Mas, para tratarmos agora, Veneráveis Irmãos, de cada um dos pontos que se opõem aos diversos bens do matrimônio, falemos primeiro da prole, que muitos ousam chamar molesto encargo do casamento e afirmam dever ser evitada cuidadosamente pelos cônjuges, não pela honesta continência (permitida até no matrimônio, pelo consentimento de ambos os cônjuges), mas viciando o ato natural. Alguns reclamam para si esta liberdade criminosa, porque, aborrecendo os cuidados da prole, desejam somente satisfazer a sua voluptuosidade, sem nenhum encargo; outros porque, dizem, não podem observar a continência nem permitir a prole, por causa das dificuldades quer pessoais, quer da mãe, quer da economia doméstica.
Mas nenhuma razão, sem dúvida, embora gravíssima, pode tornar conforme com à natureza e honesto aquilo que intrinsecamente é contra a natureza. Sendo o ato conjugal, por sua própria natureza, destinado à geração da prole, aqueles que, exercendo-a, deliberadamente o destituem da sua força e da sua eficácia natural procedem contra a natureza e praticam um ato torpe e intrinsecamente desonesto.
Não admira pois que, segundo atesta a Sagrada Escritura, a Majestade divina odeie sumamente este nefando crime e algumas vezes o tenha castigado com a morte, como recorda Santo Agostinho: “Ainda com a mulher legítima, o ato matrimonial é ilícito e desonesto quando se evita a concepção da prole. Assim fazia Onã, filho de Judá, e por isso Deus o matou” (Sto. Agost., De conjug., livro, II n. 12; cf. Gn 38, 8-10.).
Solene condenação
Por conseguinte, havendo alguns que, afastando-se manifestamente da doutrina cristã, ensinada desde o princípio e nunca interrompida, pretenderam publicamente proclamar, há pouco, doutrina diversa acerca deste modo de proceder, a Igreja Católica, a quem o próprio Deus confiou a missão de ensinar e defender a integridade e a honestidade dos costumes, posta no meio desta ruína moral para preservar de tanta torpeza a castidade da união nupcial, proclama altamente e de novo promulga pela Nossa boca: qualquer uso do matrimônio em que, pela malícia humana, o ato seja destituído da sua natural força procriadora infringe a lei de Deus e da natureza, e aqueles que ousarem cometer tais ações se tornam réus de culpa grave.
Por isso, em virtude da Nossa suprema autoridade e do cuidado da salvação de todas as almas, advertimos aos sacerdotes que se entregam ao Ministério de ouvir confissões, e todos os outros curas de almas, que não deixem errar os fiéis que lhes foram confiados em ponto tão grave da lei de Deus, e muito mais que se conservem eles próprios imunes dessas perniciosas doutrinas e que, de nenhum modo, sejam coniventes com elas. Se, porém, algum confessor ou pastor de almas, o que Deus não permita, induzir ele próprio nestes erros os fiéis que lhe foram confiados, ou ao menos, quer aprovando, quer se calando culposamente, neles os confirmar, saiba que tem de dar contas severas a Deus, Supremo Juiz, de ter traído a sua missão, e considere que lhe são dirigidas aquelas palavras de Cristo: “São cegos e guias de cegos; e, se o cego serve de guia ao cego, ambos cairão no abismo” (Mt 15, 14; Santo Ofício, 22 de novembro 1922).
Exageros
As causas por que se defende o mau uso do matrimônio são, não raras vezes, imaginárias ou exageradas, para não falarmos nas que são vergonhosas. A Igreja, todavia, como piedosa Mãe, conhece e sente admiravelmente tudo o que se diz a respeito da saúde da mãe e do perigo da sua vida. E quem poderá considerar esses perigos sem viva comiseração? Quem não sentirá a maior admiração ao ver a mãe oferecer-se, com heróica fortaleza, a uma morte quase certa, para conservar a vida ao filho que concebeu? Tudo o que ela tiver sofrido para cumprir plenamente o dever natural, só Deus, riquíssimo e misericordiosíssimo, lho poderá retribuir e lho dará certamente não só em medida cheia mas superabundante (Lc 6, 38).
Na ordem da natureza
A Santa Igreja também sabe perfeitamente que não raro um dos cônjuges sofre o pecado mais do que o comete, quando, por motivo verdadeiramente grave, admite a perversão da reta ordem, no que não consente e por isso não é culpado, contanto que, neste caso, se lembre da lei da caridade e não deixe de afastar e demover o outro do pecado. Nem se pode dizer que procedem contra a ordem da natureza aqueles cônjuges que usam do seu direito do modo devido e natural, embora por causas naturais, quer do tempo, quer de certos defeitos, não possa nascer uma nova vida. É que, quer no próprio matrimônio, quer no uso do direito conjugal, há também fins secundários, como são o auxílio mútuo, o fomentar o amor recíproco e o aquietar a concupiscência, que os cônjuges de nenhum modo estão proibidos de intentar, contanto que se respeite sempre a natureza intrínseca do ato e, por conseguinte, a sua subordinação ao fim principal.
O pretexto econômico
Penetram igualmente no íntimo do Nosso espírito os lamentos daqueles cônjuges que, oprimidos duramente pela falta de meios, têm gravíssima dificuldade para alimentar os seus filhos.
Mas devemo-nos acautelar cuidadosamente de que as deploráveis condições das coisas naturais dêem ocasião a erro muito mais funesto. Nenhumas dificuldades podem surgir que sejam capazes de levar à obrigação de derrogar os mandamentos de Deus, os quais proíbem os atos intrinsecamente maus, pois em todas as conjunturas sempre podem os cônjuges, com o auxílio da graça de Deus, desempenhar-se fielmente em sua missão e conservar no matrimônio a castidade, ilibada de tal mácula vergonhosa; porque é incontestável a verdade da fé cristã expressa pelo magistério do Concílio de Trento: “Ninguém deve pronunciar estas palavras temerárias, condenadas pelos padres com anátema: é impossível o homem justificado observar os preceitos de Deus — porque Deus não ordena coisas impossíveis, mas quando ordena adverte que faças o que possas e peças o que não possas e ajuda a poder” (Conc. Trid., Ses. VI, Cap. 11). Esta mesma doutrina foi pela Igreja solenemente repetida e confirmada na condenação da heresia jansenista, que tinha ousado proferir contra a bondade de Deus esta blasfêmia: “Alguns preceitos de Deus são impossíveis aos homens justos que queiram e procurem observá-los, segundo as forças que presentemente têm; e falta-lhes a graça que os torne possíveis” (Const. Apost. Cum occasione, 31 maio 1653, prop. 1).
As chamadas “indicações terapêuticas”
Mas devemos recordar ainda, Veneráveis Irmãos, outro gravíssimo delito por que se atenta contra a vida da prole escondida ainda no seio materno. Uns julgam que isso é permitido e deixado ao beneplácito da mãe e do pai. Outros, todavia, o consideram ilícito a não ser que haja gravíssimas causas, que chamam indicação médica, social, eugênica. Todos estes exigem que, no que se refere às leis penais do Estado, pelas quais é proibida a morte da prole gerada mas ainda não nascida, as leis públicas reconheçam a declarem livre de qualquer castigo a indicação que preconizam e que uns entendem ser uma e outros entendem ser outra. E até não falta quem peça que as autoridades públicas prestem o seu auxílio nessas operações assassinas, o que, ai! todos sabem quão freqüentissimamente acontece em certos lugares.
“Não matar”
No que respeita, porém, à “indicação médica e terapêutica” — para Nos servirmos de suas próprias palavras — já dissemos, Veneráveis Irmãos, quanta compaixão sentimos pela mãe a quem o cumprimento do seu dever natural expõe a graves perigos da saúde e até da própria vida; mas que causa poderá jamais bastar para desculpar de algum modo a morte direta do inocente? Porque é desta que aqui se trata. Quer a morte seja infligida à mãe, quer ao filho, é contra o preceito de Deus e a voz da natureza: “Não matar” (Ex 20, 13; Cf. Decr. Santo Ofício, 4 maio 1898, 24 julho 1895, 31 maio 1884). A vida de um e de outro é de fato coisa igualmente sagrada, que ninguém, nem sequer o poder público, terá jamais o direito de destruir. Insensatissimamente se faz derivar contra os inocentes o jus gladii, que não tem valor senão contra os culpados; também de maneira nenhuma existe aqui o direito de defesa até ao sangue contra o injusto agressor (pois quem chamará injusto agressor a uma criancinha inocente?); tampouco o chamado direito de extrema necessidade, que pode ir até à morte direta do inocente. Os médicos que têm probidade e ciência profissional louvavelmente se esforçam por defender e conservar ambas as vidas, a da mãe e a do filho; pelo contrário, mostrar-se-iam indigníssimos do nobre título e da glória de médicos aqueles que, sob a aparência de arte médica ou movidos de mal-entendida compaixão, se entregassem a práticas assassinas.
E tudo isto está plenamente de acordo com as severas palavras com que o Bispo de Hipona se insurge contra os cônjuges depravados que procuram evitar a prole e, não obtendo êxito, não receiam matá-la criminosamente. Diz ele: “Algumas vezes essa crueldade impura ou impureza cruel chega ao ponto de recorrer aos venenos da esterilidade, e, se com eles nada consegue, procura extinguir de algum modo no ventre materno o fruto concebido e livrar-se dele, preferindo que a prole morra antes de viver ou se já vivia no ventre seja morta antes de nascer. Sem dúvida, se ambos assim são, não são cônjuges; e, se tais foram desde princípio, não se uniram por matrimônio, mas por ilícitas relações; se, porém, ambos assim não são, ouso dizer: ‘ou ela é de algum modo meretriz do marido, ou ele adúltero da mulher’” (S. Agostinho, De nupt. et concupisc. c. XV).
Aquilo, porém, que se propõe acerca da indicação social e eugênica pode e deve ser tomado em consideração, contanto que se proceda de modo lícito e honesto e dentro dos devidos limites; mas, quanto a querer prover à necessidade em que se apóia com a morte dos inocentes, repugna à razão e é contrário ao preceito divino, promulgado aliás por aquelas palavras apostólicas: “não se deve fazer mal para que daí venha bem” (Cf. Rom. III, 8).
Aqueles, enfim, que têm o supremo governo das nações e o poder legislativo não podem licitamente esquecer-se de que é dever da autoridade pública defender a vida dos inocentes com leis oportunas e sanções penais, tanto mais quanto menos se podem defender aqueles cuja vida está em perigo e é atacada, entre os quais ocupam, sem dúvida, o primeiro lugar as crianças ainda escondidas no seio materno. Se os magistrados públicos não só não defenderem essas crianças mas, por leis e decretos, as deixarem ou até entregarem a mãos de médicos ou de outros para serem mortas, lembrem-se de que Deus é juiz e vingador do sangue inocente, que da terra clama ao céu (Cf. Gn 4, 10).
Proibições ilícitas
Convém, finalmente, reprovar aquele pernicioso costume que se refere proximamente ao direito natural do homem a contrair matrimônio, mas que de certo modo respeita também verdadeiramente ao bem da prole. Há efetivamente, alguns que, com demasiada solicitude dos fins eugênicos, não só dão certos conselhos salutares para que facilmente se consiga a saúde e o vigor da futura prole — o que não é, certamente, contrário à reta razão — mas chegam a antepor o fim eugênico a qualquer outro, ainda que de ordem superior, e desejam que seja proibido, pela autoridade pública, o matrimônio a todos aqueles que, segundo os processos e conjeturas da sua ciência, supõem deverem gerar uma prole defeituosa por causa da transmissão hereditária, embora pessoalmente sejam aptos para contrair matrimônio. E até pretendem que eles, por lei, embora não o queiram, sejam privados dessa faculdade natural por intervenção médica, e isto não como castigo cruento infligido pela autoridade pública por crime cometido, nem para prevenir futuros crimes dos réus, mas contra todo o direito e justiça, atribuindo aos magistrados civis uma faculdade que nunca tiveram nem legitimamente podem ter.
Todos aqueles que assim procedem esquecem malignamente que a família é mais santa que o Estado, e que os homens são criados primariamente não para a terra e para o tempo, mas para o céu e para a eternidade. E não é lícito, em verdade, acusar de culpa grave os homens, aptos aliás para o matrimônio, que, empregando ainda todo o cuidado e diligência, se prevê que terão uma prole defeituosa, se contraírem núpcias, embora de modo geral convenha dissuadi-los do matrimônio.
Sanções inadmissíveis
A autoridade pública, todavia, não tem poder direto sobre os membros dos súditos; e por isso nunca pode atentar diretamente contra a integridade do corpo, nem por motivos eugênicos nem por quaisquer outros, se não houver culpa alguma ou motivo para aplicar pena cruenta. O mesmo ensina S. Tomás de Aquino, ao estudar a questão de os juízes humanos poderem ou não ocasionar qualquer dano ao súdito para prevenir males futuros, o que concede quanto a outros danos, mas nega com razão no que respeita à lesão corporal: “Nunca ninguém deve ser castigado sem culpa pelo juízo humano com a pena de flagelo, a fim de ser morto, mutilado ou atormentado (Summ. Theolog. 2ª 2ae q. 108, a. 4, ad 2m).
Ademais, a doutrina cristã ensina e é certíssimo à face da luz da razão humana que os próprios indivíduos não têm outro domínio sobre os membros do seu corpo senão o que se refere ao respectivo fim natural, não podendo destruí-los ou mutilá-los, ou por qualquer forma torná-los inaptos às funções naturais, a não ser no caso em que não possa prover-se por outra forma ao bem de todo o corpo.
Trecho da Encíclica Casti Conubii, de S. S. Papa Pio XI