A FALSA BONDADE

Gustavo Corção, Marta Braga (org) - CultorDeLivros

Gustavo Corção

Quando hoje percorremos, já com fastio, as páginas dos novos catecismos, ou dos novos livros escritos e ilustrados à sombra da frondosa pastoral catequética, a impressão dominante que logo nos assalta é a de uma açucarada e viscosa falsificação da bondade produzida pela tenebrosa estupidez, ou pela mais tenebrosa perversidade dos “novos” que aos borbotões se desprendem todos os dias da verdadeira Igreja, una, santa, católica etc, em demanda de outra mais tolerante, e por isso apontada como mais bondosa do que a Igreja de Jesus Cristo e dos Santos que imitaram seu áspero e difícil exemplo.

Seria mais exato dizer que essa edulcoração e esse amolecimento dos valores formam uma espécie de peste rósea que atingiu o mundo, a começar pela civilização ocidental em processo de crepuscular decadência e de desintegração. À Igreja caberiam o alarma e a lição do revigoramento, mas para nosso maior sofrimento, e para imprevisíveis e inimagináveis sofrimentos de nossos filhos e netos, processou-se neste mesmo glorioso século a maior e mais grave trahison des clercs e é na Igreja-egrediente (por derrisão chamada de “progressista”) que se notam as mais espantosas e repugnantes falsificações de tudo, a começar pela falsificação do amor, feita num tom infinitamente repugnante que lembra as vozes das prostitutas do princípio do século, que atrás das rótulas chamavam os pedestres: “entra simpático!”

Nos tempos de Pio X, quando foi preciso opor uma severa condenação aos abusos do Sillon, pôde o grande e santo pontífice dizer aos desgarrados que se perdiam “levados por um mal norteado amor pelos fracos”, porque nesse tempo o mundo católico ainda guardava a ressonância da doutrina dos dois amores que desde a Didaqué ilumina a cristandade. Nos tempos que correm espalhou-se pelo mundo a pestilencial doutrina de que qualquer sentimento meloso merece o mesmo nome de amor.

No mesmo limiar deste dolente e amolecido século, ainda podia um Marcel Proust fazer a belíssima evocação de figuras humanas marcadas pelo “visage antipathique et sublime de la vraie bonté”. Anos antes, a pequenina Bernardette, que trouxe toda a vida estampada em sua figura o reflexo da Virgem Santíssima, e que sempre se destacou das irmãs por ser la plus petite, teve um temporário cargo de vigilância e superiorato na enfermaria. Sua função, que cumpriu irrepreensívelmente, era a de observar que fossem bem cumpridas as recomendações do médico e da superiora. Um dia, entrando na enfermaria, viu uma das irmãs sentada numa cadeira a ler um livro de piedade. Surpreendida em falta, desculpou-se dizendo que se sentia muito bem e que se levantara para ler melhor o livro piedoso. E Bernardette, instantaneamente: “Onde é que se viu piedade cosida com linha de desobediência?”

Hoje vão-se tornando inacreditáveis ou incompreensíveis todas as frases de gênios e de santos porque o mundo inteiro parece acometido de uma hepatite espiritual, e os homens se tornam cada dia mais fracos, ou “flacos” como diria Oswald de Andrade.

Em famosa alocução, já no seu tempo, Pio XII queixava-se dos afrouxamentos e temia sobretudo “o cansaço dos bons”. Hoje seria o caso de temer não apenas o cansaço, mas o amolecimento e a transfiguração da fraqueza, da omissão, de todas as tolerâncias em nova virtude que vem substituir a “antipática e sublime” virtude da força moral que hoje só se vê nos fioretti dos santos e nos retratos antigos.

Além disso convém notar que a pomada de nova bondade que envaselina o planeta tem uma característica muito especial: cada um fabrica a sua, graduando-lhe a viscosidade e especificando-lhe o cheiro. O que importa, nessas campanhas de mãos, pés e demais partes do corpo estendidas, sim, o que importa soberanamente nesse afã de ver em toda a parte fragmentos do Evangelho, boa-vontade, humanismo e interesse pela pessoa humana, é o completo e límpido desprezo pela vontade de Deus.

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Já observei que em todos os chamados “catecismos” munidos de todas as aprovações eclesiásticas comparecem arquétipos da nova idade do mundo, e nunca faltam Luther King e o astronauta. A presença constante do astronauta se explica pela infinita estupidez de alguns homens de Igreja que acham muito mais maravilhosa a ida do homem à Lua do que a vinda do Filho de Deus à Terra. Quanto à obsessão em torno de Luther King confesso que não atinei com nenhuma explicação plausível, nem cheguei a encontrar uma pista. Qual será o denominador comum, a afinidade? Não sei.

Sei que nós outros, católicos, temos uma maravilhosa coleção de heróis da santidade. Falei atrás em Bernardette, a menina que viu a Virgem Santíssima. Essa menina é sem dúvida possível um dos mais belos exemplos da humanidade. Sua força, disfarçada pela pequenez e pela asma, chega aos mais altos níveis do heroísmo. sua personalidade tem a riqueza e a dureza de um diamante. Suas respostas admiráveis são cintilações de um coração que já é fácil e diretamente movido pelos Dons. Pois bem, no último catecismo caído da frondosa pastoral catequética, a propósito de variedades temperamentais, Bernardette é dita “caráter amorfo”.

Na verdade, o que esses autores não conseguem esconder é a sua profunda aversão pela santidade. Certamente lhes parece, a todos esses fabricantes de pomadas, duras demais, não-somente a palavra referente ao pão da vida, mas todas as palavras de Deus.

(O Globo, 4/3/72)

Fonte: Permanência