Não estaremos mais absortos do que os anjos, na contemplação do Criador. – Como eles, contemplaremos as criaturas, e poderemos entreter-nos com elas. – Veremos os condenados. – Reconhecer-nos-emos tão facilmente como se reconhecem os puros espíritos. – Nada teremos de oculto, segundo S Bernardo, S. Gregório e Santo Agostinho. – Todavia os nossos pensamentos, assim como os dos anjos, não serão conhecidos contra nossa vontade.
Esta mistura dos homens e dos anjos nas mesmas hierarquias e nos mesmos coros, permite-nos responder a algumas dificuldades, cuja solução parece estar na semelhança que teremos com os puros espíritos.
Não existe motivo algum pelo qual devêssemos estar mais absortos na contemplação de Deus do que os próprios anjos. Desde o momento em que eles foram confirmados na graça, gozaram duma perfeita bem-aventurança e ficaram arrebatados de admiração em presença da glória e da majestade do Criador. Não se distraem d’Ele, quando lhes mostram as criaturas que são obra Sua, e que Ele lhes permitiu contemplar e admirar, e quis mesmo que as conduzissem e governassem.
Não estão distraídos, quando nos acompanham durante a nossa peregrinação neste mundo, para nos guardar e sustentar no bom caminho. Não o estão, finalmente, quando se interessam pela conversão dum pobre pecador a ponto de se regozijarem mais da sua volta para Deus do que da perseverança de noventa e nove justos (Luc., XV, 7, 10).
Da mesma sorte, diz Ansaldo, por mais ocupados que estejamos no Céu, da glória e da imensidade do Soberano Bem, poderemos ainda ocupar-nos de todos os nossos amigos; não só dos que tiverem ficado na terra, mas também dos que participarem da nossa felicidade.[98]
Esta mesma caridade que, na terra, eleva o homem mortal da criatura ao Criador, o fará inclinar-se das sublimidades da Pátria para o mundo inferior, quando se tiver tornado imortal e glorioso, assim como impele os anjos fiéis a descerem do Céu à terra, do Criador à criatura.
O argumento que resulta desta semelhança foi desenvolvido por S. Bernardo:
“Os espíritos superiores, que desde todo o princípio estão no Paraíso, desprezarão a terra porque habitam o Céu? Não. Visitam-na, pelo contrário e a freqüentam. Por isso mesmo que vêem sempre a face do Pai celeste, não se desempenharão mais do ministério da compaixão? Todos eles são enviados, diz o Apóstolo, para exercerem o seu ministério em favor daqueles que recebem a herança da salvação (Hebr., 1, 14). Como assim? Pois se os anjos vão e vêm para socorrer os homens, os bem-aventurados, que são da nossa raça, não nos conheceriam nem poderiam mais condoer-se de nós em certas circunstâncias em que eles mesmos tiveram que sofrer?! Os espíritos, que nunca experimentaram dor alguma, sentem contudo as nossas dores; e os santos que passaram por grandes tribulações, não reconheceriam já o estado em que estiveram?!”[99]
O Anjo da Escola, S. Tomás, demonstra que nem a contemplação da Essência Divina impedirá os bem-aventurados de sentirem as coisas sensíveis, de contemplarem as criaturas, e mesmo de operarem; nem este sentimento, esta contemplação e esta ação, os distrairá da beatífica vista de Deus. Não se daria isto em Nosso Senhor durante a sua peregrinação na terra?[100]. Sem nada perderem deste divino gozo, os bem-aventurados poderão conversar com os seus parentes, com os seus amigos e com os mesmos anjos, como estes conversam entre si.
Quando aplicamos fortemente, neste mundo, uma das nossas faculdades a um objeto difícil, todas as outras ficam sem força e ação. Mas, no Céu, cada uma das nossas potências terá toda a plenitude da perfeição de que é capaz.
A inteligência dos santos será iluminada pela luz da glória, e a sua vontade será fortificada pela pátria sobrenatural da caridade, a tal ponto que nenhum esforço terão a fazer para nunca perderem de vista a Divindade; mas contemplando-a e amando-a inteiramente, lhes será fácil também contemplar os globos celestes, conversar com os escolhidos e amar todos os bem-aventurados, como nos é fácil e natural neste mundo ver a luz, conversar ao mesmo tempo com os nossos parentes ou amigos, e amá-los ternamente[101].
Mas os santos verão os condenados e os condenados verão os santos? Reconhecer-se-ão ao menos no juízo final. A Escritura não nos permite duvidá-lo, pois que nos mostra os maus exclamando, em presença dos bons: “São estes que outrora foram o objeto das nossas zombarias! Quão insensatos éramos!” (Sap., V, 3, 4.)
Segundo Honório, os justos verão os pecadores nos tormentos, para se regozijarem mais de se terem livrado deles.
Também os condenados, antes do juízo universal, verão os justos na glória para mais se afligirem de a terem desprezado. Mas os bons verão sempre os maus nos suplícios depois do juízo, entretanto que os maus nunca mais tornarão a ver os bons.[102] Não se deve, porém, concluir daqui, que a bem-aventurança seja tanto uma visão do inferno, como do Céu.
Só Deus pode ver tudo ao mesmo tempo. Os santos, bem como os anjos, não contemplam incessantemente as simples criaturas, nem todas ao mesmo tempo. Eles não vêem, pois, sem interrupção, as horríveis torturas dos condenados. O Senhor mesmo desvia delas, quando lhe apraz, os seus pensamentos e os seus olhos.
Os anjos não têm feição alguma corpórea, e todavia reconhecem-se entre si, tanto como as três divinas Pessoas. Não podemos negar o fato, ainda que ignoremos o modo.
Porque não admitiremos igualmente este reconhecimento entre as almas dos bem-aventurados, antes da ressurreição da carne? Porventura a alma de Jesus Cristo morto e sepultado, quando desceu ao limbo, não foi reconhecida dos patriarcas, dos profetas e de todos os justos do Antigo Testamento de quem ela se dignava ser consoladora? E como os teria consolado, se não fosse vista, ouvida e reconhecida por eles? Pode mesmo dizer-se com Monsenhor Malou, cujas palavras citamos na carta que serve de introdução a este livro:
“As almas despojadas de seus corpos revestem formas intelectuais que as inteligências separadas da carne podem perceber, distinguir e conhecer”.
Finalmente, até que ponto se conhecem os santos entre si? O abade de Claraval diz em geral: “Os bem-aventurados então ligados entre si por um amor tanto maior quanto menor é a distância em que se acham do próprio amor que é Deus.
Nenhuma suspeita pode introduzir a divisão nas suas fileiras, porque entre eles nada há de oculto: o raio da verdade que tudo penetra não o permite”[103].
Antes de S. Bernardo, tinha dito um grande papa, que o coração dos bem-aventurados será brilhante como o ouro, e transparente como o cristal, de sorte que se conhecerão entre si melhor no Céu do que durante a sua vida na terra[104].
Antes de S. Gregório, dizia também o ilustre Bispo de Hipona: “Nesta sociedade dos santos, verão todos reciprocamente os pensamentos que só Deus vê agora. Assim como quereis que neste mundo se veja o vosso rosto, também querereis que no outro se veja a vossa consciência[105]. Todos os espíritos bem-aventurados formarão somente uma cidade, um coração e uma alma; e, nesta perfeição da nossa unidade, os pensamentos de cada um de nós não serão ocultos aos outros”[106].
Contudo, a condição dos homens não deve diferir, sob este ponto de vista, da condição dos anjos. Ora, um sábio teólogo prova que estes puros espíritos têm uma linguagem que, sem ser sensível ou corporal, é todavia mui inteligível; mas que os seus pensamentos não chegam ao conhecimento uns dos outros, senão tanto quanto eles querem. É necessário que um ato da sua vontade dirija este pensamento ou esta “palavra espiritual” àquele a quem lhe agrada que seja conhecida. Podem assim falar a uns sem falar a outros e sem ser entendidos ou compreendidos por todos. Pois a linguagem angélica não parece ser outra coisa mais do que o destino ou a direção dum pensamento, por um ato de vontade a algum destes puros espíritos que só então o conhece[107].
No Céu nos reconheceremos – Pe. F. Blot
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[98] Ansaldo, Della sperança…, cap. X.
[99] S. Bernardo, in Natali sancti Victoris, sermo II, no. 3.
[100] S. Tomás, Summ., IIa. p, q. 84, art. II, 4.
[101] Ansaldo, Della speranza…, cap. X.
[102] Honório d’Autum, Elucidarium, liv. III, no. 3.
[103] S. Bernardo, In Dedication e Ecclesiae, sermo I, no. 7
[104] S. Gregório Magno, Moralium, liv. XVIII, cap. XLVIII, no. 77, 78
[105] Santo Agostinho, Sermo CCXLIII, cap. 5
[106] Santo Agostinho, De bono conjugali, cap. XVIII, no. 21.
[107] Petau, De Angelis, liv. I, cap. XII, nos. 7 e 11.