Domine, si pauci sunt qui salvantur?
Senhor, são poucos os que se salvam? (Lc 13, 23.)
Primeira Parte: A Tradição
I – A fé e a razão
A fé em nada se assemelha às opiniões humanas: ela prescinde da concepção subjetiva do espírito – que variaria segundo os indivíduos – e corresponde à substância duma verdade firme e imutável.
A fé se fez a si mesma; por isso, a razão humana tem de aceitá-la como Deus a apresentou e não julgá-la, pois não é capaz disso; ademais, deduzir e coordenar as conseqüências que decorrem dela é um ministério belíssimo.
Em suma, a fé não é objeto submisso à razão, mas tem princípios que ultrapassam a razão, sem com isso contradizê-la. A fé tem regras e elementos de tal amplitude que deixam a razão (o termo, acreditamos, é de Bossuet) desconcertada, como as parábolas cuja imensa abertura escapa a qualquer medida. Por isso, a razão não se deve retirar ou isentar, menos ainda se insurgir, se na fé existem elementos que excedem a compreensão e a deixam escandalizada, por causa duma como incompatibilidade que a razão acredita haver encontrado. Nestes lances é obrigatório que a razão se imponha silêncio a si, humilhe-se e adore. Tão logo se humilhe e adore, decerto descobrirá, na obscuridade do mistério, as luzes que lhe hão de saciar a legítima necessidade de conhecimento, pacificar a inquietação – e quiçá deliciá-la.
Essas reflexões nos vêm ao espírito, no momento em que tratamos da temível questão do número – do reduzido número – dos eleitos, pois é este um dos problemas que mais incomodam as susceptibilidades e causam repugnância à razão humana.
Pois bem!, exclama a razão, poucos serão os eleitos? Perder-se-á eternamente a multidão do gênero humano? Seria frustra para a maioria da humanidade a redenção que o sangue de Jesus Cristo operou? Seria a misericórdia de Deus dalgum modo vencida pela justiça divina? Recolheria ela apenas poucos eleitos e deixaria cair no abismo eterno a avalancha dos condenados?
Assim fala a razão, seguindo o impulso da sensibilidade natural. Ora essa linguagem não é sóbria nem judiciosa. O número dos eleitos é uma questão de fato, sobre que o raciocínio perde todos os direitos. Dá-nos a Sagrada Escritura – expressão do pensamento divino – algum esclarecimento sobre o problema dos destinos humanos? Eis o que se deve buscar com espírito submisso, e uma vez exposta à luz meridiana a resposta da Sagrada Escritura, à razão só lhe cabe inclinar-se e adorar.
Na Sagrada Escritura se encontram a respeito do problema dos eleitos textos concordantes que sempre nos pareceram peremptórios.
Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição e muitos são os que entram por ela. Que estreira é a porta, e que apertado o caminho que conduz à vida, e quão poucos são os que acertam com ele. (Mt 7, 13-14).
São muitos os chamados, e poucos os escolhidos (Mt 20, 16 e 22, 14).
E alguém lhe perguntou: “Senhor, são poucos os que se salvam?” E ele disse-lhes: “Esforçai-vos por entrar pela porta estreita (da penitência); porque vos digo que muitos procurarão entrar, e não o poderão”. (Lc 13, 23-25).
Ao nosso ver, as declarações do Salvador são duma clareza indubitável. Como negar que não se está falando da salvação das almas? Estão abertos os dois caminhos: o largo que conduz à perdição, e o apertado que conduz à vida. E é com dor que Nosso Senhor atesta, numa concepção abrangente, que muitos caminham no primeiro e poucos seguem o segundo.
E se alguém alegar que a misericórdia divina há de impedir à beira do abismo a maioria dos homens que nele se precipita? Nosso Senhor destroçou essa ilusão, quando à pergunta dos discípulos: “São poucos os homens que se salvam?”, respondeu ele: “Procurai entrar pela porta estreita; porque, digo-vos, muitos procurarão entrar e não o conseguirão.” Assim quem não se esforça a fim de entrar pela porta estreita, não há de ser um esforço tardio que lhe vai permitir a entrada, ficando deste modo do lado de fora.
Esses textos se nos apresentam – nunca é demais repetir – com tal clareza que nenhuma agudeza os poderia obscurecer.
Mas é preciso interpretar a Sagrada Escritura de acordo com o ensinamento da Igreja que, revigorando-se a cada época, constitui a chamada Tradição. Em qualquer ponto em que haja ambigüidade, a Tradição em último caso fixa a doutrina que os fiéis devem considerar de fato como a palavra de Deus.
Se o problema é o número dos eleitos – consultemos a Tradição.
Se a voz dos primeiros padres, dos doutores da Igreja, dos escolásticos da Idade Média, dos teólogos e dos célebres pregadores modernos nos declara que os eleitos, i. e. os salvos, são poucos em relação aos condenados, é evidente que o problema está resolvido. A Sagrada Escritura de per si já era bem clara; por seu lado, a Tradição não permite que nos desviemos do sentido óbvio dos textos, por isso estabelece duma vez para sempre a interpretação e a impõe como regra para os cristãos.
Eis como o Concílio de Trento estabelece a autoridade da Igreja e dos Padres, em relação à interpretação da Sagrada Escritura:
Para reprimir a petulância de certos espíritos, o Santo Concílio não permite que ninguém – apoiando-se sobre a prudência pessoal, nas coisas relativas à fé e aos costumes – ouse amoldar a Sagrada Escritura aos próprios sentimentos, e interpretá-la de encontro ao sentido que apregoou e apregoa a Nossa Madre Igreja, à qual pertence julgar o verdadeiro sentido e a verdadeira interpretação das Sagradas Escrituras, ou ainda contra o unânime e concordante ensinamento dos Padres.
Assim o espírito humano não está livre para seguir os próprios sentimentos em questões escriturárias: deve ele consultar a Tradição da Igreja e também o ensinamento dos Padres, que constitui uma parte importantíssima da Tradição. No momento em que se reconheça que a Tradição fixou o sentido dum texto, não é mais lícito buscar e abraçar outra interpretação.
Ora, já se pronunciou a Tradição sobre o problema do número dos eleitos? Têm os Padres um ensinamento unânime? É o que vamos estudar e relevar. Após analisarmos os Padres da Igreja, seguiremos o influxo da Tradição nos grandes teólogos da Idade Média, e depois nos autores mais santos e reputados da modernidade, que estão de pleno acordo com os Padres acerca do ensinamento do pequeno número dos eleitos, como iremos constatar. (Continue a ler)
II – O ensinamento dos Santos Padres
Os dois caminhos – o largo e o apertado – que Nosso Senhor descreveu no Evangelho reaparecem a todo instante nos escritos da época apostólica. Os antigos autores os simbolizavam na forma da letra Y, que designava uma bifurcação.
O documento velhíssimo intitulado Doutrina dos Doze Apóstolos [Didaké] começa com a parábola dos dois caminhos: o caminho de luz e o de morte e trevas.
Nas homilias atribuídas a São Clemente, lê-se o seguinte:
Existem dois caminhos. Um é o caminho dos que perecem: ele é largo e plano, e nele nos perdemos sem cansaço; o outro é o caminho dos salvos: ele é estreito e acidentado, e com muito trabalho nos conduz à salvação. (Hom. VII)
A epístola atribuída a São Barnabé contém o mesmo ensinamento:
Há dois caminhos: um de luz e outro de trevas. Grande é a diferença entre eles. O primeiro está marginado pelos anjos de Deus, e o segundo pelos anjos de satã.
O autor descreve as obras opostas pelas quais se vão a um ou a outro caminho. Ele chama claramente o segundo de “o caminho da morte eterna e do suplício infindo”. (II Pars. C. XVIII.)
A parábola dos dois caminhos estava de tal forma gravada no espírito dos herdeiros imediatos da Tradição Apostólica que Clemente de Alexandria a insere logo no início de sua obra:
Um é apertado, porque o encurtaram os mandamentos e as proibições; o outro é largo e espaçoso, porque nele se dá plena liberdade à voluptuosidade e à cólera. Pitágoras aqui nos proíbe de seguir o sentimento da multidão que, segundo ele, é amiúde temerário e absurdo. (Strom., lib. V, c. 5) .
Orígenes não é menos claro ao explicar os dois caminhos e o pequeno número relativo de cristãos verdadeiros.
Agora que nos multiplicamos, tornou-se difícil que todos sejamos verdadeiramente bons, e impossível que a palavra de Jesus – Muitos serão chamados, e poucos os escolhidos – não se cumpra: dentre as pessoas que professam a fé cristã, poucas encontramos que tenham verdadeira fé e sejam dignas da beatitude (Hom. IV. in Jer.).
Até o poeta semi-cristão Ausônio menciona duas vezes em seus versos a letra simbólica Y, e descreve as duas rotas em que se abre esta bifurcação.
Escreveu Lactâncio, para instrução do imperador Constantino, um tratado inteiro sobre os dois caminhos,
que à semelhança da letra Y representam o curso bifurcado das vidas humanas. Um braço dobra para o oriente e indica a boa vida; o outro para o ocidente e indica a vida má; só quem segue a justiça e a verdade há de receber a recompensa imortal e entrará na posse da luz eterna. Ora, segundo o Salvador, o número dos que caminham nesta direção é pequeno. (Inst., lib. VI, c. 3)
São Jerônimo menciona essa obra de Lactâncio, e também se serve do simbolismo da letra Y, “que, observa ele, representa uma bifurcação da vida, que se orienta à direta ou à esquerda” (Epist. LVXI ad Pam., CVII ad Laet).
Nós como que amontoamos estes textos concordantes dos primeiros Padres, a fim de deixar claro que o pensamento deles estava mui apegado às palavras de Nosso Senhor, às quais consideravam as mais austeras e práticas; não tinham eles dúvidas de que tais palavras indicavam manifestamente a salvação ou a perdição das almas. Que respondem os modernos, segundo os quais essa célebre passagem do Salvador aludiria tão-somente ao reduzido número de judeus que aceitariam o ensinamento e entrariam na Igreja? Não era este o entendimento dos antigos Padres, que enxergavam nesta doutrina a apreciação do Salvador relativa aos caminhos opostos da vida humana; portanto, essas palavras ainda são atuais.
Agora vamos apresentar citações taxativas dos Padres sobre o pequeno número dos eleitos.
Tertuliano:
Nem todos são salvos, apenas uns poucos judeus e cristãos.
Santo Irineu:
Tanto hoje em dia quanto no tempo do Antigo Testamento, Deus não se agrada do grande número: muitos serão os chamados mas poucos os escolhidos. (Contra haer., c. XXXVI.)
Santo Hilário:
Toda carne será julgada; bem-aventurado serão os escolhidos, pois segundo o Evangelho muitos serão os chamados mas poucos os escolhidos. (Enar. in Psal., LXIV.)
São Basílio faz uma exortação sobre o comportamento do religioso:
Fica ao lado dos poucos. O bem é raro: apenas uns poucos entram no reino dos céus. Não acredites que quem habita nas celas está salvo, a despeito da boa ou má vida que leva. (Sermão da renúncia do século; PG 31, 646.)
Santo Efrem comenta no mesmo sentido sobre a porta estreita e o caminho apertado.
São Gregório Nazianzeno chama aqueles que se perdem de poeira infinita, em comparação com os vasos de eleição. (Sermão 42 para 150 bispos; PG 36, 467)
Santo Ambrósio, à pergunta do salmo “Senhor, quem habitará em vosso tabernáculo, quem repousará na vossa montanha santa?”, responde: “Alguém será, mas poucos; non utique nullus, sed rarus.” (In Apol. pro Davide, c. IX.)
Ao pregar para o povo de Antioquia, exclamava São João Crisóstomo:
Quantos pensais que se irão salvar nesta cidade nossa? O que vou dizer é doloroso, mas ainda assim vou dizê-lo. Entre tantos milhares de pessoas, não haverá cem que serão salvas; e mesmo assim não estou certo desse número: a perversidade é muita entre os moços, e muita a negligência entre os velhos. (Homilia 24 acerca dos Atos dos Apóstolos; PG 60, 189)
Certos críticos levantaram dúvidas sobre a autoria desta homilia. Em todo caso a terrível ameaça contida nela se encontra, com termos mais ou menos parecidos, noutras passagens dos escritos de São João Crisóstomo, mormente no Tratado sobre o Sacerdócio. Os beneditinos consideram autêntica a homilia.
Ao explicar uma perícope do Eclesiástico, afirma São Jerônimo que “a prédica se torna ineficaz, se promete de leve à multidão a beatitude e o reino dos céus” (In Eccl. com., PL23, 1099). Demais a mais, ele prega sem rebuços a doutrina do pequeno número – quiçá do pequeníssimo número – dos eleitos:
De acordo com a palavra do Salvador, haverá tanta penúria de santos – muitos serão os chamados, mas poucos os escolhidos – que seu minguado número é comparado às raríssimas oliveiras que ficam de pé após serem sacudidas e colhidas: ou então aos cachos, ou antes, aos bagos espalhados que os pobres se põem a catar depois da vindima (In Isai., c. XXIV, 13-14; PL 24, 294.)
Mais adiante vamos transcrever longos trechos de Santo Agostinho a respeito do número dos salvos. Por enquanto nos basta a transcrição da passagem seguinte, que é mui significativa:
Decerto são poucos os que se salvam. – Recordai-vos da pergunta que está nos Evangelhos: “Senhor, são poucos os que se salvam?” Que respondeu o Senhor? Ele não disse: não vos amofineis, pois os salvos são muitos! Não, ele não disse isso. E o que foi que disse? “Esforçai-vos por entrar pela porta estreita”. Ao falar assim, confirma o que se acabou de escutar. São poucos os que passam pela porta estreita. Mais ainda, disse ele: “Estreita é a porta e apertado o caminho da vida e raros os que acertam com ele.” – De que nos serve desfrutar com as multidões? Escutai-me, vós que sois poucos. Sois muito inclinados a me escutar, mas pouco a me obedecer. Eu vos peneiro e cato os grãos de trigo, mas é raro enxergar algum grão quando bate o vento: no entanto, toda a palha é vã. São poucos os que se salvam, se comparados aos muitos que perecem. (Sermão 106, ou De Verbis Domini 32; PL 38, 641-642.)
São Leão Magno explica também – e sem hesitar – a parábola do Senhor acerca dos dois caminhos, e da imensidão daqueles que se perdem eternamente:
Enquanto a multidão freqüenta o caminho largo que conduz à morte, nas sendas da salvação só vemos as raras pegadas dos poucos que nele entram. (Sermão 49, c.2; PL 54, 302.)
São Gregório Magno, entre outras passagens típicas, nos proporciona este fragmento dum sermão dirigido ao povo:
Muitos vêm até a fé, mas poucos vão até o reino dos céus. Estais reunidos aqui em grande número para a presente solenidade; lotais o recinto desta igreja: quem sabe quão poucos dentre vós são os escolhidos de Deus? (Homilia sobre o Evangelho 19, pár.5; PL 76, 1157.)
Ainda há necessidade de citar os últimos Padres da Igreja, os doutores São Beda o Venerável, São Pedro Damião, Santo Anselmo e São Bernardo? Neles se encontra exatamente a mesma linguagem e maneira de interpretar a Santa Escritura.
Santo Anselmo em particular é bem instrutivo; escreve ele aos seus discípulos Odão e Lanzão:
Estamos certos de que entre os muitos chamados existem poucos escolhidos, pois a Verdade assim o disse; mas quão poucos, nós não temos certeza, pois a Verdade não o disse. Por isso quem não viva ao estilo do pequeno número, quem não se corrija e se ponha de par com o pequeno número, esteja certo da condenação. Quanto a quem esteja com o pequeno número, não se sinta seguro da eleição, uma vez que ninguém sabe ao certo se faz ou não parte do número dos escolhidos, embora sua vida já se assemelhe à do pequeno número e difira da vida da multidão dos chamados. (Epist. II, lib. I; PL 158, 1065.)
Conclusão: em qualquer estado esforcemo-nos para ficar cada vez mais seguros da eleição. Nesses mesmos termos escreve o santo doutor à condessa Ida (Epist., XVIII, libr. III; PL 159, 43). Era-lhe muito cara essa recomendação, que lhe parecia importantíssima.
Assim são unânimes os Padres: unânimes acerca da afirmação do pequeno número dos eleitos e do grande número dos condenados; unânimes na interpretação dos textos da Santa Escritura em torno do assunto.
Para eles a sentença escriturária “Muitos serão os chamados, mas poucos os escolhidos” dirige-se ao pequeno número dos salvos; para eles não existe a fantasiosa distinção entre escolhidos e salvos; no ensinamento deles ambos os termos são idênticos.
Para eles os dois caminhos, o caminho largo e o caminho apertado, são os caminhos que conduzem os homens à perdição eterna ou à salvação eterna; para eles a resposta de Nosso Senhor à pergunta: “São poucos os homens que se salvam?” é sem dúvida afirmativa.
Nunca os Padres tiveram contato com as explicações ambíguas e enviesadas dalguns modernos, segundo as quais – como já dissemos – Nosso Senhor simplesmente aludira ao estado do judaísmo coetâneo e ao ingresso dos judeus na Igreja que Ele fundara. Longe de pensar que esses textos já se não aplicam a nós – o que seria aborrecer e destruir a virtude da Palavra Divina, que pertence a todos os tempos e lugares – ensinaram os Padres que eles se dirigem a todos nós, conforme a intenção do Salvador, que era indicar as precondições da salvação; logo devemos tê-los sempre diante dos olhos e meditá-los.
Por conseguinte, não hesitavam em pregar às gentes o número relativamente pequeno dos eleitos, i. e., dos salvos. Propunham-se, deste modo, a inspirar nos ouvintes um temor salvífico. Diziam: “Rompei com o mundo, separai-vos da multidão para não perecer com ela, que caminha para a perdição por caminhos licenciosos; esforçai-vos para chegar à vida pelo caminho do sacrifício.”
Quem ousaria ir contra uma linguagem diametralmente oposta à dos Padres da Igreja?
III – O ensinamento dos teólogos e pregadores
O príncipe dos teólogos, Santo Tomás, na Suma Teológica, ensina claramente a teoria do pequeno número dos eleitos, apoiando-se neste raciocínio poderoso e formidável:
O bem, que é proporcionado à natureza, produz-se na maioria dos seres, faltando apenas numa pequena parte deles; mas o bem que excede o estado comum da natureza somente se encontra num pequeno número e falta num grande número. Assim a maioria dos homens possui ciência suficiente para o governo da própria vida; aqueles a quem falta essa ciência, aos quais chamamos de idiotas, são relativamente poucos; entretanto, menor ainda é o número dos que alcançam a ciência profunda das coisas intelectuais. Como a beatitude eterna, que consiste na visão de Deus, excede o estado comum da natureza, sobretudo naqueles destituídos da graça em razão do pecado original, são poucos os que se salvam, e estes só se salvam porque a misericórdia de Deus reluz neles com brilho singular: ela eleva certo número de criaturas humanas à salvação eterna, ao passo que a maioria se afasta da graça, em obediência ao curso ordinário das coisas e à inclinação da natureza.
Noutros dois passos o santo doutor estabelece a mesma doutrina.
O irmão doutrinal de Santo Tomás, São Boaventura, é também categórico; ele dá um argumento verdadeiramente teológico acerca do número reduzido dos eleitos:
Todos os homens se deveriam perder, pois provieram todos da mesma massa de perdição; logo, o fato de que os condenados superem em número os salvos serve para evidenciar que a salvação provém duma graça especial, ao passo que a danação se dá segundo a justiça comum. Ninguém – acrescenta o santo doutor – pode protestar contra a vontade divina, que em tudo age com suprema retidão; antes devemos em tudo lhe render graças e honrar o governo da Divina Providência. (Brevil. Pars I., c. 9)
Os grandes pregadores da Idade Média, Santo Antônio de Pádua, São Vicente Ferrer e São Bernardino de Siena, recordam aos ouvintes – a fim de lhes estimular a fugir das máximas e da moral permissiva do mundo – o reduzido número dos eleitos. Comentando a palavra do Salvador, “poucos são os que o encontram” (o caminho apertado), exorta São Vicente Ferrer:
Sim, são poucos os que o encontram, e raros os que nele permanecem, e raríssimos os que o seguem até o fim. (Sermão 6, ed. d’Anvers, p. 318)
Os grandes pontífices, como Inocêncio III, os santos bispos, como Santo Antonino e mais tarde São Tomás de Vilanova, são do mesmo teor. Este último fala assim ao povo:
Muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos – que sentença terrível! Acreditai em mim, meus irmãos, acreditai nos meus avisos constantes, com que cansei as vossas orelhas: se não trabalhais com ímpeto na vossa salvação, se não fazeis mais que o comum dos homens, não recebereis a recompensa eterna. (Sermão 2 da Septuagésima).
Daria infinito trabalho percorrer todos os teólogos, os autores ascéticos e os pregadores modernos; somos obrigados a nos limitar a algumas indicações sumárias e rápidas citações.
As ordens antigas – os cartuxos de Dionísio e Ludolfo, os beneditinos e cistersienses de Triteme e do Cardeal Bona, os dominicanos de Luís de Granada e do Cardeal Gotti, os franciscanos do Cardeal de Laurea, o carmelo dos teólogos de Salamanca, os agostinianos fidelíssimos às tradições patrísticas – todas elas, dizíamos, conservam pura a tese tradicional corroborada com o nome de seus santos e doutores mais insignes. As ordens mais recentes se aferram a essa tese como se ao pensamento da própria Igreja, e entre elas convém mencionar a Companhia de Jesus. Não seria difícil citar uma sucessão de vozes autorizadas da Companhia em apoio à tese do pequeno número dos eleitos. Não acreditamos que, durante os dois primeiros séculos de existência, pudéssemos apontar uma só voz discordante entre seus membros a respeito desse assunto.
Diz-nos o bem-aventurado Canísio:
Pregarei o justo julgamento de Deus que, vingando-se do desprezo de sua graça, só há de escolher para a glória celeste uns poucos dentre os que chamou à Igreja.
Certo dia o bem-aventurado Baldinucci fazia um sermão em campo aberto; representava aos ouvintes o rigor do julgamentos de Deus:
Ah, exclamara de súbito, neste momento caiu no inferno tantas almas quantas são as folhas desta árvore!
E num instante todas as folhas da árvore indicada caíram e juncaram o solo; os ouvintes arrebentaram em soluços. Este fato foi extraído da bula de beatificação do bem-aventurado jesuíta.
No livro o Gemido da Pomba, obra excelente, o venerável Cardeal Belarmino, uma das glórias da Companhia de Jesus, escreve:
Que ninguém pense que o número dos eleitos há de superar o número dos condenados, porque no cap. VII do Apocalipse se diz que não é possível completar o número dos eleitos! Em verdade haverá mais eleitos entre os gentios que entre os hebreus. Mas o número dos eleitos, quer judeus quer gentios, será decerto inferior ao número dos condenados. É lícito fazer a mesma afirmação sobre a proporção de cristãos. O que Nosso Senhor diz em S. Lucas e S. Mateus acerca do caminho apertado e da porta estreita se refere igualmente aos judeus e aos cristãos. (lib. I, c. 6) […]
Vamos demonstrar adiante que os teólogos da Companhia de Jesus foram moralmente unânimes, durante dois séculos, quando ensinaram o pequeno número dos eleitos, ao menos em relação ao conjunto da humanidade. Quanto aos autores ascéticos, acreditamos que também são unânimes, do venerável Pe. du Pont até o Pe. Judde; as pessoas conhecem a profundidade do espírito de religião e do apego judicioso às tradições salvíficas que aparecem nas obras de Rodriguez, do Pe. de Saint-Jure e do Pe. Lallemand; decerto nenhum desses escritores, com justiça estimados, quiseram distanciar-se do ensinamento dos Padres num ponto de altíssimo interesse para a moral cristã.
Entre os pregadores jesuítas citaremos Segneri e Bourdaloue. O primeiro fez esta declaração categórica:
Devemos aceitar como verdade o ensinamento unânime dos santos doutores. Ora, eles estimam de comum acordo que há mais cristãos condenados que salvos.
Bourdaloue (como demais a mais todos os pregadores ilustres do séc. XVII) apregoa abertamente a doutrina do pequeno número dos eleitos, nestes termos:
Sempre se disse que o número dos eleitos será menor que o número incomparavelmente maior dos condenados. Ora os pregadores costumam se perguntar se convém explicar essa verdade às pessoas e tratar dela no púlpito, pois é um tema capaz de perturbar as almas e desencorajá-las. Gostaria muito de que alguém me perguntasse se é bom explicar às pessoas o Evangelho e apregoá-lo no pulpito. – Ah, existe no Evangelho alguma coisa mais explícita que o pequeno número dos eleitos?!
O ilustre pregador conclui que é bom, até necessário, pregar essa verdade, que é bastante eficaz e apropriada para que a alma se torne vigilante e consiga avaliar os perigos do mundo…
Bossuet, outro mestre da eloqüência cristã e profundíssimo intérprete da Tradição, é tão explícito quanto Bourdaloue. Nas Meditações sobre o Evangelho escreve:
Jesus Cristo nos alertou deveras. Isso vale, em primeiro lugar, para os judeus. Mas o Salvador não fala apenas com os judeus naquele passo, que lemos, da parábola; afinal, cabe a nós esclarecer o que significam os gentios chamados nas pessoas dos cegos e dos mancos que foram convidados para o festim, donde se conclui que muitos são os chamados e poucos os escolhidos.
E mais à frente exclama o grande bispo:
Não vivamos como a maioria… nem aleguemos o costume: juntemo-nos a esses poucos eleitos que o mundo desconhece, mas cujos nomes estão inscritos no céu. (Meditações sobre o Evangelho, Última Semana do Salvador, 34º dia.)
Já que estamos falando dos pregadores, não podemos deixar de mencionar o célebre sermão de Massillon sobre o pequeno número dos eleitos. Em geral, não se critica a tese do orador, mas tão-somente alguns aspectos dos argumentos de que se serviu; dizem que ele exagerou as precondições requeridas para a verdadeira penitência. Tudo bem. Mas o que isso prova? Em que prejudica os textos do Santo Evangelho e a voz poderosa da Tradição que os comenta? Que há de repreensível no sermão tão límpido de Bourdaloue? Absolutamente nada.
Existe um sermão, tão terrível quanto o de Massillon, sobre o pequeno número dos eleitos, de que os modernos cuidadosamente evitam falar. Quem o pronunciou em Roma foi o grande missionário que Deus suscitou para levar à penitência os corações obstinados no pecado, chamado São Leonardo de Porto Maurício. Nesse sermão, submetido a exame canônico – a exemplo doutros escritos do servo de Deus – na ocasião de sua canonização, São Leonardo menciona os diversos estados dos cristãos e desse exame conclui que até entre os padres é pequeno o número dos salvos.
Os partidários do grande número dos eleitos pretendem se apoiar na autoridade de São Francisco de Sales e Santo Afonso de Ligório.
Quanto ao primeiro, valem-se duma passagem do livro que Camus, bispo de Belley, escreveu sobre o santo. A essa passagem, em que o pensamento do santo pode estar mais ou menos alterado numa boca estranha, os defensores da tese tradicional opõem vários extratos autênticos em que o santo exibe a mesma linguagem dos outros santos e autores já citados.
Quem houver, escreve ele em suas Controvérsias, os olhos assaz perspicazes para investigar o tema do caminho dos homens, bem verá porque na Igreja se afirma que Muitos serão os chamados, mas poucos os escolhidos, i. e., muitos dos que estão na igreja militante jamais chegarão à triunfante. (Contr. Part. I, cap. II, art. 2).
Já sobre Santo Afonso, os religiosos de sua ordem – herdeiros de seu espirito e zelo – protestaram veementemente contra os abusos que os inovadores cometem contra o nome do fundador. O que há, dizem eles, é uma verdadeira distorção dos textos. Escreveu Santo Afonso nalgum lugar que um católico que morra no ano em que tenha feito (e bem feito) sua missão, dificilmente se danará. Puseram em boca dele, de forma absoluta, que um católico dificilmente se condena. Ora Santo Afonso ensina ex professo a doutrina escriturária do pequeno número de eleitos mesmo – infelizmente! – entre os católicos.
O caminho do céu é estreito e, servindo-me duma expressão familiar, as carroças não cabem nela, de modo que querer ir ao céu de carroça é renunciá-lo. Pouquíssimas almas chegam até lá, porque pouquíssimos querem cometer violência contra si, a fim de resistir às tentações.
Torna-se assim supérfluo, neste curto resumo, qualquer acréscimo a citações tão categóricas.
IV – O modernista em teologia
De acordo com a exposição da Tradição, é lícito afirmar que até o séc. XVIII os teólogos foram unânimes ao ensinar a doutrina do pequeno número dos eleitos, pelo menos relativamente ao conjunto da humanidade. Acrescentamos de propósito estas últimas palavras, pois exigem algumas explicações que ficamos alegres em dar.
Parece evidente, segundo as citações que fizemos, que a quase unanimidade dos Padres e a maioria dos teólogos – ao tratar do problema do pequeno número dos eleitos – tinham em vista apenas os cristãos; e a conclusão deles é que, mesmo entre os fiéis, são poucos os que se salvam.
Santo Tomás e São Boaventura, nos textos fundamentais que citamos, consideram numa perspectiva ampla o conjunto da humanidade. Noutras passagens parecem que se restringem aos cristãos, dos quais muitos se perdem por não tomarem o cuidado de assegurar a eleição com uma vida profundamente cristã. Os escolásticos e os teólogos que se seguiram aos dois mestres buscaram o esclarecimento da questão, descendo a mais detalhes e fazendo importantes distinções.
Em primeiro lugar eles discerniram que tais palavras se dirigiam aos adultos: quando fala dos dois caminhos Nosso Senhor pressupõe pessoas que pudessem escolher por si mesmas. Por isso as crianças mortas antes da idade da razão, com ou sem a graça do batismo, estão fora do debate. Em segundo lugar trataram do problema do pequeno número de eleitos sob diferentes aspectos: 1º em relação ao conjunto da humanidade; 2º em relação aos cristãos, católicos e heréticos; 3º em relação aos católicos somente.
Acerca do primeiro ponto a resposta é unânime: são poucos os que se salvam.
Acerca do segundo ponto ela é quase unânime: os salvos são minoria.
Acerca do terceiro ponto a maioria dos teólogos tornam a responder: são poucos os que chegam à salvação. Todavia alguns ainda acreditam, esperam e afiançam que a maioria dos católicos há de salvar-se.
Esta é a opinião do famoso Suarez: no entanto ele a traz à baila com grande reserva, tão-somente como a mais verossímil, justificando-a com o fato de que a maioria dos católicos morre munida com o sacramento da penitência, isso se recebido com a suficiente lucidez de espírito e a indispensável atrição – o que atualmente por desgraça, sobretudo em certos lugares, não é garantido.
Outros teólogos notáveis da Companhia de Jesus – por ex. Alvarez e, que curioso!, Molina, tão dado a opiniões frouxas – não são desse sentir. O jesuita Ruiz de Montoya, estimadíssimo comentador de Santo Tomás, aprecia destarte a opinião de Suarez:
É ela mais desejável que provável, impressiona mais o coração que a razão, atinge mais a sensibilidade que a autoridade. Ora, observa Santo Agostinho, a opinião humana não aumenta em nada o número dos salvos; mais ainda, em razão da sedução que [esse parecer] exerce, fará com que muitos adormeçam na negligência e se condenem.
Assim fala um jesuíta sobre a mitigada opinião de Suarez, que remetia o pequeno número dos eleitos ao conjunto da humanidade e aos cristãos em geral.
Que não pensaria ou diria Ruiz de Montoya dalguns teólogos que certos autores modernos propagam?
Já não é o grande número dos salvos entre os cristãos o que garantem os inovadores pertinazes, mas antes o grande número dos salvos, em relação ao conjunto da humanidade.
Segundo eles, os pagãos, os maoetanos, os budistas, os heréticos, os cismáticos são salvos em massa, e não apenas os católicos romanos.
Trememos ao ler semelhantes teorias, que tendem a inutilizar a graça do Santo Batismo, depreciam o benefício da verdadeira fé, retiram com efeito da Igreja Católica o privilégio de possuir o Espírito Santificador e transformam – por meio de interpretações – em atos meritórios de religião as idolatrias e os fanatismos.
Demoraria muito empreender a refutação desses erros atentatórios à pureza da fé: baste-nos dizer que no séc. XIX esses erros – corporificados na pessoa do Pe. Gravina, jesuita siciliano – foram refutados e condenados ao Index. […]
Atualmente o Pe. Castelein, jesuita belga, e alguns menos conhecidos, que se alcunham de científicos, puseram esses erros novamente em voga, reanimando-os e jogando-os sobre o público com grande estridor. Eles se esforçaram vãmente em disfarçar a condenação fulminada sobre o Pe. Gravina, ao quererem que ela incidisse apenas em certos pontos. No fundo apoiam a tese dele – a da salvação da imensa maioria dos homens, notadamente dos infiéis, e a apoiam com os mesmos argumentos. Acontece que o que Pe. Gravina apresentava como verossímil, eles consideram certo e demonstrado, investindo com incrível audácia contra a Tradição constante de dezoito séculos de cristianismo.
Para lhes responder, entramos na controvérsia e dizemos: não é permitido interpretar a Escritura em sentido contrário ao determinado pela Tradição; não é permitido ensinar uma doutrina diametralmente oposta à unanimidade dos Padres e dos teólogos. Ora, a interpretação tradicional e constante preceitua que as palavras do Salvador sobre o caminho largo e o caminho apertado e a sentença muitos serão os chamados, mas poucos os escolhidos se referem ambas aos que se perdem e se salvam; e o ensinamento unânime dos Padres e dos teólogos reza que haverá mais condenados que salvos, ao menos em relação ao conjunto da humanidade.
Os modernos inovadores teológicos se revoltam ao pensar que tantas almas, pelas quais morreu Jesus Cristo, se hão de perder; daí tentam reduzir a pequeníssimas proporções o número das que efetivamente se perderão. Se pensarmos bem e partirmos do belíssimo princípio, porém mal compreendido, da superabundância da misericórdia divina – por que ainda existiriam almas condenadas, por que haveria de existir uma sequer? Deus, ao criar uma alma, já sabendo que ela se condenaria, embora deveras pudesse impedir tal condenação, cria um mistério que desconcerta a razão, e diante do qual é mister tremer e adorar. Se certas pessoas se queixam de que Ele permite a condenação de muitas almas, por que não se queixam quando poucas delas se tornam vítimas duma justiça irremissível ao passo que a imensa maioria das criaturas humanas goza no céu da felicidade eterna? Se nos apegarmos a razões de sentimentalidade, recairemos no erro de Orígenes, que dogmatizava que ao final de tudo condenados e demônios seriam retirados do inferno e elevados ao paraíso. Demais a mais este é um erro bem contemporâneo. Victor Hugo, obsedado pelo pensamento do inferno, exclamava:
Esperai, esperai, esperai miserável!
Não há mal incurável,
Nem inferno sem fim!
Como se gritos de verdadeiro desespero impedissem a existência do inferno e a sua eternidade, a existência de Deus e a sua justiça.
Não! A posição dos modernos inovadores no terreno da fantasia teológica e da extravagância escriturária não é sustentável; o chão começa a lhes sumir de sob os pés. Eles estão indefesos perante os negadores absolutos do inferno eterno.
A única posição sólida é esta: o homem colhe o que plantou, o homem é julgado por Deus segundo os seus méritos. Se se saiu bem, receberá a recompensa eterna; se se saiu mal, receberá a punição eterna. Se a maioria vive no desprezo de Deus e da lei divina, a maioria se perderá. A única coisa espantosa seria se a maioria se salvasse, depois de ter vivido no pecado mortal. “Só haverá um eleito – dizia o Pe. Colombière – se fordes bom, que será vós; só haverá um condenado, se fordes mau, que será vós.”
Eis a única posição a se assumir ante um problema tão delicado e temível quanto o do número dos eleitos. Quando sopesarmos as considerações teológicas que formam a segunda parte deste trabalho, veremos com mais clareza a necessidade de delimitar a questão com firmeza.
Segunda Parte: As Considerações Teológicas
Qualis vita, finis ita.
Tal vida, tal morte (Velho provérbio)
I – A graça e a glória
A doutrina sobre o pequeno número dos eleitos é impressionante, e com muita razão. Ela nos diz respeito e a nossa salvação eterna.
Ficaríamos penalizados se essa impressão desencorajasse ainda que fosse uma só alma. Mas só a desencorajaria se a doutrina fosse mal entendida. Por isso, a fim de dar a ela a verdadeira interpretação, faremos algumas ponderações, que são como a conclusão prática do que já dissemos, baseados no Evangelho e na doutrina dos santos.
O fundo do problema é a existência da relação necessária entre a vida presente e a vida futura: aquela é a preparação desta. Por isso, existe uma relação entre o número dos servidores de Deus cá embaixo e o número dos salvos. O número dos primeiros é relativamente pequeno, e pequeno será o número dos segundos.
Vós vos espantais de que sejam poucos os salvos; observai ao vosso redor e vosso espanto terminará. No mundo há muitos cristãos fiéis e servidores de Deus? Infelizmente, é inegável que são poucos; tirai a conclusão e não fiqueis surpresos com os poucos salvos.
Cristãos há que perdem a graça, e outros há que, tendo-a perdido, a recuperam. Há quem começa e não persevera, e há trabalhadores de última hora. Mas essas perdas e ganhos como que se compensam. E qualquer que seja a flutuação produzida na composição do grupo dos cristãos verdadeiros, o número deles é sempre relativamente pequeno em comparação à multidão daqueles que não observam a lei de Deus.
A teoria do pequeno número dos eleitos é tão-somente a constatação duma lei elementar: para ser salvo, é obrigatório servir a Deus, viver como bom cristão e confessar a Nosso Senhor com palavras e atos.
É perigosíssimo destruir no espírito dos cristãos a noção fundamental de que a observação dos preceitos divinos, a imitação fiel de Jesus Cristo e o esforço perseverante na prática do bem são necessários à salvação.
Certo dia nos dizia um missionário que, nas missões onde havia pregado – seguindo o bom e tradicional método dos antigos – o sermão decisivo era sempre o do pequeno número dos eleitos.
Isso é bem compreensível. O pregador expõe a doutrina e a moral cristã; revela o estado do mundo entregue à tripla concupiscência que São João estigmatizou. Por isso afirma ele aos ouvintes:
Não vos deixeis iludir, meus irmãos, se quiserdes ser salvos, não vos conformeis com este século, tende uma vida contrária à vida mundana. A vida mundana é o grande caminho largo que leva à perdição, e são muitos os que nele caminham; a vida cristã é a vida do caminho apertado que conduz à vida, e são poucos os que o seguem. Se quiserdes ser salvos, separai-vos do mundo, não marcheis com a maioria, juntai-vos com os poucos amantes da cruz de Jesus Cristo.
A natureza de tais palavras evidentemente produzem impressão profunda, motivam resoluções sérias e conduzem a conversões duráveis.
Comparai essa linguagem com a dum missionário que pregava o grande número de eleitos. Ele tentou convencer, ao menos supomos, que a vida cristã – segundo se depreende dos ensinamentos de Nosso Senhor – é uma vida de austeridade, abnegação e penitência. Os ouvintes concluíram que, para que se salvassem, era mister pôr em prática esses ensinamentos divinos. E eis que o pregador chega a uma conclusão oposta à pregação: “Não! isso não é necessário, as gentes mundanas desprezam a moral e todavia a maioria será salva!” Vede só que confusão provoca uma afirmação dessas! Os bons cristãos vão ficar melindrados e escandalizados; quanto aos partidários da vida livre e da moral fácil, a tese lhes destrói as veleidades de conversão e os confirma nos hábitos, em flagrante contradição com a Cruz de Jesus Cristo.
Um dia conversávamos dessas coisas com um eminente religioso da ordem de São Domingos. O reverendo padre, embora mui sabedor das modernidades, ainda era um homem da Idade Média no que respeitava a princípios, doutrina espiritual e direção moral. Não obstante certos sermões do Pe. Lacordaire e a tese adocicada do Pe. Monsabré, ele não aprovava a teoria do grande número dos eleitos. Presenteou-nos, pois, com as seguintes reflexões:
Consultai Santo Tomás: ali vós achareis que a graça é a semente da glória, semen gloriae, o caminho para ir até lá, via ad gloriam; mais ainda, é ela o início da glória, o começo da glória em nós, inchoatio gloriae in nobis. Em suma a graça e a glória no fundo são as duas formas do mesmo estado divino da alma. A graça é a glória em germe; a glória é a expansão última da graça. – Ora, continuou o reverendo padre, as teorias modernas sobre o grande número de eleitos rompem essa íntima relação. Infelizmente é patente que a maioria dos homens e até dos cristãos não estão em estado de graça, e ainda querem que não obstante eles entrem na posse da glória! Não percorrem o caminho e chegam ao destino! Não semeiam e colhem o fruto da árvore! Ficam estranhos à graça, que é o inicio da glória, e possuirão a glória! Não, não é possível.
Essas reflexões nos pareceram duma justiça incontestável. A obra da graça em nós nos predispõe à glória: onde falte a preparação, a glória já não tem razões de ser.
Alguém poderia dizer: no momento derradeiro, Deus pode dar num instante as disposições à graça – ou a própria graça – e em conseqüência à glória celestial. Sem dúvida que isso é possível, mas é exceção: na ordem da Providência, o ordinário é que a alma amadureça para a glória por meio da fidelidade à graça. É para isso que nos deram o tempo da vida presente. Em suma, a lei, em que devemos basear a conduta e regrar as esperanças, formulou-a São Paulo deste modo: “Aquilo que o homem semear, isso também colherá. Aquele que semeia na carne, da carne colherá corrupção; mas o que semeia no espírito, colherá do Espírito a vida eterna.” (Gal 6, 8)
É uma presunção perigosa acreditar que, após semear obras de corrupção carnal, a maioria dos homens colherá a vida eterna. Nosso único objetivo é combater essa crença, corroborando a tese do pequeno número dos eleitos.
II – As graças da última hora
A doutrina tradicional – que expomos – sobre o número dos eleitos nos leva a considerar aquilo que se chama as graças de última hora.
Com efeito, é possível objetar à tese do pequeno número dos salvos a existência das graças de última hora, dispensadas aos fiéis na forma dos últimos sacramentos; de fato inúmeros são os cristãos, até em países onde são raras as práticas religiosas, que morrem munidos dos sacramentos, e por isso com um penhor de salvação.
Essa objeção traz um problema que deve ser tratado com bastante reserva. Acreditamos nas graças de última hora; estamos convencidos de que no momento em que a alma vai entrar na eternidade o diabo faz de tudo para perdê-la, bem como a misericórdia divina empreende um supremo esforço para salvá-la. O padre, que é o agente exterior da misericórdia, tem de redobrar o zelo para lhe secundar os efeitos e, sem nunca desencorajar-se, multiplicar-se à roda do moribundo, experimentar todos os expedientes e valer-se de todos os meios e instrumentos a fim de lograr uma boa confissão e ministrar ao confessando os divinos remédios de que o sacerdote é depositário. Trava-se uma luta decisiva; o prêmio é uma alma resgatada para Jesus Cristo. Não obstante essa alma tenha abusado das graças, um bom padre jamais deve desesperar da salvação dela.
Decerto existem almas que se salvaram na última hora. O ministério do padre, nesta hora terrível, tem as suas consolações. Mas quantas almas foram salvas assim? Ao lado das consolações, quantas não serão as tristezas e as decepções cujo segredo o padre deve guardar!
Dizíamos: quantas almas foram salvas assim, i. e., quantas morreram em disposições realmente consoladoras, em relação ao número daquelas sobre cuja morte pairam as mais dolorosas incertezas?
Apelamos à experiência dos bons padres. Dentre os mortos que enterram, há aqueles que foram levados por uma morte súbita, dos quais não é possível sequer invocar uma tênue presunção de que aceitariam os sacramentos; há outros que receberam a extrema-unção quando já haviam perdido toda a consciência ou quase; há outros ainda dos quais o padre – instado pelo tempo e atrapalhado pelos circunstantes ao doente – mal tivera tempo de receber uma abjuração sumária das faltas duma longa vida. Essas três categorias, para as quais as apreensões se justificam e muito, abrangem grande parte dos moribundos, sobretudo nos dias de hoje. Sobram aqueles, relativamente raros, aos pés dos quais o padre goza de todas as facilidades de contato, e cuja confissão prepara com as devidas exortações. Ora até para este, de quem seria lícito esperar algo, existem motivos de temor: ele treme ante a luta, cujas peripécias prevê e advinha com maior clareza; decide abandonar os maus hábitos enraizados, apisoar o respeito humano que o tiranizava e restituir o bem mal adquirido. Quantas dificuldades não deve superar a graça a fim de converter até o fundo um pecador doente, de modo a lhe assegurar a salvação caso ele chegue a morrer!
O padre, que avalia a situação com critérios divinos, é obrigado a concordar – e aqui não há exagero – que as conversões de última hora são raras e que geralmente se morre como se viveu, ou antes, morre-se como se mereceu morrer. Ademais eis a contraprova que justifica a apreciação: dentre as pessoas que, depois de receberem os sacramentos, escapam à campa da sepultura, quão poucas dão exemplo duma verdadeira mudança de vida – da vida que Deus devolveu como por milagre! Quão poucos se preocupam em reparar os defeitos – segundo a ótica cristã – da existência passada! Eis o motivo – abstendo-nos de negar as graças e conversões de última hora – dizíamos, eis o motivo por que acreditamos que esse supremo esforço da misericórdia divina não impede que poucos sejam os eleitos, confirmando assim – não obstante as exceções que traz consigo – a regra geral de que para bem morrer é preciso começar a bem viver.
Atenhamo-nos a esta regra, para governo pessoal e conselho do próximo. Não vamos de encontro às indicações do Santo Evangelho, que nos apresenta o Céu como a recompensa prometida à fidelidade, o salário das boas obras, o prêmio duma corrida infatigável e a coroa reservada aos campeões valorosos.
Nosso Senhor em pessoa não nos advertiu para que não esperássemos a última hora, a fim de nos convertermos e ganharmos o céu?
Esforçai-vos por entrar pela porta estreita (da penitência); porque vos digo que muitos procurarão entrar e não o poderão. E quando o pai de família tiver entrado e fechado a porta, vós, estando fora, começareis a bater à porta, dizendo: Senhor, abre-nos; e ele, respondendo-vos, dirá: Não sei donde vós sois. (Lc 13, 24-25).
É a mesma resposta dada às virgens loucas que tardiamente batiam à porta da festa de núpcias. Disse-lhes o Esposo: “Na verdade vos digo que não vos conheço.” (Mt 25, 12)
Essas duas passagens nos mostram, conforme o pensamento dos Padres e dos comentadores, uma espécie de panorama da penitência tardia, adiada para a hora da morte. Os desgraçados, surpresos em meio aos estertores, querem entrar pela porta, batendo desesperadamente: mas como é o temor servil e não o desejo sincero de conversão que os estimula a bater, o Senhor não lhes abre a porta. Convém apagar os textos do Santo Evangelho, porque são assustadores? Não, convém antes concluir que o tempo propício à conversão é a vida presente; não se deve esperar o momento derradeiro para retornar a Deus, cuja autoridade e preceito ignoramos e transgredimos de forma ultrajante durante longos anos.
É uma presunção terrível, depois de viver no pecado, vangloriar-se de morrer na graça! Com que brado não temos de alertar as almas para curá-las da presunção, que as conduz à perdição eterna?
Fazemos essas reflexões, porque elas derivam de vosso Evangelho, ó Senhor Jesus, e não desconhecemos os mistérios de Vossa Misericórdia, impenetráveis como os de Vossa Justiça.
III – Poucos e muitos
Quando falamos sobre o pequeno número dos eleitos, não queremos dizer um número pequeníssimo ou ínfimo.
Limitamo-nos aos termos do Santo Evangelho, poucos e muitos, que admitem mais e menos e deixam certa margem de interpretação.
Pode acontecer que em certas épocas de paz e fervor, em que a Igreja exerce livremente o seu ministério e abundam os santos, o pequeno número aumenta de forma considerável. Admitimos de boa mente que nalguns sítios privilegiados, com o concurso de circunstâncias propícias, é possível que se salve a maioria dos cristãos.
Essa declaração a fazemos porque nos parece derivar duma observação imparcial e é de natureza a tranqüilizar as almas. Deus, que deseja que todas as almas se salvem, não determinou a priori (humanamente falando) limites fixos ao número dos eleitos; o zelo dos bons padres e dos servos de Deus pode estender indefinidamente esse limite. Se é pequeno o número dos eleitos, deve-se à corrupção habitual do mundo e à negligência dos ministros do Evangelho. Quem ora pode quase sempre se salvar pela oração.
Assim não exageremos a doutrina do pequeno número dos eleitos, já de si mesma bem assustadora.
Prometemos explicação sobre uma passagem de Belarmino, que citamos acima. Esse autor, célebre em santidade e ciência, um dos luminares da Companhia de Jesus, cardeal da Santa Igreja Católica, com título de venerável – nalgum passo diz que, de mil cristãos, um a custo se salvará. Eis as palavras: “Os judeus eleitos não serão a milésima parte dos judeus condenados. E é licito dizer o mesmo sobre a proporção do número dos cristãos”. Decerto essas palavras são terríveis, mas são menos terríveis que uma suposição atribuída a São Nilo, e muito menos que uma afirmação que se acha nos sermões do Bem-aventurado Pe. de la Colombière, sobre que não vamos insistir para não obscurecer ainda mais o cenário do julgamento de Deus contra o mundo entregue ao pecado. Demais a mais a passagem do Pe. de la Colombière – diretor da Bem-aventurada Margarida-Maria e amigo do Coração de Jesus – a que aludimos, é tão-só a reprodução da apóstrofe aterradora de São João Crisóstomo ao povo de Antioquia, que já mencionamos.
Que pensar dessas e doutras afirmações semelhantes, encontradiças por ex. nos escritos a justo título estimados do Pe. de Saint-Jure, autor ascético da Companhia de Jesus? Declaramos com toda a clareza que seria errado levá-las ao pé da letra e delas tirar consqüências demasiado angustiantes. Os autores piedosos que emitiram tais pareceres não pretendiam pronunciar uma sentença definitiva – o que não cabe ao homem – mas simplesmente exprimir os temores e angústias que a ingratidão dos cristãos e os percalços da salvação motivaram. Em suma, eles se propuseram a tratar um dos lados dum problema necessariamente obscuro, e não o conjunto dele com todos os seus aspectos.
Eles falaram a exemplo do apóstolo São Pedro, na sua primeira epístola: “Preciso consultar o original em francês (1Pe 4, 10). O justo a custo será salvo: esta é a exclamação de quem considere a justiça de Deus à puridade. E essa justiça – incisiva e penetrante como só ela – é de tal natureza que até a justiça humana mais alicerçada não consegue ficar de pé diante dela. Sopesando o rigor dessa justiça e considerando as exigências da santidade de Deus, temiam os santos pela própria salvação e se perguntavam: Quem há de se salvar? Daí os cálculos que lhes vinham à pluma, e as apóstrofes que lhes saíam dos lábios. Não obstante, estimulavam em todos a confiança; aos fracos, aos pequenos e aos pecadores arrependidos exortavam de mãos postas para que se abandonassem à misericórdia de Deus, cujo seio era sempre assaz amplo para recebê-los a todos.
A expressão que resume à maravilha os diversos aspectos deste problema terrível, disse-a Santo Agostinho ao falar de sua santa mãe Mônica:
Infeliz da vida humana, embora louvável, se a julgam sem misericórdia! Ao lado da justiça, há a misericórdia: logo sejamos confiantes. “Em vós espero, Senhor, e nunca serei confundido”.
Voltando às citações de Belarmino e outros autores ascéticos, repetimos que não se deve, de forma nenhuma, considerá-las como sentenças definitivas. Considerando-se o estado do mundo, o mais prudente é apegar-se às palavras do Salvador – poucos e muitos – sem lhes forçar a mão. Nelas há o que se temer, mas dum temor que traz consigo uma confiança que estimula a vigilância.
Tirante isso, os pareceres dos veneráveis Belarmino e de la Colombière, com efeito meramente cominatório, dão o que pensar.
Quando se punham a escrever, esses personagens santos e ilustres não duvidavam do amor de Deus pelas criaturas, nem da vontade Dele em salvar todos os homens, nem ainda da ternura do Coração de Jesus pelos pecadores, ou seja, eles não eram de temperamento calvinista ou jansenista. Destarte é justo abster-se de qualquer epíteto pejorativo, se considerarmos a casta de homens que conservam a antiga tese tradicional do pequeno número dos eleitos.
O cardeal Belarmino e o Pe. de la Colombière, glórias da Companhia de Jesus, não enxergavam o estado do mundo, da Igreja e das almas com os olhos e a partir do ângulo dum outro jesuíta, o Pe. Castelein, que atualmente patrocina, com exagero inaudito, a teoria moderna do grande número dos eleitos. Estimamos que o sentimento dos dois veneráveis tem um peso bem diferente do sentimento de seu confrade contemporâneo.
Cingimo-nos à velha Tradição, que decorre das palavras do Salvador, poucos e muitos. E não obstante bradamos aos cristãos – e quiséramos bradar para todos os homens: Esperai, orai e sereis salvos.
IV – A harmonia dos textos escriturários
Demostramos que era prudente conservar a imprecisão proposital e a, por assim dizer, elasticidade dos termos que Nosso Senhor empregou ao tratar do problema do número dos eleitos.
Se quisermos alguns dados mais precisos, a fim de confirmar e fixar a essência dos termos, a melhor fonte, acreditamos, é Santo Agostinho. As discussões com pelagianos e donatistas levaram o grande doutor a perscrutar com maior profundidade o mistério da Igreja e o da eleição divina.
Santo Agostinho – quem tenha lido seus divinos escritos não nos deixará mentir – é sobriíssimo em suas afirmações e evita opiniões precipitadas. Não existe espírito que se lhe compare na busca da verdade, ou mais reservado na exposição do fruto das pesquisas. Ao se referir ao número dos eleitos, ele é duma reserva e discrição impressionantes.
Eis como expõe os princípios que dominam o problema, no livro A Unidade da Igreja, escrito contra os donatistas:
Temos inúmeros testemunhos da Sagrada Escritura, acerca da mistura de bons e maus na comunhão dos mesmos sacramentos, do pequeno número dos bons em relação ao número maior dos maus, e enfim acerca da multidão dos bons considerados em absoluto.
Assim, aos olhos do santo doutor, essas três proposições são incontestáveis: a mistura entre bons e maus no seio da Igreja, figurada no trigo e na cizânia plantados no mesmo campo, ou nos peixes bons e maus capturados na mesma rede; o pequeno número dos bons em relação aos maus, que Nosso Senhor confirma pessoalmente quando fala do caminho largo e da porta estreita; enfim, a multidão dos bons considerados em absoluto, anunciada pelo Mestre ao dizer que “muitos virão do oriente e do ocidente e tomarão assento junto a Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus”. Essa multidão São João a descreve explicitamente no Apocalipse. “Assim, concluíra o magnânimo Santo Agostinho, as mesmas pessoas – ou seja, os bons – são denominadas grande número e pequeno número: grande em absoluto, pequeno em comparação aos maus.” (De Unit. Eccl., 35, 36.)
Esta exposição simples e abrangente, que contém e harmoniza os textos da Santa Escritura relativos ao problema, tranqüliza a alma e fá-la experimentar uma particular impressão de paz que a verdade traz sempre consigo. Ainda subsiste o temor, mas um temor preservador e temperado duma confiança que estimula a contemplação da multidão inumerável dos salvos de todas as condições e nações.
Continuemos a interrogar e a solicitar o santo doutor, que nos franqueia novas luzes sobre a composição íntima da Igreja.
Antes do mais percorramos o belíssimo livro que escrevera, já nos inícios de sua conversão, acerca dos Costumes da Santa Igreja Católica. Nesta obra ele rende homenagem, contra as calúnias dos maniqueus, à nota de santidade da Igreja. A partir duma enumeração esplêndida demonstra a existência de inumeráveis fiéis de incontestável virtude no seio da Igreja; e acrescenta o santo doutor: “É possível encontrá-los no ermo dos desertos ou nos claustros silenciosos, ou ainda na agitação do mundo.” Isso naqueles tempos, em que a fé era ardente; a Igreja é sempre Igreja e sempre santa em parte de seus membros. No séc. XVII o Pe. Condren, 2º Geral do Oratório e bom juiz, declarara que existiam tantos santos escondidos quantos haviam na Igreja primitiva. Mas hoje em dia em que o mundanismo invadiu as famílias cristãs e a Igreja perde muitas almas, todavia ainda se encontram – até nas grandes cidades, quiçá e sobretudo em Paris – entre as pessoas do mundo, práticas austeras de penitência, desapego inaudito e virtudes heroicas. Em suma, Deus tem sempre e em toda a parte os seus eleitos, elegendo-os em quantidade suficiente para conservar o mundo.
Santo Agostinho, no livro Da Catequização dos Rústicos, fala igualmente da Igreja e esboça um quadro bem instrutivo sobre ela. Preocupa-se ele com os efeitos desastrosos que o espetáculo dalgumas desordens, as quais desgraçadamente alguns cristãos freqüentavam, poderiam causar nos catecúmenos e neófitos. Afirma que tais escândalos não diminuem em nada a santidade da Igreja, que os condena. Atesta que entre os cristãos cuja moral deixa a desejar existem muitos que são levados à penitência salutar pela paciência de Deus, e que chegam a se converter com grande ímpeto, magno impetu convertuntur. Enfim, declara que na Igreja existem muitos verdadeiros servidores de Deus, de ordinário mais discretos que os cristãos escandalosos. “Junta-te aos bons, diz ele ao catecúmeno, e descobrirás muitos deles, se com eles estiveres em comunhão”. A observação do grande santo é justíssima. Pavoneia-se o vício, esconde-se a virtude. O que antes de tudo fere os olhos é o espetáculo insolente do mundo, que parece invadir a Igreja. Debaixo da palha agitada e vã, observai atentamente e descobrireis os grãos de trigo (De Cath. Rudibus, cap. XXV).
Uma distinção freqüente na pluma de Santo Agostinho, nos livros contra os donatistas, é a que se faz entre os espirituais e os carnais na Igreja . Mas ao falar destes, o santo não se refere aos que vivem vida regalada ou cometem impurezas, antes fala – seguindo São Paulo – daqueles que, ao dar ouvidos aos instintos da natureza, deixam-se levar por querelas e divisões, sem contudo querer o rompimento com o vínculo da caridade; a estes, segundo Agostinho, falta uma concepção intelectual purificada de Deus. Assim são os carnais, chamados a se espiritualizar progressivamente. Ora, atesta o santo doutor que eles se salvam pelo mérito da fé professada e a santidade dos sacramentos recebidos. São Gregório também alude a miúdo aos carnais ou pequenos em Cristo. Vislumbra-os igualmente como salvos. Acrescenta que “em geral, em tempo de paz, eles se salvam; mas em tempos agitados muitos perecem”.
No que respeita ao problema tão temível do número dos eleitos, essas considerações nos ensinam a distinguir um elemento fixo e um elemento variável: há e haverá sempre os eleitos de Deus, são eles a razão de ser do mundo. Não há dúvidas parece de que sejam eles sempre a minoria em relação aos maus; porém o número dos eleitos aumenta ou dimunui segundo os tempos e as circunstâncias. Existem tempos de graça e de conversão, em que o bem é estimulado e protegido: muitos cristãos podem salvar-se. Sobrevêm tempos de desordem, perseguição e domínio do mal: encolhe o número dos salvos, malgrado os esforços da Igreja para não perder nenhum de seus filhos. Resumindo, o número dos salvos está relacionado com a intensidade da oração na Igreja e pela Igreja para a salvação das almas. Oremos mais instantemente, pois, e cada vez mais almas alcançarão a salvação eterna.
Conclusões
Delineamos estas considerações com a intenção de esclarecer de fato o ensinamento tradicional acerca do número dos eleitos.
Assim, ó cristão, se quiseres servir a Deus, não estarás sozinho, mas no regaço da tua mãe, a Santa Igreja, e das almas – que não são poucas – tuas irmãs; sustentar-te-ás assim nos preciosos laços da mútua caridade.
Entretanto não suponhas encontrar muitos no caminho que resolveste trilhar, antes marcharás com poucos, pois é este o caminho apertado por onde não passa a multidão imensa.
Ergue os olhos: a claridade do céu reveste de alegria os cumes para os quais te diriges, sempre orando, às vezes chorando, mas também cantando. Envolve-te e infiltra-te o ar salutar das alturas.
Coragem e confiança! Espera com firmeza na poderosa graça que estimula os esforços e anima a caminhada.
Não esqueças a premente recomendação de São Pedro: (2Pe 1, 10). Nossa salvação ainda está pendente; ela se afeiçoa e aperfeiçoa todos os dias, por meio dum perseverante esforço. Nossa eleição é como incerta; só a infatigável dedicação às boas obras lhe dá consistência.
Não esqueças ainda da comparação de São Paulo: (1Co 9, 24). Isso não quer dizer que apenas um seja laureado em prejuízo dos outros, mas sim de que é mister se comportar no caminho da salvação como o corredor que nunca para, que luta a fim de superar a velocidade dos concorrentes. Diminuir o passo ou parar de correr é expor-se a perder tudo.
Finalmente, e sobretudo, escuta, ó cristão, a voz de Jesus Salvador: (Lc 13, 25). Para entrar no céu é necessário esforço, e esforço contínuo.
Esse esforço só a graça o torna possível; ora é a oração que obtém a graça. Para um esforço continuo, é obrigatória uma oração contínua.
Ó cristão, ora sem cessar. Pela oração, mercê dos generosos esforços, tu te salvarás.
“Du nombre des élus”, 2007, Éditions du Sel – Tradução: Permanência