Xilogravura do século XVI representando os 15 mistérios do Rosário
1 – O Rosário, tal como ele foi recitado desde a época de São Domingos (entre 1170 e 1221), ou seja, desde oito séculos, deu inumeráveis provas de sua eficácia sobrenatural, tanto no plano individual (é um instrumento poderoso de santificação, graças ao qual o Céu se povoou e se povoará até o fim do mundo de inumeráveis eleitos), como no plano social e político, assegurando a vitória da Cristandade sobre os inimigos da verdadeira Fé (cátaros, muçulmanos e protestantes em particular: toda a história da Igreja desde o século XIII testemunha isto). Portanto, já que o Santo Rosário mostrou sua perfeita eficácia durante oito séculos, assegurando a salvação das almas e da Igreja militante, não há nenhuma razão para modificá-lo substancialmente. Além disto, nas últimas aparições de Fátima, reconhecidas pela Igreja, às quais o Papa (João Paulo II, n.d.t.), se refere na sua carta apostólica (Rosarium Virginis Mariae, §7), a Santíssima Virgem pede, em cada uma de suas aparições, a recitação quotidiana do Rosário tal como sempre se praticou.
2 – O Antigo Testamento contêm 150 Salmos, que formam a trama do Ofício Divino ou breviário, ao qual são obrigados à recitação diária todos os padres, em honra da Santíssima Trindade e de Nosso Senhor Jesus Cristo. Este Ofício Divino é concebido de tal forma que, a cada semana, o padre recita ao menos uma vez cada Salmo. O Rosário, com as suas 150 Ave Marias, recitadas em honra de Nossa Senhora, sempre foi considerado, dentro do espírito da Igreja, como algo semelhante ao Ofício Divino; por causa disto, ele foi chamado “o Saltério de Nossa Senhora”, o que tinha a vantagem de sublinhar o lugar especial e único ocupado por Nossa Senhora na devoção da Igreja, e por consequência o culto particular que se deve render à Santíssima Virgem Maria: o culto de hiperdulia.
Mesmo o Papa sublinha esta correspondência entre as 150 Ave Marias do Rosário e os 150 Salmos do Antigo Testamento (Ibid. §19). Porque então acrescentar 5 novos mistérios, fazendo assim o Rosário passar a 200 Ave Marias, o que vem a provocar confusão, e rompe a bela simetria que exprimia tão bem a verdadeira devoção da Igreja em toda a sua riqueza tão perfeitamente ordenada?
3 – Assim também, existe uma eloquente correspondência entre os quinze mistérios do Rosário e os tempos mais importantes do ano litúrgico:
– Os cinco mistérios gozosos, quem têm por centro a encarnação e natividade de Nosso Senhor, fazem eco aos tempos litúrgicos do Advento e do Natal.
– Os cinco mistérios dolorosos nos fazem mergulhar no espirito do tempo da Quaresma, que é toda orientada para a paixão de Nosso Senhor e sua morte na Cruz.
– Finalmente, os cinco mistérios gloriosos lembram a nossas almas o tempo Pascal e seu espírito cheio de alegria e de esperança sobrenatural[1].
No entanto, enquanto que o ano litúrgico tem por fim “fazer que o cristão compartilhe, estação por estação e quase dia a dia, os sentimentos de Cristo em seus diferentes mistérios, fazendo assim o homem viver da vida em Deus[2], o Rosário considera os principais mistérios da vida de Nosso Senhor de uma outra maneira: “Dando uma atenção bem explícita ao lugar que Nossa Senhora aí ocupa[3].” Em consequência, o ano litúrgico e o Santo Rosário, complementares um do outro, têm um lugar bem definido na vida cristâ: (…) A liturgia não suprime o Rosário, que tem um caráter próprio e irredutível[4].” Propor cinco novos mistérios, que giram em torno de Nosso Senhor e nos quais Maria está quase ausente[5], “ a fim de dar uma consistência claramente mais cristológica ao Rosário[6], leva a desnaturar este último porque não respeita a sua especificidade, e isto é muito grave. Existe aí um perigo muito real que pode conduzir a um novo desprezo do Rosário e a novos ataques contra sua utilidade na vida cristâ: se se tira do Rosário seu “caráter próprio e irredutível”, ele se tornará inútil para muitos, pois ele será considerado como uma duplicação da liturgia.
4 – Estes novos mistérios com uma “consistência cristológica” diminuem o caráter mariano do Rosário, obscurecendo com um só golpe o lugar único que ocupa Maria no plano da Redenção: o papel de mediadora universal de todas as graças, em virtude de sua Corredenção ao pé da Cruz. De fato, no texto da carta apostólica do Papa, não encontramos nem uma só vez mencionados os termos de “Maternidade Divina e Virginal”, “Imaculada Conceição”, “Corredenção”, “Mediadora Universal de todas as Graças”, que se referem aos privilégios únicos que recebeu a Santíssima Virgem, dos quais os dois primeiros são dogmas de fé definidos, um deles desde o ano 431 no Concílio de Éfeso, e o outro em 1854 pelo Papa Pio IX. Somente o privilégio da Assunção é mencionado uma só vez, no número 23 da carta apostólica.. Tem-se a clara impressão de que o Papa procura evitar o emprego de termos que desagradem aos protestantes, e que possam criar novos obstáculos ao ecumenismo conciliar, ao mesmo tempo tentando tornar aceitável a esses mesmos protestantes um Rosário revisto e corrigido que permite “aprofundar a implicação antropológica do Rosário, uma implicação mais radical do que parece à primeira vista. Quem quer que se ponha a contemplar Cristo, fazendo memória das etapas de sua vida, não pode deixar de descobrir também nele a verdade sobre o homem. É a grande afirmação do concílio Vaticano II, que frequentemente foi objeto de meu magistério, desde a encíclica Redemptor Hominis: “Na realidade, o mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo Encarnado” (…). Pode-se assim dizer que cada mistério do Rosário, bem meditado, esclarece o mistério do homem[7]”. Convenhamos, numa tal perspectiva, não resta muita coisa da devoção mariana tradicional tal como a Igreja sempre compreendeu e encorajou!
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[1] – O pe. Pius Parch, na introdução de seu livro O Guia do Ano Litúrgico, faz esta bela comparação: “A viagem através do ano eclesiástico assemellha-se a uma excursão nas montanhas. Devemos escalar duas montanhas: a primeira é a do Natal. E depois a montanha principal da Páscoa. Nos dois casos, existem:
– Uma subida: é o tempo da preparação; O Advento, preparação para o Natal; a Quaresma, preparação para a Páscoa.
– Um caminho nas alturas, de uma cume a outro: do Natal até a Epifania; da Páscoa até Pentecostes.
– E uma descida na planície: os domingos depois da Epifania; os domingos depois de Pentecostes.
Pode-se constatar que onze dos quinze mistérios tradicionais do Rosário nos permitem subir ou estacionar sobre as alturas das quais nos fala o pe. Pius Parch, enquanto que os novos mistérios luminosos não se encontram, afora o quinto, nos tempos litúrgicos nos quais culmina o ano eclesiático, e não retomam um tempo litúrgico preciso, destruindo assim a correspondência entre o Rosário e o ano litúrgico.
[2] – Citação de D. Festugière, tirada de seu livro La Liturgie Catholique.
[3] – Citações tiradas do artigo do pe. Calmel OP intitulado : « Dignité du Rosaire », publicado no nº 62 da revista Itinéraires, abril 1962, pág.142.
[4] – Pe. Calmel, ibid.
[5] – Nossa Senhora está totalmente ausente de quatro dos cinco mistérios luminosos, e mesmo que ela esteja presente às bodas de Caná, nós não somos convidados explicitamente a contemplar o papel que ela exerce neste episódio, mas tão somente Jesus Cristo na sua auto-revelação. O Papa aliás viu bem esta dificuldade e tentou responder à objeção no fim do número 21 da carta apostólica, explicando que se “nos mistérios [luminosos], com exceção de Caná, Maria só está presente em segundo plano, (…) a função que ela exerce em Caná acompanha, de uma certa maneira, todo o percurso de Cristo”. Mas toda esta explicação é pouco convincente! Alguns poderiam objetar que Maria não está ao lado de seu Filho nos três primeiros mistérios dolorosos. A este respeito, convêm compreender que na mediação do conjunto dos mistérios dolorosos, nós somos convidados a contemplar a Virgem das dores, Corredentora do gênero humano ao pé da cruz; esta Corredenção de Nossa Senhora tinha sido profetizada pelo velho Simeão no episódio da apresentação do Menino Jesus no templo (quarto mistério gozoso), quando ele diz a Maria “e a vós, uma espada transpassará a vossa alma, e assim serão revelados os pensamentos ocultos no coração de um grande número” (Lc. 2, 35). Assim a continuidade entre os mistérios gozosos e os mistérios dolorosos é bem destacada, e esta continuidade se encontra rompida se se intercala os mistérios luminosos, já que Maria, por uma disposição da providência divina, é quase ausente da vida pública de Nosso Senhor, a fim de bem significar que sua missão não era a mesma que a dos apóstolos. O pe. Calmel, concluíndo seu artigo “Dignidade do Rosário”, já citado, assinala muito bem a importância capital da corredenção de Maria na meditação dos mistérios dolorosos: “O Rosário é uma oração de compaixão porque ele se dirige à Virgem Dolorosa que sofreu infinitamente ao pé da Cruz pela redenção da humanidade.”
[6] – Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae § 19
[7] – Rosarium Virginis Mariae §24. A citação do Concílio Vaticano II é extraída da constituição pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno Gaudium et Spes, nº 22.