Roma. Mas então seria o caso de perguntar: não sabem em Roma os monsenhores que os jornais são assim feitos? Por que então multiplicar os departamentos de contato com a imprensa para distribuir notas e mais notas sem proveito nenhum para ninguém? Por que arrastar a Igreja para a atoarda das palavras de vida efêmera?
O resultado de tamanha confusão e tamanho alvoroço de publicidade é o que não podia deixar de ser: atordoamento para as palavras de vida eterna, obnubilação para o luzeiro que nos indica o caminho da Casa do Pai. Abastecedores do Inferno, os traidores da Igreja se apresentam como homens bondosíssimos, muito mais bondosos do que Nosso Senhor Jesus Cristo, que ousou falar em guerra, atreveu-se a elogiar um militar, não hesitou em usar o chicote, e a Judas que lamentava o esbanjamento triunfalista do óleo perfumado, dizendo que seria melhor vendê-lo e distribuir o dinheiro pelos pobres, respondeu dando razão ao desperdício e dizendo que pobres sempre os teremos…
“Orai e vigiai, disse o Senhor na sua hora de Agonia. E uma das principais vigilâncias que Ele nos pede é a custódia das palavras de vida eterna, é a vigilância das verdades da Fé. Na Ceia, no Sermão de despedida, e no Jardim das Oliveiras Jesus nos suplicou oração e vigilância. No ponto mais baixo de seu aprofundamento no mundo, no nível mais humilde de seu advento de misericórdia Jesus nos suplica gemendo: “Ficai aqui comigo e velai, minh’alma está mortalmente triste”. E depois: “Não pudeste velar comigo uma hora!” Esse gemido, essa súplica de nossa companhia, de nossa vigília saída da mesma boca que nos legou palavras de vida eterna, continuam a ecoar nas abóbadas da Igreja, como gemidos da Esposa, até a consumação dos tempos da Misericórdia e da Paciência de Deus, até o advento da Majestade de Deus. E então a voz do trovão e de abismo encherá o orbe:
“Já que bateste mãos e pés, e que vos saciaste de prazer vendo os males da terra: Eu estenderei a mão sobre vós, e vos entregareis como cativo às nações, e vos farei passar o fio da espada, e apagarei vosso nome entre os nomes dos povos, e vos exterminarei sobre a face da terra, e vos reduzirei a pó. E ENTÃO SABEREIS QUE SOU EU O SENHOR” (Ez 25, 1-7).
(Editorial da Revista Permanência, ano IV, N° 28-29, Janeiro-Fevereiro de 1971.)