Mas conviria tratar um objeto tão mavioso em presença duma geração a quem o trovão da divina vingança e os estilhaços do raio dificilmente despertam do seu letargo?
Monsenhor Malou, Bispo de Burges, respondendo a um amigo, escrevia-lhe:
“Acabo de ler o opúsculo No Céu nos Reconheceremos. Pergunta-me o que penso a seu respeito. Todas as obras que tratam do Céu, da sua felicidade, da sua eternidade, etc., causam-me muito prazer, porque são estas que em nossos dias produzem nas almas o maior bem. Outrora recolhiam-se maiores frutos, ao que parece, falando da Morte, do Juízo e do Inferno. O temor tinha então mais poder do que o amor. Hoje o amor é mais poderoso para converter os corações.
É, pois, o amor que convém inspirar, não só para firmar os justos, mas também para converter os pecadores.
O objeto de que trata este livro é cheio de interesse. Responde a uma pergunta que as pessoas piedosas nos dirigem repetidas vezes: ‘Reconhecer-nos-emos no Céu?’ Sim, certamente, reconhecer-se-ão reciprocamente as almas e se amarão, e este amor fará parte da felicidade acidental do Céu. Segundo a minha opinião, o autor é exato e nada exagera. Se tem algum defeito, é, talvez, o de não ter esgotado o assunto de que se propôs tratar.”
O autor diz que o sábio prelado entra, depois disto, em considerações que lhe teriam sido dum grande auxílio se quisesse tratar este assunto debaixo doutro ponto de vista e com mais extensão; mas que, por uma parte, pessoas muito autorizadas o aconselharam a conservar neste opúsculo a sua primitiva filosofia; e que, por outra, a nobre senhora, a quem foram dirigidas estas cartas de consolação, tinha rendido naquela ocasião a sua bela alma a Deus, e que por isso lhe não era permitido acrescentar novas cartas às antigas, mas que unicamente lhe parecera conveniente completar estas, porque junto às orações que vão no fim deste opúsculo, lhe aumentarão muito interesse.
Em seguida, discorre sobre as considerações de Monsenhor Malou, e diz por conclusão, que quase todas estas provas se acham melhor desenhadas, mais claramente enunciadas, e têm ao mesmo tempo mais desenvolvimento e precisão nas seguintes páginas do mesmo ilustre prelado:
“A sociedade dos santos, me dizia eu, constitui a Jerusalém Celeste, a Santa Sião, a cidade de Deus. Mas uma cidade tem os seus magistrados e seus príncipes, assim como os seus cidadãos. Supõem, entre as pessoas que a compõem, relações de superioridade e de subordinação na ordem moral, relações que não podem existir sem mútuo conhecimento”.
“A sociedade dos santos é a família de Deus; família espiritual, transportada da Terra ao Céu, família de que Maria é ainda Mãe e distingue seus filhos muito amados. Ora, pode conceber-se uma família cujos membros não se conheçam entre si? Poderá acontecer que os filhos conheçam seu pai e sua mãe, sem que os irmãos e as irmãs tenham relações fraternais?”
“A sociedade dos santos forma uma hierarquia celeste, à imitação da dos anjos, se todavia se não confunde”.
Ora, nós sabemos que os anjos se conhecem entre si, visto que as ordens superiores iluminam as inferiores, e que todos se auxiliam mutuamente em louvar, bendizer e adorar o Deus três vezes santo.
Os bem-aventurados obrarão da mesma forma, e visto que os santos anjos os conhecerão como substitutos dos anjos caídos, eles também conhecerão os anjos, e se conhecerão reciprocamente.
“Além disto, não é a Igreja Militante uma, ainda que imperfeita, imagem da Igreja Triunfante? Sendo assim, como é na realidade, a Igreja Triunfante conservará, pois, em seu seio o selo – permita-se-nos a expressão – da Igreja Militante.
Quero dizer que a ordem e harmonia que reinam cá na terra entre os filhos de Deus, a fim de se prepararem para a felicidade do Céu, passarão com eles à habitação dos escolhidos.
Assim, os pastores se encontrarão no Céu à frente dos seus rebanhos; os bispos à frente dos fiéis das suas dioceses; os Soberanos Pontífices à frente de toda a Igreja Católica; os Patriarcas das Ordens Religiosas à frente de suas famílias espirituais e de todos aqueles que seguiram a sua regra, trouxeram o seu hábito e imitaram o seu exemplo.
Mas esta ordem e esta harmonia repousam sobre o conhecimento recíproco das pessoas, e sobre as relações da ordem moral que, sem conhecimento recíproco, são impossíveis.
A mesma natureza da bem-aventurança celeste fornece, a este respeito, provas irrefutáveis.
Esta bem-aventurança repousa completamente sobre a visão beatífica, isto é, sobre a vista intelectual da Divindade.
E que é a vista intelectual senão o conhecimento e a ação do espírito? O desenvolvimento e a ação da inteligência será, pois, de alguma sorte, a medida da felicidade do Céu.
A felicidade resulta, é verdade, do amor; mas este é necessariamente proporcionado ao conhecimento que se tiver do objeto da sua felicidade. Não se ama o que se ignora, e ama-se infinitamente o que se conhece como infinitamente amável.
A inteligência é, pois, a faculdade pela qual os bem-aventurados apreendem e se apossam da felicidade; e poderia supor-se nos escolhidos uma completa ignorância de tudo o que os rodeia e interessa no mais alto grau?
Poder-se-á crer que gozem do conhecimento da essência de Deus, e que nesta essência não contemplem os gozos que dela tiram os outros bem-aventurados? Isto é inteiramente impossível. O poder que adquiriu o seu espírito para contemplar a Divindade, origem de toda a felicidade, auxilia-os poderosamente a conhecer aqueles a quem a essência divina beatifica e enche de felicidade. Não gozam somente do raio de luz que os põe em contato com a Divindade, mas também do oceano de claridade que os inunda e põe em relação com todas as felicidades do Céu.
“Ainda que a felicidade essencial dos escolhidos consista na visão e posse da essência divina, todavia sua bem-aventurança completa-se e acaba-se, se assim posso falar, pelo conhecimento que adquirem da felicidade dos amigos de Deus”.
No Céu, como na Terra, Deus recebe não somente homenagens isoladas, mas também coletivos louvores de todos os seus filhos reunidos.
Demais, por que no Céu estas auréolas ou sinais particulares de virtude e de glória? Por que trarão os mártires, as virgens, os confessores, os doutores, etc., um sinal distintivo no meio da luz comum, senão para serem mais facilmente reconhecidos e glorificados por seus irmãos? Certamente não é para atrair a vista da Divindade ou dos anjos, que estes selos particulares de merecimento e de glória são necessários, mas sim para atrair a vista dos outros escolhidos.
Os bem-aventurados reconhecerão, pois, e distinguirão os mártires dos confessores e das virgens; e, reconhecendo inteiramente seus merecimentos, reconhecerão também suas pessoas. Há, pois, entre os bem-aventurados uma série de mútuas relações de admiração, de felicitações, de aplausos e de reconhecimento, que supõe um conhecimento pessoal, claro e direto.
Ainda mais: cremos na ressurreição dos corpos. Isto não é rigorosamente necessário para que os escolhidos se reconheçam entre si. As almas despojadas de seus corpos revestem formas intelectuais que as inteligências desembaraçadas da carne podem perceber, distinguir e conhecer.
Todavia, é certo que a reunião do corpo à alma, que reconstitui a individualidade terrestre quebrada pela morte, é um meio poderoso de distinguir os escolhidos uns dos outros. E ainda que a ressurreição da carne tenha outros fins sublimes, que é inútil enumerar aqui, é permitido crer que ela contribuirá também, por sua parte, para facilitar aos bem-aventurados o conhecimento que possuírem de seus parentes, de seus amigos e benfeitores.
Sob este ponto de vista, o dogma da invocação dos santos também nos fornece luzes.
O apóstolo S. Pedro, escreveu aos fiéis que tinha convertido, que depois da sua morte se lembraria deles. Estes fiéis tinham, pois, um direito mui particular de invocá-lo depois da sua morte. Este direito temo-lo nós também, de certo modo, a respeito de todos os santos, mas especialmente a respeito daqueles cujo nome temos, ou que, por um título qualquer, se tornaram nossos protetores particulares.
Chegados ao Céu, os santos que conhecemos na Terra conhecem-nos ainda.
Mas que digo eu? Os santos que reinam no Céu desde há séculos, os santos mártires que verteram o seu sangue na primeira idade da Igreja, muito tempo antes do nosso nascimento, conhecem-nos e amam-nos em Jesus Cristo. Nós os invocamos com bastante confiança e bom sucesso.
Ora, se os escolhidos nos não conhecem no Céu, é forçoso que estes bem-aventurados protetores que nos seguiram na terra, nos percam de vista quando lá subirmos, e deixem de se interessar pela nossa felicidade.
Mas, isto é impossível.
Longe de se quebrarem, quando subimos ao Céu, as cadeias de amor que nos unem aos santos; fortificam-se, pelo contrário, e estreitam-se ainda mais.
A fé e a esperança deixam então de existir; mas a caridade permanece sempre. Os santos que nos conheciam na terra conhecem-nos quando chegamos ao Céu; e como esta prerrogativa é essencialmente comum a todos os escolhidos, todos estes se conhecem mutuamente por toda a eternidade.
Enfim, se os bem-aventurados se não reconhecessem uns aos outros, que idéia se poderia fazer da felicidade do Céu? Seria necessário imaginar-se uma multidão de seres separados uns dos outros, sem ação nem relações recíprocas, imóveis, absorvidos numa contemplação imutável, e de alguma sorte materializada.
O espírito e o coração dos escolhidos seriam absorvidos, concedo-o, no conhecimento e no amor da natureza divina, mas o seu todo não formaria nem uma sociedade de amigos, nem a família espiritual, nem a Cidade de Deus.
O Céu não seria a habitação de delícias onde todas as faculdades da alma racional têm uma ação própria, concorrendo para a felicidade desta alma e dos outros escolhidos; tornar-se-ia, permita-se-me a expressão, uma espécie de prisão celular, onde as almas, cativadas pela felicidade essencial da visão beatífica, não saberiam o que se passa em volta delas, e viveriam numa espécie de isolamento sem motivos.
“Atenhamo-nos, pois, à imagem da sociedade dos santos, onde a caridade reina como soberana; à da família de Jesus e de Maria, cujos membros todos se conhecem e amam; à do Reino de Deus, onde tudo se passa com ordem e harmonia para maior felicidade de todos.
Estas idéias, e algumas outras ainda, apresentaram-se ao meu espírito enquanto lia o opúsculo do R. P. Blot, donde concluo que é a ele que as devo.
Agradeço-lhe mui sinceramente por mas ter sugerido, e reenvio-lhas como uma dívida de reconhecimento. Possa o seu excelente livro derramar o bálsamo da esperança cristã em muitas almas aflitas e, fazendo inteiramente sentir os laços espirituais que nos unem entre nós, unir-nos cada vez mais no Senhor!
Depois do que acabo de dizer é inútil declarar que aprovo o livrinho e que desejo vê-lo espalhado pela minha diocese”.
Nunca o nosso reconhecimento será demasiado para com a memória do venerando prelado que, apesar das dores duma cruel enfermidade a que devia em breve tempo sucumbir, se dignou escrever-nos de seu próprio punho uma tão longa e benévola carta.
Ela permite-nos esperar que este humilde trabalho fará algum bem às almas, sobretudo àquelas que, não tendo uma fé assaz viva, murmuram contra a Providência por ocasião da perda dum ente querido, e são tentadas a abandonar as práticas da piedade cristã.
No Céu nos reconheceremos – Pe. F. Blot
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