NO CÉU NOS RECONHECEREMOS – SEGUNDA CARTA – PARTE 2

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Provas da tradição: o fato simplesmente afirmado por Santo Atanásio, S. Paulino, Santo Agostinho, Honório e Berti – As consolações tiradas deste fato, por Santo Ambrósio para os irmãos; por Fócio para os parentes; por S. Jerônimo, Santo Agostinho e, mais ainda, S. João Crisóstomo, para as viúvas.

A luz despedida sobre este objeto pela tradição católica é tão viva e constante que passa através de todas as nuvens dos sofismas e da preocupação.

Os testemunhos podem dividir-se em duas classes: os que afirmam simplesmente o fato, e os que dele tiram uma consolação.

Entre as obras muitas vezes atribuídas a Santo Atanásio, esta glória tão pura do IV século, encontra-se uma que tem por título: Questões necessárias que nenhum cristão deve ignorar. Ora, na resposta à XXII questão lê-se: “Deus concede às almas justas, no Céu, um grande bem, o de se conhecerem mutuamente”.[1]

No fim do mesmo século, S. Paulino, que mais tarde foi Bispo de Nola, escrevia ao seu antigo preceptor, o poeta Ausónio:

“A alma sobrevive ao corpo, e é necessário que ela guarde os seus sentimentos e as suas afeições, tanto quanto a sua vida. Ela não pode esquecer que é imortal. Para qualquer lugar que Nosso Senhor me mande depois da minha morte, levar-vos-ei em meu coração, e o fatal golpe que me separar do meu corpo não porá termo ao amor que vos consagro”.[2]

No século V, o grande Bispo de Hipona dizia a seu auditório: “Conhecer-nos-emos todos no Céu. Pensais vós que me conhecereis, por me haverdes conhecido na terra, mas não conhecereis meu pai, porque nunca o vistes? Repito-vos, conhecereis todos os santos. Eles se conhecerão, não porque vejam a face uns dos outros, mas verão como os profetas costumam ver na terra; ou ainda dum modo bem mais excelente. Verão divinamente. Por isso que estarão cheias de Deus”[3].

“E vós, S. Paulo e Santo Estêvão, o perseguidor e a vítima, não reinais juntamente com Jesus Cristo? Aí, vede-vos ambos mutuamente, ouvis o nosso discurso; orai ambos aí, orai ambos por nós. Aquele que vos coroou a ambos, vos ouvirá também a ambos”[4].

No século XII, Honório d’Antun perguntava a si mesmo:

“Os justos conhecem-se na glória?”

Eis a sua resposta:

“As almas dos justos conhecem todos os justos, até mesmo o seu nome, a sua raça e seus merecimentos, como se tivessem vivido sempre com eles. Conhecem também todos os maus, sabendo por que falta cada um deles está no inferno. Os maus conhecem os maus, e ainda conhecem os justos que vêem, e até sabem seus nomes, como o rico avarento sabia o nome de Abraão e de Lázaro. Os justos oram por aqueles que amaram no Senhor ou que os invocam. Mas a sua alegria só se completará depois da ressurreição, quando tiverem recuperado os seus corpos e estivermos reunidos com eles; pois a nossa ausência causa-lhes, por enquanto, alguma solicitude – De abcentia lutem nostra sollicitantur”[5].

Se quisesse interrogar sobre isto os teólogos modernos, seriam unânimes em responder afirmativamente. Que um só fale em nome de todos: “Os Santos, diz ele, vêem-se reciprocamente; assim o pede a unidade do reino e da cidade em que vivem na companhia do próprio Deus. Revelam espontaneamente uns aos outros os seus pensamentos e as suas afeições, como pessoas da mesma casa que estão unidas por um sincero amor.

Entre os seus concidadãos celestiais, conhecem aqueles mesmos que não conheceram neste mundo, e o conhecimento das belas ações leva-os a outro conhecimento mais pleno daqueles que as praticaram”.[6]

Os maiores santos e os homens mais eminentes da Igreja não receavam de recorrer a esta verdade, como a um fecundo manancial, para daqui haurirem as cristalinas águas das celestes consolações que distribuíam às pessoas aflitas.

Quem, pois, ousaria ainda acusar de imperfeição este vivo desejo e esta doce esperança?

Perdestes um irmão ou uma irmã? Consolai-vos como Santo Ambrósio se consolava a si mesmo: “Ó meu irmão, dizia ele, visto que me precedestes aí, preparai-me um lugar nessa habitação comum, que daqui por diante será para mim a mais desejada. E assim como neste mundo tudo foi comum entre nós, também no Céu desconheceremos a lei de partilhas. Não façais esperar por muito tempo, eu vos suplico, aquele que experimenta um tão vivo desejo de se vos reunir. Esperai aquele que avança, auxiliai aquele que se apressa e, se vos parece que ainda tardo muito, fazei-me ir com mais ligeireza. Nunca estivemos na terra separados um do outro por muito tempo; mas éreis vós que costumáveis visitar-me. Agora, visto que o não podeis fazer, pertence-me ir para junto de vós. Ó meu irmão, que consolação me resta, a não ser esta esperança de nos reunirmos o mais breve possível? Sim, consola-me a esperança de que a separação que se efetuou entre nós pela vossa partida, não será de longa duração, e que por vossas súplicas obtereis a graça de atrair a vós com mais brevidade aquele que vos chora tão vivamente”[7].

Perdestes um filho ou uma filha? Recebei as consolações que um Patriarca de Constantinopla dirigia a um pai aflito.

Este Patriarca não pode ser contado entre os homens eminentes, e ainda menos entre os santos. É Phócio, o autor do cruel cisma que separa o Oriente do Ocidente. Mas suas palavras provam tanto mais, quanto que indicam ser idêntico o parecer dos gregos e latinos sobre este ponto. Ei-las:

“Se vossa filha vos aparecesse e vos falasse, tendo a sua mão apertada na vossa e o seu risonho semblante chegado ao vosso, não vos faria ela a descrição do Céu?

Depois acrescentaria: Por que vos afligis, ó meu pai? Estou no paraíso, onde a felicidade não tem limites. Ireis para lá um dia com minha querida mãe, e então achareis que nada vos disse de mais deste lugar de delícias, cuja realidade excede muito as minhas palavras.

Ó querido pai, não me retenhais por mais tempo em vossos braços, mas deixai-me com satisfação voltar para o Céu, onde me arrasta a violência do meu amor! – Expulsemos, portanto, a tristeza, conclui Phócio, porque vossa filha está cheia de felicidade no seio de Abraão. Expulsemos a tristeza; porque, dentro de pouco tempo, a veremos ali exultar de alegria e contentamento”[8].

Perdestes vosso marido? Ai! os vestidos de luto, que trajais continuamente, manifestam bem a desgraça que vos feriu, e a afeição que sobrevive ao vínculo que a morte quebrou. Aproveitai-vos, pois, das consolações que os Padres da Igreja ofereceram por tantas vezes às viúvas cristãs.

Jerônimo escrevia a uma viúva: “Chorai vosso Lucínio como um irmão, mas regozijai-vos por ele reinar com Jesus Cristo. Vitorioso e seguro da sua glória, olha-vos do alto do Céu, anima-vos nas vossas aflições, e prepara-vos um lugar junto de si, com tal amor e caridade que, esquecendo-se do seu direito de esposo, começa ainda na terra por vos considerar como sua irmã, ou antes, como seu irmão, porque uma casta união não conhece esta diferença de sexo que se requer para o matrimônio”[9].

Santo Agostinho escrevia a outra viúva:

“Não perdemos aqueles que saem dum mundo donde nós devemos também sair; mas enviamo-los, primeiro que nós, para essa outra vida, onde nos serão tanto mais queridos quanto mais conhecidos nos forem – Ubi nobis erunt quanto notiores, tanto utique cariores. Vós víeis melhor o seu rosto, mas ele via melhor o seu coração.

Ora, quando o Senhor vier, porá em plena luz tudo o que estiver envolvido nas trevas, e manifestará os pensamentos do coração.

Então cada um saberá o que disser respeito a todos, e não haverá distinção alguma entre os nossos e os estranhos para revelar um segredo aos primeiros e ocultá-lo aos segundos, pois na pátria celeste não haverá estranhos.

Mas qual será a natureza, qual a intensidade da luz que assim manifestará tudo quanto o nosso coração encerra agora na obscuridade? Quem poderá dizê-lo? Quem poderá somente concebê-lo?”[10].

João Crisóstomo, numa das suas homilias sobre o Evangelho de S. Mateus, dizia a cada um de seus ouvintes:

“Desejais ver aquele que a morte vos arrebatou? Segui a mesma vida que ele no caminho da virtude, e muito brevemente gozareis desta santa visão. Mas quereríeis vê-lo aqui mesmo? Ah! quem vos poderá estorvar? Se sois prudente, é-vos permitido e fácil vê-lo; porque a esperança dos bens futuros é mais clara do que a própria vista”.

Este sublime orador encontrava, na sua própria história, tudo o que podia torná-lo mais sensível às tristezas da esposa que perdera seu marido. Filho único de uma viúva, que vivia no meio da sociedade, entregue à fraqueza de sua idade e do seu sexo, tinha sido ele o confidente das suas lágrimas e da sua dor, até que a deixara só, como em segunda viuvez, fugindo ao seu amor para encerrar-se na solidão. Ele mesmo nos contou que Libânio, orador pagão, sabendo que sua mãe conservava casta viuvez desde a idade de vinte anos, e nunca tinha querido passar a segundas núpcias, exclamou, voltando-se para os que o cercavam: “Oh! que mulheres que são as cristãs!”[11].

A Providência soube proporcionar a Crisóstomo a ocasião de aproveitar estas disposições do seu coração, consolando outra jovem, que só tinha vivido cinco anos com Terásio, seu marido, um dos principais homens do seu tempo. Escreveu a seu respeito dois tratados, que são tidos na conta dos seus mais notáveis livros. Entre outras muitas mais consoladoras, diz-lhe:

“Se desejais ver o vosso marido, se quereis gozar da vossa mútua presença, fazei brilhar em vós a mesma pureza de vida que resplendecia nele, e estai certa que ireis assim fazer parte do mesmo coro angélico em que ele está.

Habitareis em sua companhia, não por espaço de cinco anos, como na terra, mas por toda a eternidade. Tornareis então a encontrar vosso marido, não já com aquela beleza corpórea de que era dotado neste mundo, mas com outro esplendor, com outra beleza, que excederá em brilho os raios do Sol.

Se vos tivessem prometido de dar a vosso esposo o império de toda a terra, com a condição de vos separardes dele por espaço de vinte anos; e se, além disto, prometessem restituir-vo-lo passado este espaço de tempo, ornado com o diadema e a púrpura, colocando-vos no mesmo grau de honra; não vos resignaríeis a esta separação, observando a castidade? Veríeis mesmo nesta proposição um insigne favor e um objeto digno de todos os vossos desejos.

Suportai, pois, agora, com resignação e paciência, uma separação que dá a vosso marido a realeza, não da Terra, mas do Céu; suportai-a para o encontrardes entre os bem-aventurados habitantes do Paraíso, coberto, não dum manto de ouro, mas dum vestido de glória e de imortalidade. Portanto, pensando nas honras de que Therásio goza no Céu, ponde termo às vossas lágrimas e aos vossos suspiros. Vivei como ele viveu, ou ainda com mais perfeição, para que, depois de haverdes praticado as mesmas virtudes, sejais recebida nos mesmos tabernáculos, unindo-vos novamente com ele por toda a eternidade, não pelo vínculo do matrimônio, mas por outro ainda melhor. O primeiro une somente os corpos, entretanto que o segundo, mais puro, mais agradável e mais santo, une também as almas”[12].

No Céu nos reconheceremos – Pe. F. Blot

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[1] Questiones ad Antiochum principem, q. XXII.

[2] S. Paulino, Poema, XI, V. 59-67.

[3] Santo Agostinho, Sermo 243, cap. VI.

[4] Ibid., Sermo 316, cap. V.

[5] Honorius d’Autun, Elucidarium, lib. III, no. 7, 8.

[6] Berti, De Theologicis disciplinis, lib. III c. XIII, no. 2

[7] Santo Ambrósio, De Excessu fratris sui, lib I, nos. 78, 79

[8] Ibid., lib. III, no. 135

[9] Phócio, Epistol. t. III, epist. 63, Tarasio, patrício, fratri

[10] Santo Agostinho, Epis., 92, nos. 1,2

[11] S. João Crisóstomo, Ad Viduam juniorem, tract. I, no. 2