Do pecado original, que contraís através do pai e da mãe na concepção, restou-vos somente uma cicatriz. Ela é apagada, embora não completamente, pelo batismo, ao qual o Sangue de Cristo concedeu a virtude de infundir a vida da graça. Quando alguém é batizado, imediatamente cancela-se o pecado original e infunde-se a graça; a inclinação para o pecado, descrita antes como uma cicatriz, fica enfraquecida e submetida ao controle da pessoa. Assim, o homem dispõe-se a receber e aumentar a graça em si mesmo. O resultado, para mais ou para menos, depende do seu esforço em servir-me com amor e anseio. Embora possuindo a graça batismal, a pessoa pode encaminhar-se livremente para o bem ou para o mal. É ao atingir o uso da razão que praticará o bem ou o mal, conforme agradar ao arbítrio de sua vontade.
Aliás, tão grande é a liberdade humana, de tal modo ficou fortalecida pelo precioso Sangue de Cristo, que demônio ou criatura alguma pode obrigar alguém à menor culpa, contra o seu parecer. Acabou-se a escravidão; o homem ficou livre. Agora, ele pode dominar a sensualidade e chegar à meta para a qual foi criado. Ó homem infeliz, que prazerosamente te enlameias no lodo, como um animal, e não reconheces os imensos favores que te dei! Pobre criatura! Mais não poderias receber, e no entanto vives cheia de misérias!
Minha filha, procura compreender! Ao obter a graça, os homens são recriados no Sangue do meu Filho unigênito. Como disse, a graça foi restituída aos homens; mas se não a aceitam, passarão do mal para o pior. Desprezando meus benefícios, de pecado em pecado me ofendem. Além de não reconhecerem o auxílio da graça, até acham que cometo ofensas; afirmam que não desejo a sua santificação! Pois bem, quero esclarecer: semelhantes pessoas merecem um castigo mais severo! Agora que tiveram a redenção mediante o Sangue de meu Filho, a punição será mais grave do que antes, quando ainda não fora cancelada a ferida causada pela culpa de Adão.
É razoável que produza mais frutos aquele que mais recebeu; é razoável que seja maior sua dívida diante daquele de quem recebeu. Muito já me devia a humanidade. Dera-lhe o ser, ao criar o homem a minha imagem e semelhança. Então ele possuía a obrigação de dar-me glória. Recusou-se a fazê-lo, glorificou a si mesmo, não aceitou a obediência por mim imposta, tornou-se meu inimigo. Então, com humilhação, destruí sua soberba. Humilhei-me (em Cristo), assumi vossa natureza, libertei-vos da escravidão do demônio, tornei-vos livres. Se prestares atenção, não somente vos fiz livres; de fato o homem tornou-se Deus e Deus se fez homem, graças à união (hipostática) da natureza divina com a humana.
O tesouro do Sangue, pelo qual a humanidade foi recriada ficou sendo uma dívida. Entendes, pois, como depois da redenção, o homem tem maior obrigação para comigo. Devem-me glória e louvor. Uma dívida de amor para comigo e o próximo, que é paga quando as pessoas seguem as pegadas de meu Filho unigênito, Palavra encarnada, mediante a prática das virtudes interiores, das quais já falei (2.8).
Por causa desta obrigação de amar-me muito, em caso negativo, o pecado é maior. Eis a razão por que minha justiça divina pune com pena maior, com a condenação eterna. O cristão infiel padecerá mais que o homem não batizado. Embora sem destruí-lo, por justiça divina o atormenta mais o fogo. Como? Pelo tormento e aflição do remorso. Sem destruí-lo, porque os condenados (ao inferno) não são aniquilados por nenhum de seus padecimentos. Digo-te que eles bem que pedem sua destruição, mas não a alcançam, pois jamais serão reduzidos ao nada. Devido à culpa, perderam o ser da graça, não o ser da natureza.
Desse modo, após a redenção da culpa é punida com mais rigor do que antes. Os redimidos receberam mais. No entanto, parece que não se preocupam com isso, não temem os próprios pecados. Tornaram-se inimigos meus, embora resgatados pelo Sangue do meu Filho.
O Diálogo – Santa Catarina de Sena