A CONDENAÇÃO DO MODERNISMO POR SÃO PIO X

Fonte: Permanencia

Apesar dos inevitáveis males que acompanham toda crise, o modernismo foi benéfico ao mostrar-nos um santo e um Papa em ação como nunca se tinha visto na história já maravilhosa da Igreja. São Pio X não só era um santo, mas um Papa santo, algo que o mundo não via há quatro séculos. Embora não ostentasse os títulos nobiliárquicos ou a consumada diplomacia de Leão XIII, São Pio X nada tinha de pequeno cura de aldeia obscurantista, como seus detratores tanto apreciavam descrevê-lo. Em um pontificado de pouco mais de dez anos, em meio às mais perigosas crises que a Igreja atravessava, esse veneziano conduzirá a barca de Pedro com mão de mestre. Será qualificado de retrógrado por ter feito ouvidos moucos às sereias modernistas que preconizavam o «Evangelho puro» e profetizavam que a Igreja deveria mudar ou morrer. E, não obstante, poucos pontífices terão merecido como ele o título de reformador, pelos enormes progressos que fez em campos tão diversos como os estudos eclesiásticos, o direito canônico, a Sagrada Bíblia e a liturgia. 

Não obstante, antes de ser um reformador sem par, foi, primeiramente, um conservador. Sua mais bela insígnia é a de ter prontamente obedecido às exortações imperativas do Apóstolo dos Gentios de guardar fielmente o depósito da Fé contra todas as dificuldades, contra os governos iníquos e contra os modernistas infiltrados dentro da Igreja. A clarividência do supremo médico das almas rivalizou com a segurança e firmeza de sua mão para aplicar o heróico tratamento que produziu a cura. O cardeal Mercier diz elogiosamente de seu Papa: 

«Se, no surgimento de Lutero e Calvino, a Igreja contasse com pontífices da têmpera de Pio X, a Reforma teria conseguido afastar de Roma um terço da Europa Cristã? Pio X salvou a Cristandade do perigo imenso do modernismo, ou seja, não de uma heresia, mas de todas as heresias ao mesmo tempo» 1. 

Essa têmpera, São Pio X a devia à sua fé, tão iluminada quanto a dos melhores teólogos, tão firme quanto a de uma camponesa bretã. Esse santo Papa acreditava que a razão humana é capaz de conhecer a verdade. Cria na historicidade dos Evangelhos. Cria em Jesus Cristo, único Salvador e verdadeiro Deus. Por isso não podia deixar que a lama modernista fizesse tábula rasa da razão e da religião em proveito de uma vaga teoria sem verdade, sem Deus e sem Cristo. 

Loisy é o mestre dessas teorias. Vimos como as autoridades locais, e depois as de Roma, haviam reagido desde os princípios de 1903. Entretanto, os espíritos estavam longe de se acalmar. Não é de estranhar que as autoridades supremas se vissem obrigadas a desferir um grande golpe e travar um duelo mortal contra a apostasia generalizada. Para vermos em profundidade a oposição romana ao movimento, primeiro devemos tentar medir a amplitude e extensão da crise, para depois estudar, com maior riqueza de detalhes, os três documentos pontifícios que se referem à crise, e ressaltar, por fim, a experiência que a Igreja tirou dela. 

Gravidade da crise modernista 

Até o momento fixamos nossa atenção nos movimentos modernistas do primeiro escalão, quer dizer, sobretudo os de França, que foi, sem dúvida alguma, o berço e o principal foco da sua irradiação. Agora temos que avaliar a crise no estrangeiro. Tyrrell, da sua parte, transmitia ao seio do mundo britânico as idéias que ele mesmo havia recebido de seus amigos do outro lado do Canal da Mancha. 

Na Itália, as correntes modernistas que vinham da França e da Inglaterra propagavam-se em ondas impetuosas. Pouco disposta às iniciativas intelectuais por seu temperamento impetuoso e superficial, a Itália católica estava preparada, por outro lado, para uma rápida assimilação das idéias que se produziam em outros países. Os Studi religiosi surgiam pela primeira vez em 1901, em Florença, para apresentar os leitores aos resultados da ciência moderna. Minocchi representava a crítica bíblica nesse periódico; o barnabita Semeria tratava das origens cristãs; e Buonaiuti, já muito influente nos meios romanos, dava seus primeiros passos na filosofia da religião. Este último, com apenas vinte e quatro anos, iria fundar a Rivista storico-critica delle scienze teologiche, onde abordaria, com a mesma eloqüência, a filosofia da religião, a história dos dogmas e a história das religiões. A grande novidade foi o movimento democrático lançado com veemência por Murri, e que não tardaria em ganhar grande amplitude. Desde 1905, Murri traduzia as obras de Tyrrell utilizando um pseudônimo. Toda essa gente popularizava, com paixão e eloqüência tipicamente italianas, as obras eruditas de outros países. Um literato, o senador Antônio Fogazzaro (1842-1911)2, se fez de intérprete dessas diversas aspirações de tornar aceitável à geração presente o princípio da adaptação em seu romance O Santo (Milão, 1905). Era um resumo (bastante medíocre do ponto de vista literário, diga-se) do que era mais essencial no pensamento de Blondel, Laberthonnière, Loisy e Tyrrell.

À expansão do modernismo no mundo católico acrescentava-se a intensidade, a densidade e o grande número de polêmicas que caracterizavam o conjunto do movimento como uma crise dentro da Igreja. Em todos os campos — filosofia e psicologia religiosas, exegese, história dos dogmas — o pensamento católico dava impressão de ter perdido o seu centro. Isso significa que o espírito de modernidade soprava de todos os lados e sob todas as formas possíveis. Desde o surgimento dos calamitosos livrinhos vermelhos de Loisy, a confusão era lamentável em certos ambientes. Publicações mais do que ousadas, onde o anonimato favorecia o surgimento das idéias mais temerárias, alimentavam periodicamente a agitação e a confusão. Poder-se-ia muito bem falar de uma perda do sentido católico em grande número de inteligências. 

Porém, seria difícil avaliar essa influência. Na França, certo polemista, em 1905, calculava em quinze mil o número de sacerdotes que pertenciam ao movimento progressista. Loisy, em 1909, replicou, com a vantagem que lhe dava o conhecimento daquele ambiente, que ele não contava mais de mil e quinhentos adeptos. Por outro lado, um certo Franon dizia, não sem humor, que seus membros mais influentes caberiam comodamente em dois sofás. Sabatier, um homem da elite, nos dá, sem dúvida, a avaliação mais justa: 

«O modernismo não é nem um partido e nem uma escola: é uma orientação. Seria algo muito delicado querer indicar os sinais característicos pelos quais são reconhecidos os seus adeptos. Eles são muito diferentes uns dos outros! Junto ao exegeta, ao historiador e ao sábio, vê-se o puro e simples democrata. Ao lado do poeta, está o humilde padre operário. Próximo ao bispo encontra-se o simples seminarista. E, entretanto, apesar de todas estas diferenças de situação, de preocupações e de vocação, reconhecem-se entre si. Em nenhum lugar há listas feitas ou algum sinal de adesão: e, contudo, pressentem-se, aproximam-se entre si e formam um só coração e uma só alma» 3. 

São Pio X deplorava a extensão desse mal e afirmava a existência de falanges fechadas, mais precisamente de um grande número de marinheiros, pilotos e talvez capitães que, confiando desgraçadamente nas novidades profanas e na ciência enganosa de seu tempo, haviam naufragado em vez de chegar ao porto seguro. 

O decreto Lamentabili

Por causa da sua gravidade, os manifestos de Loisy mostraram a importância de se ter um documento pontifício que apontasse nominalmente os erros. Por isso, por analogia com os atos de Pio IX, já era voz corrente a possibilidade de um novo Syllabus. Como o epicentro do cataclismo estava na França, veio de lá a iniciativa. Em outubro de 1903, os teólogos Letourneau e Pouvier apresentaram ao cardeal Richard, de Paris, um relatório que continha trinta e três proposições extraídas dos textos de Loisy, para que fosse submetido ao Santo Oficio. Naquele mesmo ano, Roma poria a maioria das obras dele no Índice. Na nota adjunta à inclusão no Índice, o cardeal Merry del Val seguia exatamente a mesma ordem que o decreto Lamentabili seguiria, quatro anos depois, o que insinua a existência, desde aquela época, de um primeiro esboço no Vaticano, ainda que a fonte principal continuasse sendo o relatório de Paris, pois o decreto reproduziria, palavra por palavra, vinte de suas sessenta e cinco proposições. Cinqüenta delas foram retiradas das obras de Loisy, enquanto as demais são oriundas dos textos de Tyrrell e de Le Roy. 

A finalidade do decreto é assinalada no preâmbulo: trata-se de proteger os católicos dos graves erros que se espalham entre aqueles que, em nome da História, esforçam-se em preparar o progresso do dogma. Lamentabili aparece, pois, como uma lista de proposições condenadas. A última revela com precisão o espírito do conjunto: 

«O Catolicismo atual não pode conciliar-se com a verdadeira ciência, a não ser que se transforme num cristianismo sem dogmas, isto é, num protestantismo amplo e liberal.» 4

O decreto, em boa lógica, condena os erros sobre a doutrina católica e o Magistério da Igreja em geral, antes de tratar de pontos particulares. Na seqüência, fala das Sagradas Escrituras e da pessoa de Jesus Cristo, das origens e da própria natureza de nossos dogmas mais fundamentais. Esses erros têm raízes comuns: a independência da crítica bíblica, a Revelação puramente natural e subjetiva, e o dogma evolutivo e individual. 

As condenações mais notáveis, por não terem precedente no Magistério romano, são as que se referem à historicidade dos Evangelhos, em particular o de São João. Lamentabili visa a proteger os três pilares em que se fundamenta toda a Sagrada Escritura: sua inspiração divina, junto com sua inerrância universal e sua historicidade. Não foi fácil, nestas matérias tão complexas, encontrar a palavra exata que transmitisse perfeitamente o erro sem tocar nas opiniões permitidas. A dificuldade foi superada com rara felicidade, pois o decreto disse o que deveria ser dito, e nada mais do que se deveria dizer. Por sua clareza e circunspecção, oferece ao exegeta católico uma direção luminosa e, ao mesmo tempo, um estímulo. Roma não condena a exegese histórica em geral. O que reprova é uma exegese independente, que não leve em consideração o sobrenatural, o Magistério eclesiástico ou o dogma. A Igreja não admite que, em nome da ciência, tente-se deixar de lado a Bíblia, esta parte da Revelação da qual Deus a fez guardiã. 

A encíclica Pascendi

Uma vez que o decreto Lamentabili do Santo Oficio recebeu o nome de Syllabus, não era de se esperar, por analogia, um equivalente da encíclica Quanta cura? Na época, Roma percebeu que deveria lançar um ataque profundo para neutralizar um movimento de magnitude internacional que aumentava visivelmente. Desde abril de 1907, um projeto estava em preparação, pois o Papa falava daquele ataque que constituía o resumo e o sumo venenoso de todas as heresias, utilizando uma das expressões mais características da futura encíclica, que apareceria em setembro5. Um dos traços distintivos desta carta pontifícia é já de início expor longamente o erro que pretende proscrever e fazer uma apresentação dele, que é uma verdadeira obra-prima de composição. Ela põe em evidência que o modernismo é um sistema metódico fundado sobre princípios precisos, e não um magma informe de teorias confusas, como insinuavam os heresiarcas. 

Sob a aparência da crítica, do progresso científico e da civilização, os modernistas tratam de demolir a razão e a religião. Preconizam a total destruição de toda a verdade com o pretexto de que a verdade evolui com o homem, por ele e nele. O homem faz a verdade. É o velho erro dos sofistas, disfarçado de progresso pelas necessidades de uma causa perdida desde o início. Assim, ao negarem como nunca antes a verdade e a realidade das coisas, negam também a Revelação de Jesus Cristo, a realidade de Deus e a autoridade da Igreja, sua porta-voz. É literalmente a apostasia radical ou, como disse o Papa, a síntese de todas as heresias. Contra um tal ataque, e armado com a palavra divina, São Pio X responde que só a verdade liberta, e que é preciso restaurar tudo em Cristo6. Seu primeiro dever é desmascarar esse inimigo oculto. E como cada modernista une e mistura em si mesmo, por assim dizer, vários personagens, a saber, o filósofo, o crente, o teólogo, o historiador, o crítico, o apologista e o reformador, o santo Papa revela claramente esse monstro apocalíptico de sete cabeças: 

 — O filósofo modernista é ignorantista (as coisas são incognoscíveis) e egologista (toda verdade procede do fundo de nós mesmos). A verdade é revolucionista, porque evolui da mesma maneira que o sujeito de onde emerge. 

 — O crente, ao contrário do filósofo, tem a certeza de que Deus existe em si, independentemente do homem. Esta certeza se apóia em certa realidade do coração, graças à qual o homem percebe a realidade mesma de Deus. Trata-se aqui de uma verdadeira experiência, superior a todas as experiências racionais. 

 — A teologia modernista é coerente com seus princípios: a fé e o dogma, o corpo da religião e os sacramentos, são o fruto de uma percepção de Deus presente no homem, que deve pensar sua fé. As Sagradas Escrituras são um álbum de experiências vividas pelos primeiros judeus e pelos primeiros apóstolos do Cristianismo. A Igreja é o fruto da consciência coletiva. 

 — O historiador modernista faz puro trabalho de filósofo — agnóstico, entenda-se — o que o obriga a descartar todo o sobrenatural para recuperar o «Evangelho puro». O elemento humano original foi submetido à dupla lei da transfiguração e da deformação pela comunidade primitiva, que enfeitou a história ao escrever os quatro Evangelhos míticos. 

 — O crítico amolda a essa concepção mítica os documentos bíblicos, classificados conforme as necessidades de que derivam e segundo as leis da imanência e da evolução vital. 

 — O apologista modernista ressente-se da doutrina imanentista. Para ele, trata-se de conduzir o não-crente à experiência da religião católica, experiência que é o único fundamento verdadeiro da fé. Convida-o a entrar nessa Igreja-reino de Deus, depois de ter assimilado, entre as formas dogmáticas e de culto, as que mais lhe convêm. 

 — O reformador pretende tirar o pó de mil e novecentos anos de conformismo para recuperar o frescor da Igreja apostólica. Propõe-se a reformar o ensino dos seminários, purificar os catecismos e as devoções populares, adaptar o governo eclesiástico à democracia moderna, suprimir o fausto eclesiástico e o celibato dos clérigos. 

Incapazes de negar a precisão do texto ao desmantelar o motor mesmo da infernal máquina modernista, os modernistas insinuaram que a encíclica não se referia a ninguém, pois nenhum modernista havia ensinado essas opiniões em seu conjunto. Em resposta à encíclica, um venenoso panfleto anônimo, O programa dos modernistas, logo circulou na Itália, mostrando que os hereges haviam sentido o golpe. Definitivamente, a única crítica que poderiam fazer ao Papa era dizer simplesmente que ele professara a fé católica. Da sua parte, se na época Loisy acusava os teólogos do Papa de falsos, não tardaria imediatamente a confessar que 

«a encíclica de Pio X foi imposta pelas circunstâncias. O Pontífice disse a verdade ao declarar que não poderia manter o silêncio sem trair o depósito da doutrina tradicional. No ponto a que as coisas chegaram, seu silêncio teria sido uma enorme concessão, o reconhecimento implícito do princípio fundamental do modernismo: a possibilidade, a necessidade e a legitimidade de uma evolução na maneira de entender os dogmas eclesiásticos, incluídos aí a infalibilidade e a autoridade pontifícia, como também as condições de exercício dessa autoridade… A encíclica Pascendi não é mais que a expressão total, inelutavelmente lógica, do ensino recebido na Igreja desde fins do século XIII.» 7

Maravilhosa lucidez, embora o essencial do ensino da Igreja remonte, na realidade, às suas origens, independentemente do que pensa o apóstata. É interessante ver como Loisy dá uma lição de tradicionalismo aos Papas e aos bispos: «Depositum custodi» — guardai o depósito! Esta é, com efeito, a função essencial do Vigário de Cristo e dos bispos. E foi exatamente esta a atitude de São Pio X ao mostrar os limites que não se devem ultrapassar em matéria de fé e ao desmascarar a apostasia modernista. A encíclica Pascendi, datada de 8 de setembro de 1907, era verdadeiramente a reprodução perfeita de um certo 9 de setembro de 325, dia em que o Concílio de Nicéia deu um golpe mortal no arianismo. 

O juramento antimodernista

Se o modernismo fosse apenas uma heresia, embora tão generalizada quanto o arianismo, as condenações romanas teriam cessado ali. Os hereges obstinados teriam abandonado as fileiras da Igreja para fundar seu próprio movimento, como sempre fizeram. O modernismo, ao contrário, convencido de que sua posição está bem fundamentada, tem a pretensão de reformar a Igreja a partir de dentro. Os lobos, disfarçados com pele de cordeiro, obstinam-se em permanecer no aprisco para transformá-lo furtivamente em alcatéia. O modernismo não é só uma heresia ou uma apostasia, é uma quinta coluna. A encíclica Pascendi fala dos pseudônimos utilizados para enganar o leitor desavisado simulando uma enorme quantidade de autores. O modernista, como nunca se repetirá o suficiente, é um apóstata e, ao mesmo tempo, um traidor de fato e de direito. A traição e a duplicidade são partes integrantes de seu próprio sistema. O modernista de boa cepa é aquele que pode afirmar sua fé pessoal do alto do púlpito e contradizê-la imediatamente depois, como estudioso e historiador, em seus escritos. 

Os líderes modernistas tinham adotado, desde o início do movimento, uma atitude de dissimulação. Utilizando o velho sofisma de que o fim justifica os meios, Tyrrell pensava que uma mentira pode ser, às vezes, protetora da verdade. Loisy não sentia muito apreço por seu colega do outro lado do canal da Mancha, que falava com um cinismo que indignava inclusive os seus amigos 8. Porém, o próprio Loisy vivera muito tempo em uma situação ambígua com sua própria consciência. Ele falou do enorme erro em que incorreu ao julgar que poderia manter sua condição na Igreja sem admitir suas doutrinas9. O caso mais marcante nessa matéria foi o de Turmel, modelo desse tipo de gente, que produziu cerca de sessenta e cinco escritos usando quatorze pseudônimos diferentes. Por um momento, ele foi o centro das atenções modernistas. Esse sacerdote erudito, que preparava uma História do dogma do papado, foi desmascarado como o personagem que se ocultava por trás dos pseudônimos de «Dupin» e «Hertzog», que, usando o mesmo material, já haviam minado o dogma da Trindade e a Mariologia. Ali se ocultava o tão conhecido jogo segundo o qual a fé pode dizer sim e a ciência dizer não10. Tudo isso lança sobre o movimento modernista uma nota de moralidade muito peculiar. Como se surpreender que Deus tenha cegado esses homens que haviam negado deliberadamente evidências meridianas, para passar a vida inteira sob o sinal da impostura e da mentira? Acaso seria por demais temerário aplicar-lhes as palavras do salmista: «A iniqüidade enganou-se a si mesma»? 11

Os italianos não ficaram para trás nessas piruetas do espírito. Minocchi, ao mesmo tempo em que se valia de uma prudência consumada para não ferir as suscetibilidades dos guardiães da ortodoxia, sabia encaixar algumas observações destinadas a fazer refletir sobre a fragilidade da antiga teologia. Semeria também elaborava uma síntese eloqüente de todas as idéias novas. Levava sua voz o mais longe que podia sem ultrapassar o limite além do qual sua congregação poderia sofrer a ira da Santa Sé, ao mesmo tempo em que confessava aos íntimos que dava pouca importância à exterioridade dos dogmas12. Se eles permaneciam na Igreja era porque não pretendiam escandalizar o povo com apostasias inúteis: ao contrário, tinham a intenção de elevar o povo ao seu ideal religioso.

Isto é o que explica São Pio X, três anos depois da Pascendi, em seu Motu proprio Sacrorum antistitum, de 1º de setembro de 1910: 

«Com efeito, eles [os modernistas] não cessaram de recrutar novos adeptos, de agrupá-los em uma liga clandestina e de, junto com eles, injetar nas veias da sociedade cristã o veneno de suas opiniões, publicando livros e jornais sem o nome dos autores ou com nomes falsos.»

O Papa, com o Motu proprio, criou um juramento especial contra o modernismo. A fórmula foi escrita em termos tão precisos que não dava lugar a nenhuma escapatória. Cada um dos erros fundamentais do modernismo deveria ser formalmente reprovado, e o documento deveria ser assinado de próprio punho e letra por todo clérigo encarregado das almas. 

Essa profissão de fé reconhecia, primeiramente, que Deus pode ser conhecido e, por conseqüência, demonstrado pela luz natural da razão, como a causa [pode ser demonstrada] por seus efeitos; que as provas externas da Revelação, sobretudo os milagres e as profecias, são sinais muito certos da origem divina da religião cristã e eminentemente proporcionados à inteligência de todos os tempos e de todos os homens; que a Igreja foi instituída de maneira próxima e direta pelo Cristo histórico durante sua vida entre nós. O juramento reprovava de forma absoluta a suposição herética da evolução dos dogmas no sentido modernista e sua noção da Tradição. Professava que a fé é um verdadeiro assentimento da inteligência à verdade recebida por um ensino exterior ao sujeito, assentimento pelo qual cremos ser verdadeiro, por causa da autoridade de Deus cuja veracidade é absoluta, tudo o que disse, atestou e revelou o Deus pessoal, nosso Criador e Senhor13. 

Um tal ato do santo Papa, evidentemente, foi mal recebido pelo campo oposto, que lançou a culpa de tudo às aberrações desse pároco de aldeia dotado de uma mentalidade de gondoleiro veneziano e que, completamente equivocado, guiava a barca de Pedro com uma vara. Porém, essa vara se convertera em um sólido arpão. Os incorrigíveis sofreram a excomunhão ipso facto, o que deveria pôr um fim rapidamente às artimanhas encobertas dos heresiarcas, ao menos até que chegassem tempos mais felizes para eles. Deste modo, os historiadores da época afirmavam com um otimismo que, com o passar do tempo, pode fazer-nos sorrir: “É possível uma nova crise modernista? Graças a Deus, uma crise modernista generalizada, comparável à dos anos 1895-1910, parece-nos muito pouco provável”14. 

Os resultados positivos

«É preciso que até haja heresias»15, exclamava São Paulo no primeiro século de nossa era. Em que sentido podem ser necessárias as heresias, esse mal espantoso que mata a fé? Em que sentido o erro e as trevas podem servir à causa da verdade e da luz? No sentido de que sua obscuridade permite dar maior resplendor à luz da verdade. Graças ao choque provocado pelas heresias, o dogma católico e os esforços teológicos fizeram progressos, sempre no mesmo sentido de aperfeiçoar os conceitos e de destacar expressamente o que até então não estava senão implícito. Foi isso o que o modernismo produziu. Ele permitiu o progresso teológico e científico nessas matérias tão conexas que são a filosofia cristã, a crítica bíblica e o desenvolvimento do dogma. 

O primeiro debate que o modernismo suscitou foi sobre a relação entre a filosofia e a fé da Igreja. A fé católica está sustentada por uma filosofia. Os hereges sabem disso melhor do que nós, pois diziam, pela boca de Bucer: «Tolle Thomam et dissipabo Ecclesia» — Tirai Tomás e destruirei a Igreja! A crise modernista mostrou, e os fatos o provam, como esse monstro de sete cabeças esvazia-se como um balão ao se furar seu envólucro filosófico. Isso significa que a Igreja depende de uma filosofia. A questão é saber em que medida. Seria falso dizer que o dogma e a fé são essencialmente dependentes de uma filosofia no sentido técnico, pois a fé é de ordem mais elevada. Não é pedido a um catecúmeno que obtenha um diploma em filosofia tomista, nem a um kantiano protestante que se converta duas vezes para ter a fé católica e tomista. É verdade que a Igreja utiliza noções propriamente filosóficas em seu dogma, como os conceitos de pessoa, substância, essência, natureza, unidade e trindade, mas não é preciso ser um especialista para entender esses termos. Na verdade, quando a Igreja faz uso de termos filosóficos em seu dogma é porque esses pertencem à própria inteligência humana. A única coisa que a Igreja requer é uma filosofia que não seja contrária ao senso comum, uma filosofia que defenda a razão e a verdade contra a loucura modernista, tão absurda quanto ignorantista. Seria a Igreja demasiado exigente ao pedir aos filósofos que defendam a razão e seu objeto? 

Já mencionamos o segundo debate que opôs os eruditos da crítica «pura» às decisões pontifícias como Providentissimus de Leão XIII, Lamentabili e Pascendi de São Pio X. No estudo da Revelação é preciso distinguir o enfoque puramente apologético do enfoque posterior e teológico relativo ao dado revelado16. É certo que, inicialmente, é preciso aplicar a crítica «pura» para estabelecer o fato da Revelação e dos milagres, a propagação e a conservação admiráveis da Igreja, em uma palavra, os preambula fidei — as provas do caráter razoável da fé. Com efeito, somente a História pode proporcionar as razões externas de credibilidade. Mas, para estabelecer o conteúdo e o sentido da Revelação, assim como a história dos dogmas, o método puramente histórico, embora seja um excelente método subsidiário, não poderia prescindir da teologia. Os princípios a que obedecem a crítica «pura» e a crítica católica são completamente diferentes: a morte de Cristo na cruz, por exemplo, é um fato de certeza ordinária para os historiadores. Para os católicos, é de fé definida, é uma verdade sobrenatural, revelada por Deus. A crítica «pura» não é capaz de impor o assentimento de fé divina sob pena de condenação eterna, como o faz o Magistério da Igreja. 

No entanto, a crítica «pura» não proclama em alto e bom som que somente ela é objetiva e livre dos preconceitos que cegam os pensadores cristãos? A verdade, porém, é outra. De início, o fundamento da crítica «pura» é a filosofia «pura», ou seja, a filosofia moderna, visceralmente cética, ignorantista e egologista, e temos o direito de nos perguntar se a dúvida pode gerar algo mais que dúvida. Quanto à própria crítica, ela é prisioneira de preconceitos. Porque, fingindo ignorar que a Bíblia tem a Deus como autor principal, esta crítica, que se diz imparcial, arrisca-se a não compreender nada ou a falsificar a mensagem. Além do mais, os fatos provam que a crítica emancipada nunca é neutra. Como sempre acontece em tais casos, a recusa à submissão provoca uma reação: toda tese tradicional é considerada suspeita; toda hipótese imprudente, provável; e os documentos mais venerados do Cristianismo são tratados com um desprezo e uma desconfiança que não se usa com os textos profanos17. Isso mostra em que medida a crítica modernista, apesar de toda a pretensão de objetividade científica, adota apenas um viés racionalista e trabalha para produzir uma Revelação vazia, privada de toda intervenção divina histórica. 

O último debate que provocou a crise atingia o coração da teologia: dizia respeito à evolução ou, melhor dizendo, ao desenvolvimento dogmático. O dogma não se apresenta como uma massa de modelar, variável segundo os costumes e as épocas. 

«A doutrina de fé que Deus revelou não foi proposta como uma descoberta filosófica que deveria ser aperfeiçoada pelo engenho humano, mas foi confiada à Esposa de Cristo como um depósito divino, para ser fielmente guardada e infalivelmente proclamada.» 18

Embora seja inadmissível o conceito modernista de um dogma indefinidamente plástico, é preciso assinalar que o dogma admite, entretanto, modos de expressão muito diversos, calcados na linguagem humana. Em primeiro lugar, os fatos dogmáticos exprimem as coisas vistas pelos Apóstolos, como a morte e a ressurreição de Cristo, a maternidade divina de Maria. Em seguida, as afirmações mais gerais utilizam imagens humanas sob as quais se oculta a mensagem dogmática, facilmente compreendida por todos; é o caso, por exemplo, do versículo do credo, «Está sentado à direita do Pai», que evoca, naturalmente, o poder judicial de Cristo. Por fim, certos dogmas empregam noções filosóficas universais, como as de pessoa, substância, natureza, transubstanciação, consubstancialidade, as duas vontades de Cristo, a unidade da inteligência divina e das operações de Deus ad extra, etc. Quando as definições, sob o selo infalível do Espírito Santo, utilizam essas categorias universais do ser, chegou-se então ao limite das expressões possíveis do mistério divino em função do ser e dos recursos da inteligência humana. A formulação dogmática é perfeita e já não admite nenhum aperfeiçoamento ulterior; estas definições são imutáveis tanto na essência quanto na forma. 

Resta uma questão a ser elucidada. Como conciliar o fato de o dogma ser essencialmente um depósito imutável revelado, e, ao mesmo tempo, ter sofrido acréscimos com o passar dos séculos? Haveria contradição entre esses dois atributos, a imutabilidade e o desenvolvimento do dogma? Obviamente, não há e, nesse ponto, não cedemos em nada à heresia modernista do dogma simbólico e variável até o infinito. Por se tratar de um depósito revelado, imutável porque Deus é imutável, só é possível um desenvolvimento homogêneo, de maneira que a Igreja jamais promulgou uma definição de dogma que tivesse depois de corrigir. É precisamente porque o dogma é um depósito revelado aos homens, seres limitados e imperfeitos, é que eles podem, com o passar do tempo, descobrir e explicitar as riquezas deste tesouro. Diz São Vicente de Lérins em sua célebre obra Commonitorium

«É preciso que ela [a verdade dogmática] cresça e se estenda muito e vigorosamente (…) mas no mesmo gênero, ou seja, no mesmo dogma, no mesmo sentido e na mesma fórmula — eodem sensu eademque sententia (…).» 19

Esta homogeneidade e imutabilidade essencial do dogma é uma das características da veracidade do Magistério eclesiástico, como notavelmente afirma Bossuet: 

«Deus quis que a verdade chegasse a nós de transmissor em transmissor e de mão em mão, sem nunca se perceber inovação alguma. É por isso que é reconhecível aquilo em que sempre se acreditou, e, por conseqüência, aquilo em que sempre se tem de acreditar. É neste sempre que, por assim dizer, aparece a força da verdade e da promessa, que se perde totalmente quando interrompida em algum lugar.» 20

Que verdades, no depósito da Revelação, são suscetíveis de desenvolvimento? Distingamos as verdades que estão mais próximas ao edifício da fé das que estão mais distantes. As primeiras, por serem imediatamente necessárias para a salvação, foram propostas explicitamente pelo Magistério desde o princípio. São, por exemplo, os mistérios da Trindade, da Encarnação e da Redenção, a vida futura e as sanções divinas. O único desenvolvimento que lhes é possível ao longo dos séculos é quanto à precisão da formulação. Por outro lado, as verdades implícitas, relacionadas de forma menos direta aos mistérios da salvação, podem ser cridas simplesmente na sua generalidade, e em seguida explicitadas. Assim, a crença no poder do ensino da Igreja inclui a fé na infalibilidade do Papa, e a crença na santidade de Maria engloba a fé na Imaculada Conceição21. 

Em resumo, essas diferentes precisões teológicas lançam toda a luz necessária sobre o progresso do dogma, fundado no conhecimento progressivo do homem, e, ao mesmo tempo, sobre sua estabilidade, fundada na estabilidade do próprio Deus. Devemos agradecer à Providência por ter permitido a crise modernista, pois foi a ocasião de esclarecer o pensamento da Igreja sobre esses temas fundamentais. 

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A crise modernista foi benéfica em muitos aspectos. Talvez o fruto mais esplêndido da crise tenha sido ver um grande Papa em ação. Fiel a sua divisa de restaurar tudo em Cristo22, São Pio X soube, com mãos de ferro sob luvas de pelica, arrancar e plantar, separar o grão bom da cizânia, no campo da Igreja e da ciência sagrada. O Papa apontou com precisão o remédio que deveria ser aplicado contra o monstro de sete chifres que lançava seu grito de Non Serviam contra a razão e a religião. O Papa, para salvar uma e outra, ordenou o estudo da filosofia de Santo Tomás nos seminários e universidades que tinham servido de incubadora para as infiltrações modernistas. Também dispôs os limites que as ciências cristãs históricas não poderiam ultrapassar e, para consegui-lo, restabeleceu os estudos bíblicos com um centro em Roma. São Pio X mostrou, no começo do século XX, como a Igreja deveria reagir contra o modernismo de então e de todos os tempos. 

«Ainda fala, depois de morto»23. Seu corpo, achado incorrupto em 1944, quando do seu processo de beatificação, segue como testemunha silenciosa da incorruptibilidade da doutrina que ele soube opor ao deletério veneno do modernismo. Na crise romana que suportamos hoje, é mais urgente que nunca conhecer a fundo o modernismo e a ação de São Pio X contra ele. Nada poderemos saber sobre a crise neomodernista se não compreendermos bem a crise modernista. Não se saberá aplicar o verdadeiro remédio para a crise neomodernista se não se compreenderem bem os remédios que inibiram eficazmente o modernismo. 

(CAPÍTULO XIII do livro Cem Anos de Modernismo)

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1. Pie X et Benoît XV, carta pastoral de 2 de fevereiro de 1915 sobre o papado, p. 5.

2. «Espírito delicado, astuto, poético, sem grande vigor de pensamento, romântico, conservador», que pessoalmente havia sido grande admirador de Giuseppe Sarto, então patriarca de Veneza (cf. Fioretti de saint Pie X, ed. Téqui). Esse íntimo amigo de Tyrrell não acreditava provavelmente na instituição divina da Igreja (cf. Rivière, p. 284).

3. P. Sabatier, Les modernistes, p. 33, em Rivière, pp. 327-328.

4. DzB 2065.

5. Sua preparação foi confiada a um teólogo romano. Depois de uma infrutífera primeira intenção dos professores de Friburgo para condensar o sistema modernista, o Vaticano colocou o projeto nas mãos do padre Joseph Lemius, OMI. Depois de quatro dias, o padre enviou seu estudo ao cardeal Merry del Val. Este estudo serviu de base para a encíclica Pascendi (cf. Chiron, Saint Pie X, réformateur de l’Église, p. 236).

6. Ef 1, 10.

7. Loisy, Simples réflexions, p. 23 y p. 276, em Rivière, pp. 371-372.

8. Tyrrell’s letters, p. 60; Loisy, Quelques lettres, em Rivière, p. 221.

9. Choses passées, p. 90, Ibid.

10. Doutor Schrörs, professor em Bonn, em Rivière, p. 499.

11. Sl 26, 12.

12. Houtin, p. 111, em Rivière, p. 275.

13. DzB 2145-2147.

14. L. de Grandmaison, Études, 1923, em Rivière, p. 548.

15. 1Cor 11, 19.

16. Billot, em De immutabilitate traditionis; o padre Gardeil, em Le donné théologique et la théologie, pp. 150-165; Bainvel em Poulat, Histoire, dogme et critique, pp. 219-220; DTC, «Tradition», col. 1341-1349.

17. Lebreton, DAFC, «Modernisme», col. 672. Ver, em particular, Céruti-Cendrier, Les Évangiles sont des reportages, que fornece numerosos exemplos da lei da artimanha empregada pelos exegetas modernos.

18. DzB 1800.

19. São Vicente de Lérins, Commonitorium, capítulo 23, nº 55, repetido pelo Concílio Vaticano I na constituição Dei Filius, DzB 1800.

20. Em Ploncard d’Assac, La Iglesia ocupada, p. 21.

21. Em Bainvel, «Historia de un dogma», Études, 5 de dic. de 1904, p. 612 e ss. Assim pois, estas verdades admitem um progresso não só da formulação, mas também do conteúdo. Trata-se de um desenvolvimento teológico por via de conclusão teológica no qual se passa do implícito ao explícito (por exemplo, Cristo morreu por todos, logo também pelos não predestinados), ou do virtual ao atual (por exemplo, Cristo é inteligente, logo tem a capacidade de sorrir). Cf. Gardeil, Le donné révélé et la théologie, pp. 161 e 185-186.

22. Ef 1, 10.

23. Heb 11, 4.