Fonte: Courrier de Rome nº 679 – Tradução: Dominus Est
Pelo Pe. Jean-Michel -Gleize, FSSPX
Esse texto é continuação do: A FRATERNIDADE SÃO PIO X: SOB ARTILHARIA DE SEIS OBJEÇÕES
1. Observemos também, como que para concluir, que a leitura que o Padre Vernier faz de nossa tese é surpreendente. Pois em pelo menos três pontos a avaliação que ele faz é, se não uma extrapolação, pelo menos um mal-entendido difícil de entender.
Negar a indefectibilidade da Igreja?
2. O mais importante e o mais grave desses mal-entendidos consiste em nos imputar a negação prática da indefectibilidade da Igreja. Ao descrever qual seria a posição da FSSPX como a apresentaríamos, o Padre Vernier escreve: “Se o dogma da indefectibilidade da Igreja e suas implicações necessárias permanecem sempre teoricamente válidos, mesmo em tempos de crise provocada pela hierarquia, algumas de suas implicações práticas podem deixar de ser aplicadas em virtude da prudência. De fato, para o nosso autor, como essas implicações não parecem absolutamente necessárias, ele admite que a posição da FSSPX difere apenas prudencialmente do alegado sedevacantismo oculto”.
3. No entanto, essa citação é dada na nota 5 de nosso artigo na edição de abril de 2024 do Courrier de Rome, onde escrevemos exatamente o seguinte: “O zelo do Padre Vernier, sem dúvida, tem algo de cavalheiresco, e o ardor com que ele se propõe a destruir qualquer coisa que possa parecer lançar dúvidas e pôr em perigo o dogma da indefectibilidade da Igreja, bem como sua visibilidade, teria, em outras circunstâncias, merecido aprovação irrestrita. Infelizmente, esse zelo e esse ardor são claramente desproporcionais às circunstâncias da crise que ainda assola, e se agrava cada vez mais, dentro da santa Igreja”.
4. Basta ler para perceber que a acusação que nos é imputada é falsa. Em nossa opinião, o que “em outras circunstâncias teria merecido aprovação irrestrita” e que claramente parece “desproporcional, tendo em vista as circunstâncias da crise que ainda assola, e se agrava cada vez mais, dentro da santa Igreja”, certamente não é o dogma(1) da indefectibilidade da Igreja. Não é nem mais nem menos do que o “zelo” e o “ardor” com que o Padre Vernier pretende “derrubar qualquer coisa que pareça lançar dúvidas sobre ela e colocá-la em risco”. É claro que a indefectibilidade da Igreja é uma verdade à qual os católicos devem aderir, tanto hoje como no passado, e que deve permanecer objeto de aprovação irrestrita em todas as circunstâncias. Não negamos isso, muito pelo contrário. Até escrevemos um artigo na edição de setembro do Courrier de Rome para explicar em que ela consiste e como deve ser justificada aos olhos do católico de hoje, por mais perplexo que ele possa estar.
5. A indefectibilidade da Igreja (como toda verdade que requer o assentimento dos católicos) é uma coisa, mas a maneira pela qual ela é defendida em um determinado contexto é outra. Queríamos dizer que a maneira como o Padre Vernier defende essa verdade é nem mais nem menos do que desastrada, porque, ao defender essa verdade, ele não leva suficientemente em conta as dificuldades reais que poderiam levar alguém a acreditar que a Santa Igreja está falhando. De fato, não é suficiente reafirmar uma verdade, mesmo em grande escala e mesmo com todo o peso que lhe dá a autoridade do Magistério da Igreja, para estabelecê-la na mente dos leitores ou ouvintes, quando eles são confrontados com aparências que vão contra essa verdade e podem levá-los a acreditar que a realidade é bem diferente. É importante levar essas dificuldades a sério, para mostrar que elas não podem invalidar a verdade ou deixar espaço para dúvidas, mesmo que por um único momento. E, nesse caso, é importante olhar a realidade de frente: desde o último Concílio, o comportamento e o discurso dos homens da Igreja têm se tornado cada vez mais escandalosos, a ponto de hesitarmos em dizer que a Igreja continua sendo o que sempre foi. Basta pensar nas últimas declarações do Papa Francisco, que disse sem rodeios que toda religião leva a Deus e que em toda fé há inspiração divina(2). No contexto pós-Vaticano II, a Igreja permanece indefectível, mas ainda precisamos argumentar para dissipar as falsas aparências que trabalham contra ela. Parece-nos que o zelo do Padre Vernier, por mais ansioso que ele esteja em atacar as posições da FSSPX, fica aquém desse ponto.
6. Longe de negar a indefectibilidade da Igreja ou minimizar suas implicações práticas, nossa intenção foi apenas apontar certas deficiências naqueles que procuram enfatizar sua importância.~
Uma postura puramente prudencial?
7. O segundo desses mal-entendidos diz respeito ao alcance da atitude adotada pela FSSPX, seguindo os passos de seu fundador, o Arcebispo Dom Marcel Lefebvre. “A linha de conduta da FSSPX”, escreve o Padre Vernier, “não é estritamente uma posição doutrinária, mas sim prudencial”. Em seguida, ele expressa surpresa, como se isso fosse uma contradição, pelo fato de que “a FSSPX não deixa de qualificar, por uma questão de princípio, como ‘conciliar’ ou ‘rallié’, sem distinção, todos os membros e fiéis de comunidades tradicionais que não compartilham de sua posição prudencial? Seria prudente julgá-los de forma tão dogmática, a ponto de colocar em questão a integridade de sua fé e tornar essas comunidades dissidentes da Tradição?” Aqui, novamente, no entanto, uma citação é dada na nota 7 de nosso comentário na edição de abril de 2024 do Courrier de Rome (no nº 17), onde escrevemos exatamente o seguinte: “A ‘posição’ — nº 2, de acordo com o Padre Vernier — ainda seguida pela Fraternidade Sacerdotal São Pio X não é uma posição de forma alguma. Pois não é, precisamente, uma ‘posição’ no sentido de um princípio dogmático. […] De um problema que, aos olhos da Fraternidade São Pio X, surge essencialmente de um ponto de vista prático e prudencial, o Padre da Fraternidade São Pedro faz dele um problema dogmático”.
8. Os problemas que surgiram para a consciência dos fiéis católicos desde o Concílio Vaticano II são de duas ordens muito diferentes. Em primeiro lugar, há o problema dos graves erros, contrários à Tradição, introduzidos nos textos do próprio Concílio, bem como nos ensinamentos dados pelos homens da Igreja após esse Concílio e nas reformas empreendidas por eles. Depois, há o problema da autoridade de que esses homens da Igreja normalmente deveriam gozar, e que podemos hesitar em reconhecer, já que eles são os arquitetos dos erros mencionados. Um problema duplo, por assim dizer, dos erros e dos autores dos erros. E esses são dois problemas diferentes. O primeiro problema é obviamente um problema dogmático, portanto teórico ou especulativo e não prático, pois é uma questão de determinar a verdade para aderir a ela e também determinar o erro para rejeitá-lo. O segundo problema, por outro lado, é um problema prudencial, de natureza prática, porque é uma questão de determinar não a verdade, mas a conduta a ser adotada em relação àqueles que aderem ao erro, especialmente os homens da Igreja, normalmente investidos de autoridade. Com relação a estes últimos, a questão é se devemos continuar a reconhecer sua autoridade ou se, ao contrário, devemos considerar que eles não representam mais os legítimos ministros de Deus. E, de modo mais geral, com relação aos fiéis da Igreja que seguem as novas orientações desde o Concílio, a questão que surge é como considerá-los: eles ainda são católicos ou são modernistas? E se forem, devem ser tratados como tal, sendo considerados fora da Igreja?
9. Nosso propósito aqui, que supostamente seria responder à acusação de sedevacantismo oculto, era apenas responder à segunda pergunta, não à primeira. É uma questão de prudência, uma questão de decidir que atitude adotar em relação aos homens investidos de autoridade na Igreja. Na opinião de Mons. Lefebvre, a coisa mais sábia a fazer é reconhecê-los como representantes legítimos de Deus e recusar-lhes obediência indevida quando, em suas ações, eles vão contra a Tradição e as prescrições de seus predecessores. O caminho mais sábio é também reconhecer como membros da Igreja, até que haja prova clara do contrário, os fiéis que se consideram católicos e que são enganados ao seguir as novas diretrizes desses homens da Igreja. Nisso, a FSSPX não é de modo algum sedevacantista. E não é sedevacantista apenas recusar a obediência indevida em nível de atos praticados pela autoridade.
10. A resposta à primeira pergunta, que é doutrinária, é bem diferente. Portanto, é uma questão de medir o escopo dos erros, e é aqui que as designações mencionadas entram em ação. Ao falar de “conciliares” ou de “comícios”, não pretendemos qualificar uma atitude prudencial, que seria a daqueles que continuam a reconhecer o Papa e os bispos como legítimos pastores — atitude que, aliás, é a mesma da FSSPX. Essas expressões pretendem qualificar aqueles que, de uma forma ou de outra(3), dão seu apoio aos erros, embora reconheçam um valor propriamente magisterial aos ensinamentos do Concílio e aos do período pós-conciliar. Aqui, a escolha não é prudencial, mas verdadeiramente dogmática, e, portanto, não é prudencialmente, mas dogmaticamente, sim, e à luz da doutrina de toda a Tradição, que qualificamos a adesão desses fiéis aos graves erros apontados. E assim julgamos os atos de adesão, públicos e notórios, não as pessoas, cuja boa ou má fé, e menos ainda suas intenções, ninguém conhece realmente.
11. Finalmente, nossa avaliação da posição sedevacantista corresponde à resposta à segunda pergunta, relativa ao problema muito prático de saber como reagir em relação às autoridades do modernismo. Escrevemos precisamente, em uma passagem que o Padre Vernier cita na nota 6: “O sedevacantismo afirma que, de fato, tal pessoa eleita e designada bispo de Roma não recebeu o sumo pontificado. Ela não nega que ele possa recebê-lo posteriormente, nem que outros possam tê-lo recebido e de fato o tenham recebido. […]. Tal posição, portanto, não é direta e formalmente herética. No máximo, ela representa um pecado contra a prudência, não um pecado contra a fé”. Dogmaticamente, a posição sedevacantista não implica direta e formalmente a negação do dogma do Primado. Em nível prático, representa um grave erro contra a prudência, porque pode levar indiretamente à negação da indefectibilidade da Igreja, ao afirmar a privação habitual de sua cabeça visível. Por outro lado, não resolve, mas agrava as dificuldades causadas pela crise da Igreja. É por isso que, nesses dois pontos, o erro do sedevacantismo representa, antes de tudo (não segundo uma ordem de gravidade, mas segundo uma ordem de progressão lógica), uma imprudência, ou seja, uma atitude prejudicial em nível prático. No nível dogmático, entretanto, essa atitude pode ser explicada por uma preocupação — reconhecidamente inoportuna — de se precaver contra erros, uma atitude que é louvável em si mesma, desde que não seja inoportuna, tal como é o caso do sedevacantismo. Por causa dessa imprudência, o sedevacantismo acabou caindo dogmaticamente no erro contra o qual estava tentando se proteger, e acabou negando a necessidade de uma cabeça visível para a Igreja.
12. É também por isso que não podemos concordar com o Padre Vernier quando ele escreve que “a FSSPX se distingue apenas prudencialmente do sedevacantismo oculto que ela reivindica”. O Padre Vernier entende isso no sentido de que a FSSPX admite, como o sedevacantismo, que algumas das implicações práticas da indefectibilidade da Igreja podem deixar de se aplicar em virtude da prudência. Desse modo, a FSSPX teria feito a escolha prudencial de um sedevacantismo oculto e, assim, se diferenciaria do sedevacantismo propriamente dito, notório e explícito, em virtude apenas dessa escolha de natureza prática. Já dissemos anteriormente o que se deve pensar dessa imputação(4). Acrescentemos aqui que, se qualificarmos o sedevacantismo dizendo que ele é, em sua raiz, um erro de natureza prática, isso não significa de modo algum que ele não implique (em seus pressupostos ou em suas consequências) erros de natureza dogmática. E, tanto quanto, se não mais, do que no nível prático da prudência, é também nesse nível dogmático que a FSSPX se difere dele. Mons. Lefebvre disse: “A questão da visibilidade da Igreja é necessária demais para sua existência para que Deus a omita por décadas; o raciocínio daqueles que afirmam a inexistência do Papa coloca a Igreja em uma situação inextricável”(5).
Resistência indevida?
13. O terceiro desses mal-entendidos ocorre quando o Padre Vernier pensa ver uma contradição no exemplo que demos. “Para nos lembrar da gravidade da crise que a Igreja está atravessando atualmente”, escreve ele, “o Padre Gleize menciona um bom número de prelados ou teólogos dominicanos, em comunhão visível com o Papa Francisco e a hierarquia eclesiástica, que expressaram respeitosamente suas dúvidas ou suas críticas em relação às novidades introduzidas por alguns documentos romanos, de valor magisterial ou disciplinar desigual”. […] “O teólogo da FSSPX”, conclui, “portanto, reconhece na prática que se pode ser reconhecido pela hierarquia eclesiástica e obedecê-la em princípio, sem necessariamente ser cúmplice de suas possíveis deficiências”.
14. A conclusão do Padre Vernier aqui vai além das premissas. De fato, o exemplo alegado está lá para indicar, pelo menos na intenção e no contexto de nosso argumento, a gravidade dos erros que exigem uma reação. Com efeito, se até mesmo prelados e teólogos que supostamente apoiam o suposto “magistério” do Vaticano II acabam reagindo de maneira crítica, isso não é uma indicação de que os erros apontados devem ser levados em consideração e isso não dá razão à reação da FSSPX, que não está mais isolada em sua análise dos problemas doutrinários levantados na esteira do Concílio?
15. Há apenas um exemplo aqui, que atesta nem mais nem menos do que isso: outros além dos membros da FSSPX estão tomando consciência dos desvios doutrinários, à medida que são fomentados pelos homens investidos de autoridade na Igreja, e pelo primeiro entre eles, o próprio Papa. Outra questão é se essa conscientização, se expressa apenas por meio de comentários críticos — e, infelizmente, por meio de palavras vazias —, seria suficiente para escapar da cumplicidade. Com relação aos pontos levantados, não é verdade que, pelo simples fato de expressar críticas, alguém possa “obedecer por princípio, sem necessariamente ser cúmplice de quaisquer falhas”, falhas no ensinamento oferecido por membros da hierarquia. Isso é uma de duas coisas. Ou a crítica rejeita a cumplicidade e leva necessariamente à rejeição da obediência: essa é a atitude das Conferências Episcopais da África e de Madagascar(6), com relação à Declaração Fiducia supplicans, expressa em um documento resumido publicado a pedido do Cardeal Ambongo em 11 de janeiro de 2024, onde se afirma sem rodeios: “Não haverá bênção de duplas homossexuais nas igrejas da África, porque tais uniões são contrárias à vontade de Deus”. Outro exemplo de uma atitude crítica incompatível com a obediência: o Arcebispo Maior de Kiev-Galitzia, Primaz da Igreja Greco-Católica Ucraniana, Dom Sviatoslav Chevtchouk, emitiu uma declaração na sexta-feira, 22 de dezembro de 2023, afirmando que a declaração Fiducia supplicans não seria aplicada em sua Igreja(7). Quanto à Conferência Episcopal Holandesa, ela simplesmente decidiu aplicar essa mesma Declaração apenas com a condição de que os títulos sejam corrigidos, para eliminar qualquer coisa que se oponha à vontade de Deus(8). Finalmente, o artigo publicado na Revue thomiste chegou à seguinte conclusão: “Quando os superiores descarregam sua responsabilidade sobre os inferiores, os inferiores acabam carregando toda a carga. Em cada caso difícil, os padres terão de ‘carregar em sua consciência o peso da decisão que foram obrigados a tomar sozinhos’”(9). Deve-se reconhecer que, mesmo que relativamente discreta em comparação com as dos prelados já mencionados, essa reação dos padres dominicanos não pode ser entendida como um incentivo à obediência. A alternativa seria expressar reservas e ainda assim obedecer: mas, ao obedecer, como podemos evitar a cumplicidade?
16. O argumento do Padre Vernier nos parece aqui, como nos outros dois pontos mencionados, literalmente irrelevante.
Notas
1. Na medida em que existe um dogma. A esse respeito, o leitor pode consultar o artigo da edição de setembro de 2024 do Courrier de Rome intitulado “A Igreja é indefectível”, disponível em https://catolicosribeiraopreto.com/a-igreja-e-indefectivel/.
2. Cf. https://catolicosribeiraopreto.com/a-neo-pastoral-de-francisco/ ; https://catolicosribeiraopreto.com/a-neo-pastoral-de-francisco-parte-ii/ ; https://catolicosribeiraopreto.com/%E2%80%A2a-neo-pastoral-de-francisco-parte-iii/
3. É possível que os “conciliares” adiram a esses ensinamentos errôneos por convicção, enquanto os “ralliés” os subscrevem mais por estratégia e para evitar o que eles consideram — erroneamente — um cisma. Mas essa é outra questão.
4. Cf. os números 2 a 6 do presente artigo.
5. Mons. Lefebvre, Conferência em Ecône, 05 de outubro de 1978.
6. Cf. https://fsspx.news/fr/news/le-continent-africain-repousse-fiducia-supplicans-41876
7. Cf. https://fsspx.news/fr/news/ukraine-leglise-greco-catholique-soppose-fiducia-supplicans-41709
8. Cf. https://fsspx.news/fr/news/pays-bas-la-conference-episcopale-reagit-fiducia-supplicans-42011
9. Cf. https://fsspx.news/fr/news/la-revue-thomiste-critique-severement-fiducia-supplicans-42090