O TRADICIONALISMO “RECONHECIDO”: O FALSO DILEMA DA OBEDIÊNCIA

Obediência

Fonte: Courrier de Rome nº 679 – Tradução: Dominus Est

Pelo Pe. Jean-Michel -Gleize, FSSPX

Nota do Blog: O Pe. Gleize, um dos principais teólogos da FSSPX, está há mais de um ano em franco debate na França com os Institutos Ecclesia Dei, e os textos desse debate têm sido publicados no jornal Courrier de Rome. A série de três textos que publicaremos a partir de hoje é uma dessas intervenções. Embora praticamente inexista a Fraternidade São Pedro aqui no Brasil, os argumentos lá usados contra a FSSPX são bem parecidos com os que conservadores/continuistas usam por aqui, por isso reaproveitamo-nos. 

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1. “É possível ser sedevacantista sem declarar?” Esse é o título do artigo publicado pelo Pe. Hilaire Vernier, na página de 5 de maio do site “Claves” da Fraternidade São Pedro (1). O autor desta prosa indica sua intenção nestes termos: “O artigo a seguir pretende ser uma resposta aos artigos “Cismáticos e heréticos?” e “Tradivacantistas?“, publicados pelo padre Jean-Michel Gleize (Courrier de Rome n° 674 de abril de 2024, republicado em laportelatine.org), teólogo da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), em resposta aos nossos dois artigos publicados no Claves.org em julho de 2023, intitulados “Uma Igreja sem papa?””.

2. Eis, portanto, a nossa “resposta à resposta“. A presente edição do Courrier de Rome pretende responder ao artigo supracitado. Reservamos às próximas edições a oportunidade de responder aos outros dois artigos: “É possível ser prudentemente ecclesiovacantista“, (1/2) (2) e (2/2) (3)”, nos quais o Pe. Vernier pretende desenvolver ao extremo sua resposta.

Um Falso Dilema

3. De acordo com ele, o ponto central do debate estaria na seguinte questão: “É possível apropriar-se habitualmente do poder jurisdicional da Igreja (detido pelo Papa e principalmente pelos bispos diocesanos unidos a ele) e concedê-lo a si mesmo com base em uma crise provocada pela hierarquia eclesiástica?”. Daí adviria o dilema. Se a resposta for sim, a Fraternidade São Pio X (FSSPX) entra em contradição, do ponto de vista dos princípios dogmáticos que supostamente ditam sua prudência, com os dados revelados da eclesiologia católica. Se a resposta for não, as decisões de sua prudência estão em contradição com seus próprios princípios dogmáticos. Tal dilema só pode surgir de uma questão mal formulada, e é por isso que as orientações seguidas pela prudência da FSSPX, se as examinarmos pelo que realmente são, e estabelecendo a questão como convém, escapam dela sem dificuldade. É possível verificá-lo através dos quatro pontos a seguir.

4. Em primeiro lugar, a FSSPX não pretende, em princípio, apropriar-se de um poder próprio de jurisdição eclesiástica. (4) Sua atitude não se situa diante desse poder em si, mas diante daqueles de seus atos que não podem exigir obediência, pelo fato de serem incompatíveis com a obediência devida a outros atos preceptivos, emanados desse mesmo poder de jurisdição eclesiástica, em seu exercício anterior às reformas conciliares e pós-conciliares. “Não recusamos a autoridade do Papa, mas o que ele faz” (5). Ao citar esta declaração de D. Lefebvre, (6) gostaríamos de evitar que o padre Vernier cometesse um erro muito comum.

5. Em segundo lugar, essa orientação da FSSPX, embora frequente, não é habitual ou ordinária em sua intenção – se entendermos por isso uma orientação que lhe seria ditada por princípios. Semelhante orientação lhe é ditada pela atitude dos homens da Igreja desde o Concílio Vaticano II, e deve ser definida como uma reação. (7). “O que é problemático“, escrevemos, não é a Fraternidade São Pio X, é a Roma atual, a Roma de tendência neoprotestante e neomodernista“, como gostava de dizer Sua Excelência D. Marcel Lefebvre, em uma linguagem bem simples. É a Roma de hoje que é um problema, pelo próprio fato de que, em Roma, os atuais membros da hierarquia, o Papa e os bispos, adotaram esta nova tendência protestante e modernista, rompendo, assim, com a Roma eterna. E isso por ocasião do Concílio Vaticano II.” (8). Podemos aceitar ou não ver assim a situação da Igreja pós-Vaticano II. Mas mesmo que nos recusemos a aceitar, não podemos atribuir à FSSPX uma intenção que não é sua. A FSSPX não se “apropria” do poder de jurisdição divinamente instituído por Cristo. Ela pretende apenas preservar a si mesma e as almas do abuso que é cometido por homens da Igreja que, desde o último Concílio, muitas vezes desviam o exercício desse poder de seu fim.

6. Em terceiro lugar, a FSSPX não se atribui um poder que não lhe pertence. Na Igreja, ela exerce apenas os atos que são necessários para o bem das almas, devido a um estado de necessidade generalizado. Este é o princípio do que tem sido chamado de jurisdição de suplência (9), um princípio que, longe de ter sido inventado por D. Lefebvre para as necessidades do que teria sido sua própria causa, está há muito tempo inscrito na letra do direito canônico. O direito canônico (10), de fato, prevê casos em que a Igreja supre a falta de jurisdição do padre: “A razão pela qual a Igreja supre a jurisdição não é um bem privado, mas o bonum animarum commune“, diz o Padre Cappello (11) em sua Summa juris canonici de 1961, no n. 252 do volume I. Quer queiramos ou não, desde o Concílio Vaticano II, a hierarquia se distanciou amplamente da fé e da moral católicas e, como resultado, os fiéis geralmente não podem receber ajuda espiritual sem colocar sua fé em risco. Mesmo no que poderia ser considerado o melhor dos casos – ou mais precisamente o menos pior – dentro dessa corrupção generalizada que é a Igreja Conciliar, ou seja, quando os fiéis têm a possibilidade de recorrer ao ministério de padres pertencentes ao movimento Ecclesia Dei, a contrapartida exigida desses ministros pelo Vaticano representa uma circunstância perigosa para sua fé. Esses ministros são, de fato, obrigados a reconhecer, em princípio, o valor magisterial dos ensinamentos conciliares e pós-conciliares, bem como a legitimidade e a bondade das reformas pós-conciliares, em particular os ritos reformados dos sacramentos e da Missa. Tudo isso, de fato, expõe as almas a relativizar a nocividade dessas mudanças introduzidas na Igreja desde o último Concílio. E dessa relativização, a fé só pode sair diminuída. Para combater essa diminuição da fé, a lei da Igreja reconhece aos sacerdotes preocupados com o verdadeiro bem das almas o direito de praticar os atos de jurisdição exigidos pela necessidade comum. “Logo, em razão da analogia juris e da aequitas canonica, é certo que a Igreja estende amplamente em seu favor o que concede em perigo de morte ou em outros casos de emergência, e que ela compensa em cada caso particular [grifo nosso] a falta de jurisdição de padres fiéis, injustamente privados da jurisdição que, em tempos normais, receberiam por seu ofício ou por delegação.” (12) Tudo depende, portanto, da realidade de um estado de necessidade e da gravidade da nocividade das reformas conciliares. É claro que se pode negar tanto uma quanto outra. Todavia, ainda que as neguem, não podem imputar à FSSPX a intenção de se arrogar, em lugar da hierarquia legítima, um poder que ela não possui.

7. Por fim, em quarto lugar, a FSSPX pretende exercer, assim, a virtude da obediência tal como ela deve permanecer dentro dos seus justos limites: o objeto formal da obediência é, de fato, o preceito emanado da autoridade, desde que este seja moralmente legítimo.  A falta de obediência consiste em recusar-se a conformar-se a esse preceito quando ele é legítimo. O excesso de obediência consiste em cumpri-lo quando ele é ilegítimo. Devemos obedecer às autoridades que, na Igreja, nos pedem para reconhecer a validade da liberdade religiosa, da colegialidade e do ecumenismo, quando aí há erros graves, negando a doutrina católica imposta até o último Concílio pelas declarações mais autorizadas dos Papas e dos Concílios?  É verdadeiramente virtuoso subscrever os ensinamentos das duas Exortações Apostólicas Amoris Laetitia e Evangelii Gaudium, quando a primeira tira conclusões práticas que se opõem aos princípios de disciplina moral sempre recordados pelo Magistério antes do Vaticano II, e a segunda apenas agrava as consequências nefastas da nova eclesiologia, já condenada pelos Papas deste século XX? Seria desobediente alguém que se recusasse a subscrever as recentes declarações do Papa Francisco, segundo as quais “todas as religiões levam a Deus” (13), quando tal afirmação está em contradição direta com o dogma “Fora da Igreja não há salvação” ensinado pelos Papas até Pio XII? Como escrevemos nos números 3 e 4 do nosso primeiro artigo, “a Fraternidade São Pio X vai até os limites da virtude, não aplicando o princípio da obediência diante do abuso generalizado de poder que assola habitualmente a Santa Igreja de Deus desde o Concílio Vaticano II. […]Pois é o próprio princípio da virtude que condena todos os defeitos e todos os excessos que se opõem a ele, e é, portanto, a própria obediência que exige rejeitar as novidades introduzidas na Igreja por ocasião do último Concílio. Assim se expressou D. Lefebvre em uma conferência espiritual dada em Ecône, em 10 de abril de 1981: “Não há ninguém mais apegado à obediência ao Magistério do Papa, dos concílios e dos bispos do que nós. Na Igreja, somos, penso eu, espero eu, e queremos sê-lo, os mais ligados à obediência ao Magistério dos Papas, dos concílios e dos bispos. E é precisamente porque estamos ligados a esse Magistério que não podemos aceitar um magistério que não seja fiel ao Magistério de sempre”.

Uma Atitude Perfeitamente Justificada

8. A atitude da FSSPX se baseia, portanto, tanto em um princípio dogmático-canônico quanto em uma avaliação das circunstâncias atuais: as conclusões práticas às quais adere são, portanto, o resultado lógico de um raciocínio prudente. O princípio dogmático-canônico — que permanece necessário, isto é, verdadeiro, sempre e em toda parte — é o da instituição divina do poder de jurisdição na Igreja, e como seu exercício é regulado pelo direito canônico prevendo as circunstâncias excepcionais em que o bem das almas exige tais atos, não obstante a ausência de poder por parte daquele que os pratica. As circunstâncias atuais – contingentes como todas as circunstâncias, e que nunca são exatamente as mesmas, ontem, hoje e amanhã – são as de estado de necessidade. A prudência sobrenatural, tal como a FSSPX a implementa, não tem, portanto, nada de contrário aos dados divinamente revelados – a menos que se pretenda que a prudência sobrenatural não seja apenas regulada e dirigida, mas “especificada em última instância” pela fé” (14) Ao confundir assim os objetos formais, chegaríamos a sustentar que as conclusões práticas da ação na Igreja são reveladas por Deus, tanto quanto os artigos do Credo… e determinadas de uma vez por todas pelos cânones do Direito da Igreja. Mas somos obrigados a constatar que a contingência ainda tem lugar dentro da ordem sobrenatural, de tal forma que o Direito Canônico prevê situações de exceção, com as medidas proporcionais que elas exigem, neste caso, a de um estado de necessidade.

9. O Pe. Vernier escreve ainda, como um resumo: “A posição da FSSPX não se enquadra apenas em uma compreensão questionável da obediência, mesmo prudente, em tempos de crise, mas também em uma apropriação habitual da jurisdição confiada por Cristo à hierarquia de sua Igreja”. Faltam aqui três distinções importantes: a distinção entre uma “apropriação” de princípio ou de fato; a distinção entre uma “apropriação” diante do poder de jurisdição ou de alguns de seus atos; a distinção entre uma “apropriação habitual” extraordinária ou ocasionada por circunstâncias ou ordinária e realizada em razão da própria natureza da FSSPX ou da Igreja. A FSSPX não se apropria por princípio diante do poder de jurisdição na Igreja, de forma habitual devido à sua própria natureza. A FSSPX é obrigada a apropriar-se dos atos do poder de jurisdição que colocam em perigo a fé e os costumes, de forma habitual, no contexto circunstancial do pós-Vaticano II.

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Outros importantíssimos links sobre o assunto:

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Notas:

(1)    https://claves.org/peut-on-etre-sedevacantiste-sans-le-dire/

(2)    https://claves.org/peut-on-etre-prudentiellement-ecclesiovacantiste-1-2/

(3)    https://claves.org/peut-on-etre-prudentiellement-ecclesiovacantiste-2-2/

(4)    Para ilustrar este ponto, citamos, no n.º 4 do nosso primeiro artigo, a Conferência espiritual proferida por D. Lefebvre em Ecône, em 10 de abril de 1981, que será citada novamente mais adiante. Um estudo atento da posição da FSSPX teria exigido, por parte do padre Vernier, um comentário um pouco mais aprofundado sobre esta declaração.

(5)    D. Lefebvre, “A visibilidade da Igreja e a situação atual“, em Fideliter n.º 66, novembro-dezembro de 1988.

(6)    No n.º 17 do primeiro artigo.

(7)    Cf. o artigo “A Fraternidade, uma obra da Igreja a serviço da verdade” na edição de outubro de 2018 do Courrier de Rome.

(8)    “A Fraternidade, uma obra da Igreja a serviço da verdade“, n.º 2, p. 1, na edição de outubro de 2018 do Courrier de Rome.

(9)    Ordens para uso da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, 2022, pp. 8-9.

(10)  Cânones 882 e 209 do antigo CDC de 1917; cânones 976 e 144 do novo Código de 1983.

(11)  Felice Cappello (1879-1962), sj, é um dos mais famosos canonistas da primeira metade do século XX, unanimemente reconhecido como uma autoridade em matéria de direito da Igreja. Ele ensinou direito canônico na Pontifícia Universidade Gregoriana por quase quarenta anos, de 1920 a 1959, e foi um consultor estimado das Congregações do Concílio, das Igrejas Orientais, da Consistorial e membro da Comissão para a interpretação do Código. A principal de suas obras é um grande Tractatus canonico-moralis de sacramentis juxta Codicem juris canonici, em cinco volumes. O primeiro foi publicado em 1921 pela Marietti, Turim e Roma e pela Universidade Gregoriana. Cada um teve várias edições, aumentadas e melhoradas. Esta obra, de uma amplitude que ultrapassa os manuais dos seminários e escolasticados, é sem dúvida uma das mais necessárias para os estudos superiores de direito canônico e teologia moral; nenhuma outra parece atualmente mais completa e moderna sobre o tema sacramental. Confessor de grande renome, o Padre Cappello morreu em odor de santidade. O processo de sua beatificação foi aberto em 1978 pelo Papa João Paulo, que lhe concedeu o título de venerável.

(12) Ordens para uso da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, 2022, p. 8

(13)  Cf: https://laportelatine.org/actualite/la-neo-pastorale-de-francois ; https://laportelatine.org/actualite/la-neo-pastorale-de-francois-ii

(14)  O Pe. Vernier escreve precisamente: “De fato, a prudência sobrenatural é especificada em última instância pela fé viva, medida pela revelação pública, encerrada com a morte do apóstolo São João: a prudência não pode ser contrária à fé“. Se a prudência é especificada, mesmo que apenas em última instância, pela fé viva, ela deixa de ser o que é e se confunde com as virtudes teologais. É verdade que, mantendo-se a distinção entre os objetos formais e especificadores e, com ela, a distinção entre as virtudes, aquele que age, numa mesma operação considerada globalmente, pode, nessa mesma operação, suscitar ao mesmo tempo o ato de uma virtude (por exemplo, um ato de força, como o martírio) sob o comando do ato de outra virtude (por exemplo, a prudência, a caridade ou mesmo a fé), caso em que o mesmo ato já provocado por uma virtude (aqui, a força) é dito “imperativo” pelo ato de outra (aqui, a prudência, a caridade ou a fé). Mas o objeto do ato da virtude imperante, se ele dá uma nova espécie à operação global do agente, deixa intacta a espécie fundamental dada a essa operação pelo objeto do ato elícito. Assim, observa Santo Tomás (Suma Teológica, 1a2ae, questão 18, artigo 6, corpus) – Aristóteles pôde dizer que “aquele que rouba para cometer adultério é mais adúltero do que ladrão“, mas… ladrão mesmo assim. Assim também, aquele que reflete antes de agir para manter a fé é mais inspirado pela fé do que pela prudência, mas continua sendo prudente. Na realidade, o que é “especificado em última instância” pela fé viva não é a prudência, mas a operação global daquele que age unicamente em nome da prudência e da fé.