(NEO)CONSERVADORISMO – UMA IDEOLOGIA ATEU-REVOLUCIONÁRIA CAPAZ DE SEDUZIR OS CATÓLICOS

Leo Strauss [ crédito: http://leostrausscenter.uchicago.edu/ ] ORG XMIT: 354301_0.tif Retrato de Martinho Lutero (1483-1546) feito pelo artísta plástico Lucas Cranach. (Reprodução)

Fonte: Sì Sì No No, ano XXXIII, n. 19 – Tradução: Dominus Est

“Choque de civilizações” e neoconservadorismo

Na sequência dos acontecimentos internacionais deste início de milênio, uma corrente de pensamento chamou a atenção da opinião pública: o chamado “neoconservadorismo”, cujos principais intelectuais são os criadores diretos e indiretos das estratégias políticas e econômicas dos EUA.

No entanto, apesar do nome que foi dado a esse círculo intelectual, trata-se de uma escola de pensamento que carrega uma ideologia “ateu-messiânica” e um programa político “revolucionário-conservador” que hoje tenta e engana a muitos católicos.

O início do terrorismo islâmico-fundamentalista provocou um clamor no contexto católico tradicionalista – ou pelo menos conservador (os dois campos não coincidem perfeitamente) – em defesa de um “Ocidente” confundido com sua Cristandade perdida, ou com o que dele restaria e seria, portanto, digno de defesa a todo custo na perspectiva do iminente “choque de civilizações” de Samuel Huntington.

O que não foi compreendido por parte desses setores do catolicismo tradicionalista ou conservador é a falta de fundamento da tese huntingtoniana, segundo a qual, entre as diferentes civilizações que atualmente se confrontam no cenário mundial, a “euro-americana” constitui um “unicum” ou seja, a “civilização ocidental”. Na realidade, se devemos falar de um confronto, estamos, como veremos, diante de um confronto que é inteiramente interno ao chamado “mundo ocidental”. Trata-se do choque entre “a religião do Deus que se fez Homem e a religião do homem que pretende tornar-se Deus”. Com efeito, de um ponto de vista coerentemente católico, a passagem dos séculos, que desde a cristandade medieval nos levou através do interlúdio da Europa cristã dos séculos XVI-XVII até ao Ocidente global de hoje, não pode ser lida ignorando a grande ruptura protestante, que é a verdadeira raiz do Ocidente americanocêntrico.

A ruptura protestante e a apostasia do Ocidente

Entre os séculos XVI e XVII, o desenvolvimento histórico da Europa católica mostrou todos os sinais do que poderia ter havido uma modernidade diferente sem rupturas espirituais e históricas com o cristianismo medieval. Uma possibilidade histórica concreta que permaneceu irrealizada sobretudo devido à ruptura protestante. Com efeito, naqueles séculos o cenário da época centrava-se politicamente na hegemonia espanhola (da qual poderia ter surgido uma “universalização” de carácter católico muito diferente da atual anglo-protestante), culturalmente baseada na segunda escolástica da escola teológico-jurídica de Salamanca (a quem devemos o definitivo esclarecimento da doutrina católica sobre a naturalidade da comunidade política e sobre o direito internacional euro-cristão, elaborado por Francisco de Vitoria, Francisco Suàrez e S. Roberto Bellarmino), e religiosamente baseada sobre a Reforma Católica do Concílio de Trento. É sempre necessário ter presente a virada histórica ocorrida no século XVI para compreender que não existe qualquer continuidade entre o cristianismo e o Ocidente, porque, naquele alvorecer crucial da modernidade, a Europa infelizmente optou por virar as costas para a Igreja Católica e a repudiar-se como cristã, impedindo, portanto, o nascimento de uma modernidade diferente e levando à sua transformação no atual Ocidente apóstata, inevitavelmente destinado à implosão niilista.

No período entre 1550 e 1640 ainda existia uma cristandade e uma comunidade cultural euro-cristã. Mas tanto uma como outra foram esmagadas pela Reforma Protestante, pelo aparecimento das “Igrejas” nacionais, que foram um efeito do fechamento dos Estados absolutos à Autoridade espiritual da Igreja, e pela propagação, na onda da teologia luterana e da filosofia cartesiana, do subjetivismo e do individualismo. A virada histórica, marcada pelo período de meados do século XVI até meados do século XVII, perturbou a identidade cristão-católica da Europa precisamente no momento em que o velho continente tinha começado, nos cinquenta anos anteriores, a sua expansão planetária.

Por outro lado, a concepção maçônica e liberal, muitas vezes trocada no contexto católico-liberal pelo “humanismo cristão” (ou seja, aquela do croceano “porque não podemos deixar de nos chamar de cristãos”) e atualmente retomada em uma função pró-ocidental para justificar o “choque de civilizações”, mesmo pelos chamados “ateus cristãos”, como Giuliano Ferrara ou a falecida Oriana Fallaci, não vê soluções de continuidade na história europeia e concebe o Ocidente centrado nos EUA (ou seja, aquilo que hoje se define como “globalização”) como uma filiação legítima do cristianismo pré-moderno. Na realidade, esta filiação é um puro mito ideológico, porque ao longo do processo histórico que conduziu ao declínio da cristandade antiga e à ascensão paralela da hegemonia ocidental, houve, precisamente, a profunda ruptura da Reforma Protestante.

O legado de Marx

A pretensão última e essencial do ocidentalismo é aquela, de indubitável sabor “anticristão”, da realização mundana da promessa cristã de Redenção e Libertação da humanidade. Não foi apenas o marxismo que transpôs a Promessa do Reino da vida após a morte para o aqui e agora. Esta transposição indevida é também a essência do liberalismo, uma essência que hoje se manifesta mais claramente quando, em nome da globalização, é falsamente prometido à humanidade um futuro de pacificação e bem-estar planetário.

A partir de Lutero iniciou-se um processo de “deshelenização” do cristianismo, que constituiu a virada desastrosa na história europeia e ocidental. A ruptura protestante com a teologia católica produziu a falsificação liberal do direito natural, que foi pervertido na concepção do suposto fundamento contratualista (ou seja, subjetivista e utilitário) do direito e das formas políticas e sociais. Mas precisamente no início do novo milênio, no momento em que o Ocidente americanomórfico vive o seu momento de triunfo, a filosofia humanitária do Ocidente está a afundar-se no niilismo global.

Um exemplo típico da descontinuidade entre a cristandade europeia perdida e o Ocidente de hoje é-nos dado pela doutrina Wolfowitz/Rumsfeld/Rice da guerra preventiva, na qual muitos católicos acreditam poder ver a atualização da doutrina patrística sobre a “guerra justa”. Ao contrário disso, porém, a doutrina católica tradicional do “bellum iustum”, da guerra justa, que se refere imediatamente ao “ius” e, portanto, à lei, e só posteriormente, em última instância, também se refere à justiça num sentido ético, pressupõe algumas condições, como as da “extrema ratio”, do “mal menor” e da Autoridade internacionalmente reconhecida que a sanciona e delimita para negar a cada um dos Estados em conflito a possibilidade de se proclamar juiz da própria causa. Essas condições estão completamente ausentes na doutrina da guerra preventiva: o documento “A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América” [The National Security Strategy of United States of America] proclamou o direito histórico da América de usar preventivamente a sua superioridade militar sem qualquer limite legal e contra qualquer Estado ou organização que ameace os seus interesses e supremacia mundial. A doutrina católica da guerra justa prevê certamente a possibilidade de travar a guerra em defesa dos direitos dos outros, mas, para além deste caso particular, concebe a guerra principalmente como uma defesa legítima contra agressões injustas. A doutrina neoconservadora da guerra preventiva, contudo, simplesmente afirma o direito do mais forte a despeito da força da lei.

A doutrina neoconservadora sobre a guerra preventiva e unilateral manifesta uma carga subversiva radical semelhante à da doutrina internacionalista soviética, que declarou a União Soviética como representante de todos os trabalhadores do mundo, e como o único Estado legítimo face a todos os outros no mundo, que são em si ilegítimos porque são “Estados burgueses”. Esta analogia explica-se pelo fato de, como dissemos, a ideologia neoconservadora ser revolucionária e não “conservadora” no sentido clássico da palavra. Na verdade, o rótulo “conservative” é muito pouco adequado a uma nova direita ágil, sem escrúpulos, projetada em direção ao futuro, “nostálgica do futuro” e que deve o seu desejo de mudar o mundo, em vez de apenas contemplá-lo, ao seu legado “de esquerda”. Os neoconservadores certamente não são comunistas, mas são certamente intelectuais treinados em Marx. Suas origens remontam ao círculo dos “New York Intellectuals”, um grupo fundado na década de 1930 pelo teórico trotskista Marx Schachtman. A virada desses intelectuais do comunismo para o liberalismo ocorreu quando começaram a denunciar o antissemitismo que estava em voga na década de 1950 na União Soviética. Todas as figuras-chave da escola “neoconservadora” vêm da esquerda radical. Desiludidos com a esquerda, desde a década de 1950 a sua principal preocupação passou a ser o desenvolvimento e a defesa de Israel (mesmo quando isso significou governar contra os próprios interesses dos EUA ou pôr em perigo a paz mundial inteira).

O legado de Marx nos “neoconservadores” é claro. É a filosofia de Marx que sustenta que o mundo não deve ser interpretado, mas mudado através – acrescentou Trotsky – da “revolução permanente”. Prometeísmo puro e blasfemo que diz que é o homem, e não Deus, quem cria o mundo e faz a história. Os neoconservadores americanos são, portanto, “liberais que se chocaram contra a realidade”, isto é, intelectuais que passaram da utopia democrático-pacifista ao cinismo belicista na tomada de decisões, e na sua aspiração de mudar o mundo através da exportação universal do suposto “melhor dos sistemas possíveis”, ou seja, a democracia elitista americana. Aí encontramos não apenas um delírio jacobino, como observou Sergio Romano (um conservador inteligente e não um “neo”), mas também uma profunda harmonia filosófica com o antigo sistema de Marx, que atribuiu precisamente à filosofia a tarefa de transformar o mundo, renunciando às questões fundamentais sobre o ser e a existência.

Os neoconservadores americanos, nisto semelhantes aos “libertários” ou “anarcoliberais”, também tomam emprestada da filosofia de Marx a aversão absoluta ao Estado, mas não, como se dirá, o liberalismo autoritário. O Estado, com efeito, é entendido por eles como uma “superestrutura hegemônica” e é condenado porque com o seu limite territorial é um obstáculo a uma ordem econômica transnacional que entregue a humanidade, sob a hegemonia americana, não a uma modernização justa e equilibrada, que traz condições de vida dignas num bem-estar honesto mas modesto, mas sim ao sonho prometeico e milenar do “fim da história” e da “prosperidade global pacífica”. Este sonho, que já era típico do internacionalismo marxista, reapareceu hoje sob a forma da utopia liberal do mercado mundial e constitui, para aqueles que têm ouvidos para ouvir e olhos para ver, a nova versão da antiga promessa luciferiana auto-divinização humanidade (Eritis sicut Dei, Gen. III, 4). A ideologia neoconservadora é a alma do capitalismo hipercompetitivo e global, hoje hegemônico, que deslumbra o homem com o brilho das suas montras cintilantes, fazendo-o esquecer as realidades eternas e o seu destino final de salvação ou condenação.

O anti-estatismo neoconservador, contudo, não é uma mera negação anárquica do poder político em geral. Os “neoconservadores”, de fato, opõem-se sobretudo a essa forma moderna de Estado, isto é, ao Estado-providência, que historicamente, pelo menos na Europa e também sob a influência do magistério social católico, conseguiu estancar, redistribuindo pelo menos em parte entre as diferentes classes, a riqueza produzida, o conflito social desencadeado pelo moderno processo de industrialização, isto é, pela descristianização dos antigos modos de vida e de trabalho cristãos, comunitários e corporativistas, inspirados no princípio da solidariedade e o cuidado com o bem comum, ignorado pelo liberalismo.

Na esteira da desestruturação do Estado nacional e social promovida pelo pensamento neoconservador, emergiu uma economia “niilista”, que se expressa na destruição do trabalho estável e na dominação global das finanças anônimas e especulativas, que por sua vez cresceram em torno da moeda criada ex nihilo pelos bancos centrais, num impulso que simula o Poder de Deus.

O uso instrumental de religião e tradição

Típico da ideologia neoconservadora é o uso instrumental dos “valores religiosos” e das “raízes identitárias”. Valores e raízes são usados ​​pelo neoconservadorismo para acender o fogo planetário do “choque de civilizações”.

Os principais expoentes da escola neoconservadora, como já foi dito, vêm da esquerda americana. Abandonaram as utopias humanitárias e pacifistas e redescobriram o pensamento conservador americano, atualizando o seu conteúdo com as contribuições da antropologia negativa e do decisionismo emprestados do pensamento de Carl Schmitt na sua fase pós-católica, na qual o grande velho da ciência jurídica europeia do século XX margeou, como um “Epimeteu cristão” (como ele próprio reconheceu depois da guerra), o movimento e o regime nazista. A uma “esquerda liberal”, projetada para a dissolução libertária, os “neoconservadores” opõem a necessidade de uma refundação conservadora da sociedade que atualize as suas raízes tradicionais. Ora, se no catolicismo tradição significa combinar ética e sociabilidade num complexo no qual tout se tient, da família natural à caridade, da sacralidade do casamento à justiça social, da dignidade humana (desde a concepção) ao amor para com os pobres, no mundo americano “tradição” é o mais rígido puritanismo (o arcaico “olho por olho, dente por dente” do Antigo Testamento, o ascetismo profissional mundano, o sucesso social como sinal de eleição, a pobreza um sinal de condenação, etc.).

Os “neoconservadores” partem de uma análise parcialmente correta da crise do mundo moderno. Esta análise parte do evidente fracasso histórico do progressismo e da utopia do novo mundo que, até há poucas décadas, era a crença gnóstica, numa versão progressista, da modernidade. Contudo, o ponto fraco e a natureza contraditória do pensamento “neoconservador” reside em ignorar a ligação entre o liberalismo e a crise niilista em que o Ocidente se debate. De acordo com Peter Steinfels, os “neocons são inquestionavelmente liberais”. Para dizer a verdade, eles são os coveiros do liberalismo, porque o seu pensamento representa o inevitável resultado niilista do liberalismo.

Em uma época como a atual, em que a democracia liberal é um ídolo a exportar para todo o mundo e em que até os ditadores se definem como democratas, é evidente que os “neoconservadores” não podem apresentar-se abertamente como iliberais ou anti-liberais. Eles, portanto, fazem do liberalismo a sua própria tendência “conservadora”, da qual concretizam todo o potencial niilista ainda não expresso. A qualificação de “neo” indica simplesmente o esforço para reelaborar o liberalismo conservador numa chave pós-moderna, cujas raízes residem no pensamento religioso e filosófico anglo-saxônico dos séculos XVII e XVIII.

Como observou Shelton Wolin, o liberalismo conservador americano surgiu e se desenvolveu a partir das ideias de John Locke. A doutrina lockeana é um conservadorismo social que casa com o liberalismo político, ao combinar valores tradicionais com o individualismo comercial. Desta união de tradicionalismo e individualismo surge um tipo conservador de liberalismo. O catalisador desta união foi o protestantismo, particularmente na sua forma puritana.

O pensamento “neoconservador”, apesar de criticar os resultados niilistas do Ocidente, visa conciliar a ética tradicional, que nos Estados Unidos não é a católica mas a do rigorismo puritano, com o liberalismo mercantil, sem perceber a estreita ligação existente entre o liberalismo e o subjetivismo teológico, filosófico e ético que, a partir de Lutero e Descartes, envenena a cultura ocidental. O liberalismo que, enquanto individualismo econômico revela-se um subjetivismo social, nasceu sobre o pressuposto do subjetivismo teológico protestante, de modo que a cegueira dos neoconservadores sobre a relação causa-efeito entre um e outro denota a aporia essencial desta escola de pensamento. Os “neoconservadores”, de fato, lamentam a deriva niilista da sociedade ocidental no mesmo momento em que proclamam que querem restaurar o mercado na sua pureza liberal, limpando-o de todos os limites e condicionamentos que lhe são impostos pelo Estado por necessidades políticas e/ou sociais. Esta pretensão, segundo a qual o anti-niilismo coincide com a “pureza” restaurada do mercado, constituindo quase uma premissa, faz um uso puramente instrumental da tradição religiosa e nacional, porque, na realidade, não acreditam em qualquer sobrenatural.

Esta união entre “Deus e o Mercado”, de modo que o primeiro se torna um ídolo teológico para justificar o segundo, se é natural no contexto puritano, é contudo impossível, sem profanar a Tradição, no contexto católico. Os “neoconservadores”, por um lado, na esteira do conservadorismo clássico, condenam o economicismo de Marx, que faz dos “valores tradicionais” uma função da economia, mas, por outro lado, restringem o niilismo a um fenômeno relativo apenas a questões éticas e não reconhecem-no como a manifestação última do subjetivismo, teológico e filosófico, que é também a essência do liberalismo. Os “neocons” acreditam que a “civilização ocidental”, que eles assimilam sic et simpliciter aos Estados Unidos da América, está hoje ameaçada pelo niilismo ético, mas negam que a raiz primária deste niilismo se encontre no subjetivismo teológico protestante, que é a essência da religião americana.

Os “neocons” não percebem que o relativismo ético no plano moral corresponde ao relativismo social no plano sociológico. Aliás, não foi por acaso que o relativismo social explodiu sob a forma de precarização do próprio trabalho quando o liberalismo, após a queda do comunismo, triunfou. À flexibilidade das escolhas morais que dissolve todos os laços familiares, tornando-os absolutamente revogáveis ​​e temporários, corresponde simetricamente, na sociedade ocidental liberal, à flexibilidade das opções sociais que dissolve todos os laços comunitários, tornando todas as relações humanas, mesmo as políticas de cidadania e de produtividade do trabalho, meras relações de prazo determinado. E se é verdade que o relativismo ético precedeu o relativismo social, isto significa apenas que o primeiro, resultado dos protestos de 1968, abriu o caminho para o segundo. Augusto Del Noce, o mais famoso filósofo católico italiano do século XX, que foi justamente definido como o “anti-Bobbio”, quando criticou a permissividade moral da sociedade neoburguesa pós-1968, vendo surgir o “totalitarismo da dissolução” dela, que ele temia uma maior capacidade de dominação do que os seus antecessores hitleristas e estalinistas, pretendia referir-se precisamente à ideologia liberalista agora adoptada pelos neoconservadores. Augusto Del Noce não era de forma alguma um católico liberal; na verdade, ele não hesitou em identificar no liberalismo a própria essência da fase profana da secularização, ou seja, da pós-modernidade. O filósofo de Turim não tinha dúvidas sobre o fato de o relativismo ético e o relativismo social serem duas manifestações contextuais e paralelas do niilismo anticristão, que é a verdadeira doença do Ocidente liberal.

O pai “esotérico” do neoconservadorismo e suas antecipações em Lutero

“O engano perpétuo dos cidadãos pelos dirigentes no poder é indispensável, uma vez que os primeiros precisam de ser dirigidos e precisam de autoridades fortes que lhes digam o que é melhor para eles… estão aptos para os cargos de direção aqueles que perceberam que não existe moralidade e que existe apenas um direito natural, aquele do superior para orientar o inferior… Queremos uma população maleável que possa ser moldada como massa”[1]. Assim foi resumido o pensamento de Leo Strauss (1899-1973), o filósofo judeu alemão-americano, pai “espiritual” dos neoconservadores americanos, pelo maior especialista no assunto, Shadia B. Drury, professor da Universidade de Calgary, no Canadá, e autor de notáveis ​​estudos sobre o assunto.

Conhecido apenas pelos iniciados, devido à sua vida passada “nos bastidores” preparando estudantes de filosofia para um futuro seguro em posições de destaque político, econômico e universitário, Leo Strauss também adquiriu uma certa notoriedade junto de um público mais vasto ao acompanhar o surgimento da “seita” neoconservadora, cujos principais expoentes, quase todos de origem judaica, eram seus alunos, mesmo depois dos anos universitários. Nascido na Alemanha, Leo Strauss viveu o clima incandescente da República de Weimar e foi forçado a abandonar o seu país natal com o advento do nazismo para se refugiar nos Estados Unidos da América. No período Weimeriano foi aluno de dois dos principais expoentes da Revolução Conservadora Alemã: Carl Schmitt e Martin Heidegger. Imerso no mesmo clima espiritual e político em que Carl Schmitt se inspirou para a teorização do decisionismo e da conflitualidade essencial da política, incluindo a política internacional, Leo Strauss acabou por se apropriar das teorias do mestre. Tal como a versão não mais católica, mas hobbesiana, de Carl Schmitt, Strauss opta por uma antropologia negativa e faz dela a base para a interpretação da realidade humana e social. O que fascina Strauss na teoria de Schmitt é, sem dúvida, a dicotomia “amigo-inimigo” que Carl Schmitt coloca na base da Política. Ou melhor: é a antropologia negativa, o pessimismo antropológico, que está por trás daquela dicotomia que fascina o jovem Leo Strauss.

Ao começar por Samuel Huntington, com a sua teorização do “clash of civilizations”, os neoconservadores também adotaram a ideia de um “inimigo absoluto”, “metafísico”, com o qual não é possível a coexistência, mas apenas a guerra perpétua, visando o aniquilação implacável do inimigo. Esta ideia baseia-se no pessimismo antropológico que Carl Schmitt tomou emprestado de Hobbes (“homo homini lupus”), mas que anteriormente era do próprio Lutero. Esta concepção de Política como área de conflito perene está completamente divorciada da concepção católica tradicional, de derivação aristotélico-agostiniana-tomista, que se identifica, pelo contrário, no princípio do Bem Comum, e portanto na amizade e na sociabilidade natural do homem, verdadeiro e autêntico fundamento da Comunidade Política, num quadro em que o conflito é apenas o resultado, sempre presente mas inautêntico, do pecado original que o Amor de Cristo apaga apesar da persistência das tensões resultantes do pecado original.

A antropologia negativa, ou seja, pessimista, sempre tem o absolutismo político como seu corolário inevitável. Strauss, através da mediação de Carl Schmitt, torna sua a crença hobbesiana de que “Auctoritas, non veritas, facit legem” (é a autoridade, e não a verdade, quem faz a lei). Mas antes de Hobbes foi Lutero quem reduziu a Política a um mero exercício de força bruta a partir do princípio da metafísica gnóstica, acolhida por ele, da “dupla verdade”, a teológica e a filosófica (um princípio completamente em desacordo com a escolástica e a patrística católica). Com base neste princípio errôneo, Lutero concluiu que é necessário tomar nota da separação intransponível entre a ordem espiritual, ou seja, o mundo interior do homem (que, no entanto, ele, de maneira reducionista, faz com que não corresponda à “alma espiritual” da Revelação, mas à “psique” no sentido subjetivo) e a ordem política exterior. Uma oposição radical sobre cuja premissa Lutero afirma que a moralidade nada pode fazer na ordem política, muito menos fazer prevalecer um princípio ético de justiça. A Política permanece, em Lutero, sempre e em qualquer caso dominada pelo jogo bruto da força e dos poderes materiais. Para Lutero, que nisso antecipa Nietzsche, Marx e Darwin, como o mundo é apenas caos e luta pela supremacia, torna-se inevitavelmente necessário confiar no poder absoluto do Príncipe, que sabe usar a força com a mais cruel maldade para refrear os instintos bestiais da natureza humana corrupta (para Lutero, o pecado original corrompeu irremediavelmente o homem, enquanto para a Tradição Católica apenas feriu e não corrompeu a natureza humana).

Há em Lutero mais de uma antecipação do pensamento de Leo Strauss: releia a citação de Shadia Drury. A concepção já luterana da lei como instrumento utilizado pelos líderes para impor a ordem, no exato momento em que eles, conscientes de sua instrumentalidade enganosa, permanecem completamente “livres” dela, é fundamental na concepção político-filosófica de Leo Strauss para o qual, niilisticamente, a criação e a existência humana são absolutamente sem sentido. De fato, também através da lição de Nietzsche e na esteira da filosofia gnóstica de Heidegger, Strauss passou a desprezar não apenas todo o otimismo metafísico, mas também todo o realismo e, portanto, também o realismo católico que, embora não negue a realidade do mal e do pecado, afirma a bondade das criaturas (“E Deus viu todas as coisas que tinha feito, e eram muito boas” Gen. I, 31) e a Redenção do pecador. Do contrário, a exaltação de tudo o que há de tirânico, de mau, de bestial no homem, e da guerra como base e fim da existência, é exatamente o que Strauss admira no pensamento de Nietzsche e em toda a tendência do pessimismo metafísico até Lutero, Hobbes e Maquiavel. Para o filósofo judeu-alemão, a suposição cristã de que “o ser é melhor que o nada” é falsa e ilusória. Através da filosofia nietzschiana, Strauss também perverte a filosofia platônica para afirmar a instrumentalidade dos “valores” para fins de poder, que ele reduz a meros “mitos” bons para as massas inconscientes e beócias.

A “dupla verdade”

Para Strauss, também seguidor da filosofia de Maimônides, a doutrina gnóstica da “dupla verdade” assume importância crucial. A verdade esotérica (oculta) consiste no conhecimento do segredo que sempre esteve oculto, nomeadamente que “a única verdade é o nada”, e deve ser reservado apenas para aqueles que são capazes de suportar o seu peso. A verdade exotérica (pública) consiste na religião e nos “valores morais naturais” (Deus, pátria, família) e deve ser permitida às massas, necessitadas de mitos e crenças religiosas. O filósofo autêntico, iniciado na verdade “niilista”, deve, à maneira de Maimônides, desprezar as crenças oficiais enquanto simula a adesão pública e formal a elas. De fato, o filósofo autêntico será capaz de usar a religião e os “valores morais” para mobilizar as massas em torno de um projeto político de ordem interna e de prestígio nacional no mundo. Em suma, Strauss propõe o uso instrumental da fé e a redução da religião a “ópio do povo”.

O apelo straussiano aos ‘valores morais naturais’ “não deve enganar — escreveu Matteo D’Amico — porque de um ponto de vista metafísico Strauss é um nietzschiano, um niilista radical, assim como as matrizes judaicas do seu pensamento (Maimônides e Spinoza) inclinam-se para uma ‘visão ateísta da fé’ (é por isso que não é raro encontrar neoconservadores que se definem como ‘ateus devotos’ ou ‘ateus cristãos’: este já era o segredo bem guardado do mestre). A religião, os valores morais, as grandes categorias políticas e o valor original da vida humana devem ser apresentados como ‘absolutos’ para uso da população não iniciada, da massa de sujeitos seculares, incapazes de um uso responsável da liberdade, como em vez disso o são os poucos ‘guardiões’, os poucos pneumáticos que viram o lado noturno da história e sabem que nada faz sentido e que tudo é mito e acaso, e que um fino véu esconde a escuridão e a violência que ardem no coração do mundo. Portanto, coerentemente com o quadro (pseudo) platônico de sua concepção de política e história, Strauss lê a fundo ‘A República’ e ‘As Leis’… e a partir do primeiro diálogo citado retoma a terrível passagem da ‘nobre mentira’, um dos lugares mais polêmicos da filosofia política do grande filósofo ateniense, atualizando-a: na verdade, já que na concepção de Strauss apenas alguns poucos selecionados, os ‘aristòi’, os melhores por natureza, têm a capacidade de ver a face secreta do ser e a sua negatividade original… eles, ou melhor, os ‘guardiões’, têm o dever de afetar — ou pelo menos de encenar com grande convicção — se não a fé, ao menos uma forte simpatia por ela e seus valores, porque só a religião é capaz de estabilizar o quadro político e funcionar como um eficaz ‘instrumentum regni’, restringindo o relativismo inerente ao moderno democratismo e liberalismo de base jacobina e fornecendo a matéria-prima para uma ‘theologia civilis’ ancorada em valores ​​que afirmam se passar por transtemporais”[2].

Strauss está ciente de que o Ocidente nada mais é do que a secularização humanista do cristianismo e que, portanto, é um projeto político de “restauração niilista da vida associada”, de “reencanto ideológico do mundo”, um projeto inteiramente destinado a simular a fé numa Transcendência na qual na verdade os líderes nacionais não têm fé, e que não pode ter sucesso senão através da manipulação midiática do próprio cristianismo a fim de controlar e mobilizar as massas e a opinião pública e colocá-las a serviço de um restrito grupo intelectual iniciático. Ele propõe a mesma “demonia do sagrado” (aplicada, porém, ao cristianismo) que viu agir sobre os jovens na Alemanha Nacional Socialista com as massas entusiasticamente mobilizadas pelas paraliturgias políticas do regime. Um projeto claramente blasfemo, que simula de maneira anticristã o cristianismo, concretizando o “Estado civil e eclesiástico” que Hobbes identificou no Leviatã. Ora, a verdadeira face da ideologia neoconservadora foi mostrada por Michael Leeden, tirando a máscara da hipocrisia moral-humanitária, na edição de dezembro de 2001 da American Enterprise, a conhecida revista conservadora: “A destruição criativa é o nosso segundo nome, dentro e fora da nossa sociedade. Destruímos a velha ordem todos os dias, desde os negócios à ciência, à literatura, à arte, à arquitetura e ao cinema, à política e ao direito. Os nossos inimigos sempre detestaram este turbilhão de energia e criatividade que ameaça as suas tradições (quando existem) e os culpa pela sua incapacidade de os acompanhar. Ao verem a América destruir as sociedades tradicionais, eles temem-nos porque não queremos ser destruídos. Eles não podem se sentir seguros enquanto nós estivermos lá (…). Para sobreviver, eles devem atacar-nos, assim como devemos destruí-los para avançar a nossa missão histórica.

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O perigo da ideologia neoconservadora reside na sua capacidade de seduzir bons católicos através da defesa simulada que faz dos “valores” da “ética natural”, da fé e da presumida identidade cristã do Ocidente moderno. É precisamente este aparente “anti-relativismo” que seduz os católicos, especialmente se eles têm uma tendência tradicionalista ou conservadora.

Os bons católicos, fascinados pela denúncia neoconservadora do relativismo ético e de suas políticas “pró-vida”, acabam por não perceber que estão sendo explorados segundo o plano político straussiano que inspira os “neocons” americanos. É absolutamente necessário que os católicos separem e distingam com força e clareza cristalina a denúncia sinceramente católica do “relativismo” daquela instrumental e ateísta dos neoconservadores americanos e dos seus imitadores italianos, como Marcello Pera, Giuliano Ferrara e a falecida Oriana Fallaci.

Catholicus fidelis

Notas

  1. Cf. S. Drury “The Esotheric Philosophy of Leo Strauss; citato da E. Ratier “Ritratto di Leo Strauss” in Alfa e Omega n. 3, 2005.
  2. Cf. M. D’Amico “Da Weimar alla nobile menzogna – radici culturali dell’ideologia neocon”, in Alfa e Omega n. 3, 2005