Qual será a causa profunda da doença mortal que corrói a civilização e que, por derrisão depois da leitura da página de Ibsen no artigo de quinta-feira, poderíamos chamar de fé na mentira vital?
Tomando o problema na perspectiva da causalidade formal, e renunciando por enquanto à pesquisa da causa eficiente e de sua localização histórica, diríamos que com a estranha subversão observável em qualquer fenômeno social, e mais claramente visível nos meios religiosos onde a corrupção do melhor se torna péssima, defrontamo-nos com uma forma de causação circular que podemos tomar pela subversão interior ocorrida no próprio centro de nossa personalidade onde se decide a opção de dois amores de si mesmo: o belo amor de si mesmo que se volta para Deus e nele se perde até o esquecimento de si mesmo e de todas as coisas do mundo que se oferecem ao nosso senhorio, e ao deleite de nos sentirmos sicut dii; ou então, o falso amor de si mesmo, que, voltado para as coisas exteriores e para o prazer sensível de sua dominação, nos leva até o esquecimento e o desprezo de Deus.
Já disse que esse amor de si mesmo é falso e, com esta qualificação irresistivelmente formulada, já formulamos a natureza e a forma da subversão, isto é, da falsificação fundamental da alma humana; o esquecimento de Deus produzido pela dispersão das virtudes e dons no múltiplo espetáculo das coisas do monumental mercado que nos inebria. Fundamentalmente, essencialmente, a alma que se afasta de Deus se volta para uma progressiva mentira. Perdida a luz que ilumina a verdade em cada coisa, a alma se compraz em inventar valores tirados da vontade própria que, num primeiro ato fundamental, deixa-se crer que se ama a si mesma, justamente quando a alma não sabe realmente o que ela é. Esta implicação de uma mentira no processo interno com que o homem afastado de Deus se contempla e julga amar-se quando trabalha por sua perdição, está magistralmente formulada por Santo Tomás de Aquino na questão em que pergunta “se os pecadores se amam a si mesmos de um vero amor”. Depois da habitual exposição das dificuldades e erros vigentes, Santo Tomás chega ao centro de gravidade do problema da integridade moral e psicológica do EU: “Unde non recte cognoscentes seipsos, non vere diligunt seipsos, sed diligunt illud quod seipsos esse reputant”. (lla llæ. q. XXV, a. 7) Poderíamos, com inevitável perda de sua admirável concisão, traduzir assim:“… então, não se conhecendo retamente a si mesmos, não podem verdadeiramente se amar a si mesmos, mas amam aquilo que eles mesmos pensam que são”.
Todos os tragicômicos equívocos da moderna “psicologia profunda” que, limitada ao subterrâneo das emoções é o menos profundo de todos os conhecimentos da alma, giram em torno dessa questão fundamental, que lhes escapa, ao psiquiatra e ao paciente, porque todos estão mergulhados na mesma mentira vital.
Mas até aqui estamos ainda no ponto de partida pessoal. Como passar daí para a multiplicação que nos dá, não apenas a subversão de uma alma, mas a subversão erigida em sistema, e tornada a forma de toda uma civilização?
O caso pessoal pela repetição e pelo contágio, em vez de achar nessa multiplicação uma advertência e um princípio de cura, acha precisamente uma intensificação da mentira e até um certo entusiasmo por uma bandeira de congraçamento. E então, passando a mentir e a falsificar em proporções planetárias, e em movimento acelerado, temos os últimos quatro séculos de civilização humanista. E agora, por um reflexo de ambiente circundante sobre cada contribuinte de tão espantoso patrimônio, processa-se em cada alma um reforço, uma confirmação de mentira que então se intensifica em movimento acelerado. Cabe aqui realçar uma analogia entre os movimentos espirituais e os movimentos materiais. Há na ciência física uma lei menor, dita também de Newton, que se exprime nesta singela fórmula: f = m.a e que, em linguagem vulgar se traduz assim: uma força constante (f) aplicada a uma massa (m) produz nela um movimento em que a velocidade cresce progressivamente segundo a aceleração (a).
Na mesma grande obra citada quinta-feira (Les Trois Ages de la vie Intérieure) e recomendada a todos os católicos que se acham sem direção espiritual porque seus pastores se inebriam de mentira abundantemente fabricada nas Conferências Episcopais, nas Conferências dos Religiosos, e nas demais usinas da falsa religião do homem que se fez Deus, Garrigou-Lagrange nos oferece uma bela passagem de Santo Tomás onde ele, antes de Newton, descobriu a mesma fórmula: quando o princípio atuante se mantém constante, o movimento que produz é acelerado, e por mais forte razão se acelera o movimento quando o móvel se aproxima da força que o atrai.
Em comentário à Epístola aos Hebreus (X, 25) Santo Tomás (citado por Garrigou-Lagrange na página 173, tomo I) diz que, ao contrário do que vulgarmente se pensa, o processo de santificação se torna mais vivo e mais acelerado à medida que a alma se eleva e mais se aproxima do Fim tão perseverantemente amado e desejado.
Mas a mesma lei de aceleração também se aplica àqueles que são perseverantemente movidos pela atração da terra. E isto nos faz tremer porque são abismais as expectativas que já se delineiam num mundo em que a gravitação de um falso princípio se mantém constante: as quedas de almas se processarão em movimento acelerado, e vertiginosamente acelerada será a decomposição de agremiações que se entregaram a falsos princípios todos os dias reafirmados em todos os tons. E os personagens envolvidos no turbilhão da mentira vital saem risonhos de suas reuniões, e publicam documentos falsíssimos onde pretendem convencer que lutam pelo mais puro amor pelos direitos do homem.
Que poderemos fazer para frear, ou até para deter e retificar este vertiginoso processo de causação circular acelerada? Evidentemente, o primeiro e imperativo dever que se impõe é o de não contribuir com sua quota de disparate e de iniqüidades. Na verdade, o problema é mais grave e mais exigente, e não basta abstermo-nos dos dízimos da mentira. Deus espera de nós não apenas a denúncia dos erros alheios, mas principalmente a purificação própria porque somente do Céu e da Cruz de Nosso Senhor poderá vir a energia capaz de salvar as almas do turbilhão comandado por Satã.
Trabalhemos em nossos corações, ou melhor, deixemos obedientemente que Jesus nele trabalhe, e procuremos, com a graça de Deus, glorificar a beleza de seus dons à revelia de um mundo que se gaba de autonomias e suficiências.
Sim, o que falta principalmente no mundo é um milagre de humildade coletiva, multiplicada, contagiada, propagada contra a peste negra da soberba que envenena as almas, as instituições e os regimes. Até quanto, meu Deus! devemos esperar esse milagre?
Gustavo Corção
O GLOBO, de 26/02/1977
Fonte: Permanencia