Flor duma especial e santa amizade no Paraíso. – Durar assim para sempre é também da verdadeira amizade, segundo S. Jerônimo. – A santa amizade é o prelúdio ou o gozo antecipado do Céu, segundo S. Francisco de Sales. – Célebre visão de S. Vicente de Paulo. – A continuação da amizade depois da morte consolou S. Gregório Nazianzeno, Santo Agostinho e S. Cipriano.
Talvez vos pareça que só tenho falado, até aqui, dessa geral amizade que existirá no Céu entre todos os religiosos que vivem na mesma comunidade. Mas não se aplicará com mais razão, tudo o que tenho dito, a essa flor duma especial e santa amizade, que o tempo vê algumas vezes germinar entre dois corações pela virtude do sangue de Jesus Cristo? Crede firmemente que esta flor, depois de ter feito as vossas delícias na terra, continuará a exalar o seu perfume na bem-aventurada eternidade, para embalsamar a corte celeste e dar aos santos mais uma alegria.
Os doutores consideram ainda como essencial à amizade, o poder seguir-nos assim até ao seio de Deus.
A afeição que não possa entrar onde nada penetrará que não seja puro, é indigna do nome de amizade. Diz S. Jerônimo: Amicitia quae desinere potest, vera nunquam fuit – a amizade que pode acabar nunca foi verdadeira[80]. Logo que ela não pode ser eterna, não é real; desde que não merece durar sempre, só é aparente ou impura.
A verdadeira, a sincera, a virtuosa e santa amizade sobrevive a todas as separações da morte, para reunir nas sublimidades do Céu, no ápice da bem-aventurança, os corações e as almas que ela unia neste vale de lágrimas e de misérias.
Quem não leu estas linhas em que S. Francisco de Sales considera a verdadeira amizade como prelúdio ou ante-gosto do Céu?
“Se a vossa mútua e recíproca comunicação, diz ele, se transforma em caridade, em devoção, em perfeição cristã, ó Deus, quanto será preciosa a vossa amizade! Ela será excelente, porque vem de Deus, excelente porque tende a Deus, excelente porque o seu liame é Deus, excelente porque durará eternamente em Deus.
Oh! como é bom amar na terra como se ama no Céu, e aprendermos a querer-nos mutuamente nesta vida como nos queremos e nos amaremos eternamente na outra! O delicioso bálsamo da devoção destila-se dum dos corações no outro, por uma contínua participação, de sorte que se pode dizer que Deus derramou sobre esta amizade a sua bênção e a vida, por todos os séculos dos séculos. Esta casta união nunca se converte senão em uma união de espíritos, mais perfeita e pura, imagem viva da bem-aventurada amizade que se exerce no Céu”[81].
É um exemplo desta bem-aventurada amizade o próprio fundador e a fundadora da Visitação. S. Vicente de Paulo foi dela testemunha, numa célebre visão que refere nestes termos:
“Tendo esta pessoa (ele mesmo) notícia da perigosa enfermidade da nossa defunta, ajoelhou para orar a Deus por ela; e imediatamente depois, apareceu-lhe um pequeno globo como de fogo, que se elevava da terra, e ia reunir-se, na região superior do ar, a um outro globo maior e mais luminoso, e ambos reunidos se elevaram mais, entraram e derramaram-se noutro globo infinitamente maior e mais luminoso do que os outros; e foi-lhe interiormente dito que este primeiro globo era a alma da nossa digna mãe (Santa Chantal), o segundo, a do nosso bem-aventurado pai (S. Francisco de Sales), e o terceiro, a Essência Divina; que a alma da nossa digna mãe se tinha reunido à do nosso bem-aventurado pai, e ambas a Deus, seu soberano princípio. Além disso, a mesma pessoa, que é um padre, celebrando a santa missa pela nossa digna mãe, como se de repente tivesse recebido a notícia do seu feliz passamento, e estando no segundo Memento em que se ora pelos mortos, pensou que faria bem em orar por ela; e viu novamente a mesma visão, os mesmos globos e a sua união”[82].
Quando a morte vos arrebatar alguma pessoa querida, não tenhais, pois, algum escrúpulo de vos consolar, repetindo: Ela não me esquece; ora por mim e vela sobre mim. Permanecemos unidas!
Assim se consolava S. Gregório Nazianzeno depois da morte de S. Basílio, seu perfeito amigo:
“Agora, dizia ele, Basílio está no Céu. É lá que oferece por nós os seus antigos sacrifícios e recita pelo povo novas orações. Porque, indo-se desta vida, não nos deixou inteiramente. Vem ainda algumas vezes advertir-me por meio de visões noturnas, e repreende-me quando me desvio do meu dever”[83].
Santo Agostinho também se consolava do mesmo modo, depois que um dos seus amigos foi transportado pela morte à eterna bem-aventurança. “É aí, escrevia ele, que vive o meu Nebrídio, ele, meu doce amigo, ele, vosso filho adotivo, ó Senhor! É aí que ele vive, é aí que sacia à vontade a sede da sabedoria. Contudo, não penso que ele esteja inebriado desta sabedoria até ao ponto de se esquecer de mim. E, como se esqueceria ele, visto que vós mesmo, Senhor, vós, de quem se inebria o meu amigo, vos lembrais de nós?”[84].
A mesma consolação tomava um santo bispo, escrevendo a um santo Papa, prevendo a morte que não podia tardar em feri-los:
“Lembremo-nos um do outro, em toda a parte e oremos sempre um pelo outro, adocemos nossos pesares e angústias com o nosso mútuo amor; enfim, se um de nós, por um efeito da bondade divina, preceder o outro no Céu, que a nossa amizade dure ainda junto do Senhor, e que a nossa oração não cesse de solicitar a misericórdia do nosso Pai, em favor dos nossos irmãos e irmãs”[85].
No Céu nos reconheceremos – Pe. F. Blot
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[80] S. Jerônimo, Epist. I, class. epist. III, no. 6.
[81] S. Francisco de Sales, Introduction à la vie dévote, IIIa. p., cap. XIX e XX.
[82] Abelly, Vie de saint Vincent de Paul, t. II, cap. VII.
[83] S. Gregório Nazianzeno, Oratio XLIII, no. 80.
[84] Santo Agostinho, Confess., liv. IX, cap. III, no. 3.
[85] S. Cypriano, Epist., LX, Cornélio, fin.