A IGREJA É INDEFECTÍVEL

Fonte: Courrier de Rome n°678 – Tradução: Dominus Est

1 – INDEFECTÍVEL E INDEFECTIBILIDADE: NAS ORIGENS DE UMA TERMINOLOGIA.

1. O substantivo “indefectibilidade” surge no século dezessete. O Dicionário da Academia Francesa o menciona em sua 3ª edição, de 1740. Apresenta-o como um “termo dogmático”, e define-o como “a qualidade do que é indefectível”, esclarecendo que ele não é “muito utilizado além desta frase:A indefectibilidade da Igreja”. Permanecerá assim, de edição em edição, até a 7ª, de 1878, onde um novo esclarecimento é introduzido: a palavra, “todavia, por vezes é dita em termos de filosofia. A indefectibilidade das substâncias”. Foi somente em 1935, na 8ª edição do Dictionnaire, que nosso substantivo recebeu um significado não mais exclusivamente dogmático: doravante, ele é apresentado como “um termo didático” que designa “a qualidade do que é indefectível”, no sentido mais amplo do termo: “A indefectibilidade da Igreja. A indefectibilidade das substâncias”. Paralelamente, o Dictionnaire de l’Académie reserva o mesmo destino ao adjetivo “indefectível”. Esse termo também aparece na 3ª edição de 1740, e, até a 7ª edição de 1878, é dado como um “termo dogmático”, definido como “o que não pode desfalecer, deixar de existir”, “não sendo muito utilizado senão nesta frase: A Igreja é indefectível”. Somente com a 8ª edição, de 1935, a palavra é designada como “um termo didático”, que significa, em um sentido amplo, “o que não pode desfalecer, deixar de existir. A Igreja é indefectível. Linha de conduta indefectível”. A edição atual do Dictionnaire, a 9ª, consagra essa evolução semântica. O adjetivo “indefectível” é definido como “o que não pode falhar, deixar de ser. Uma memória indefectível. Uma amizade indefectível. Uma linha de conduta indefectível. De acordo com a doutrina católica, a Igreja é indefectível, deve durar até o fim dos tempos”. Quanto ao substantivo “indefectibilidade”, ele é definido como “a qualidade do que é indefectível. A indefectibilidade de um sentimento. A indefectibilidade da Igreja”.

2. Essa amplificação de sentido deve manter toda a sua importância, pois, aqui, o histórico da palavra vem confirmar a extensão da coisa que ela se emprega a designar. A indefectibilidade é, originariamente, própria e exclusiva da Igreja, e isso é facilmente concebido, visto que a Igreja aparece como a única realidade criada da qual se pode dizer, aqui na terra, que não somente ela nunca deixou, mas também que ela não deixará de ser o que é: não somente indeficienteou indeficente, mas, precisamente, indefectível, ou, se nos permitem arriscarmos aqui o neologismo, “indefalível”. Aqui, em seu sentido original, a palavra significa uma impossibilidade de princípio, e não um simples fato. E isto está ligado, seguramente, à natureza essencialmente sobrenatural da Igreja. A tal ponto que a indefectibilidade não pode ser dita, por extensão de sentido, sobre as outras realidades da terra, senão em um sentido impróprio e reduzido, no sentido de um simples fato, e não mais de uma pura impossibilidade.

2 – DEFINIÇÃO DA IGREJA

3. Também precisamos ter uma ideia mais precisa do que é a Igreja. Ora, aqui, a natureza do atributo depende, como em todas as coisas, daquela da realidade da qual ele resulta. A indefectibilidade que tratamos é precisamente aquela da Igreja, tomada como tal. E quando se trata de determinar a natureza exata da Igreja, para daí deduzir aquela de sua indefectibilidade, é necessário tomar como regra o princípio recordado pelo Papa Leão XIII, na EncíclicaSatis cognitum de 1896: “A Igreja foi constituída e fundada por Cristo Senhor Nosso; consequentemente, quando enquerimos sobre sua natureza, o essencial é conhecer o que Jesus Cristo quis fazer e fez. E, realmente, Jesus Cristo quis estabelecer sua Igreja como uma sociedade visível”. É aqui que as dificuldades começam. É para escapar delas que convém iniciar recordando algumas evidências muito frequentemente desconhecidas(1).

2.1 – UMA SOCIEDADE…

4. A realidade de uma sociedade é aquela do vínculo estável que resulta de uma ação comum. Esta se traduz pelo fato de que as ações individuais de seus membros não são independentes umas das outras, mas, ao contrário, constituem as partes complementares da mesma ação(2). Ora, uma ação é sempre intermediária entre um sujeito e um objeto, entre um agente e um fim. A ação comum que é enredada na definição de sociedade – pois está no fundamento do vínculo estritamente social – não foge a essa regra. Necessariamente, ela se situa na dupla dependência de uma autoridade e de um bem comum. Inicialmente, esta ação comum se define, com efeito, em referência ao seu objeto, que é um bem comum, ou seja, um bem que é específico a vários. Por outro lado, essa ação comum não poderia existir sem uma autoridade que unifique as ações individuais na busca deste bem comum. Ora “vários buscam, necessariamente, vários objetivos, enquanto um único busca apenas um”, o que leva Aristóteles a dizer: “Toda vez que vários elementos são ordenados a um único fim, encontra-se sempre um que assume a liderança e conduz” (3). Portanto, a ação comum também é definida em referência ao seu sujeito, que é, precisamente, não a autoridade, mas a união de todos os agentes particulares, membros da sociedade, sujeito que é tal apenas se esses agentes particulares forem dirigidos pela autoridade. Todavia, vale dizer, recorrendo à linguagem da Escola, que a autoridade é a causa motora da sociedade, enquanto sua causa formal é a boa ordem ou a união, ou ainda o vínculo das diferentes ações particulares. Quanto à sua causa final, trata-se do bem comum, que é o bem do qual todos devem se aproveitar como seu bem próprio, e que se identifica com a ação comum virtuosa.

5. Eis o que já deveria nos levar a entrever, senão onde se situa a indefectibilidade da Igreja, no mínimo, onde, necessariamente, ela não se situa.

2.2 – … ÚNICA EM SEU GÊNERO

6. A realidade da Igreja, que é aquela de uma sociedade, se traduz pelo fato de que cada fiel batizado age em harmonia com todos os outros, sob a direção da autoridade hierárquica, para professar publicamente a fé e o culto católicos. Tal como resulta desta ação comum, a realidade da Igreja é, em sua causa formal, aquela de um tríplice vínculo: vínculo da unidade na atividade externa e pública de fé, de culto e de governo. A autoridade suprema do Papa, e a autoridade subordinada dos bispos, é seu princípio enquanto causa motora. profissão externa e pública de fé e de culto é o princípio enquanto bem comum, ou causa final próxima. Essa realidade da Igreja é designada por meio da expressão “Corpo místico de Cristo”, que equivale a uma analogia metafórica revelada. Desta forma, ela busca explicar que, para ser verdadeiramente uma sociedade no sentido próprio do termo, a Igreja não o é exatamente como as sociedades da ordem natural. A Igreja é uma “sociedade” de ordem sobrenatural, e, logo, em um sentido analógico. A analogia implica semelhança e diferença. A semelhança com as sociedades naturais é que a Igreja comporta – em sua causa motora – um governo; porém, a grande diferença é que esse governo pressupõe, em primeiro lugar, um Magistério, pois a profissão de fé é o vínculo radical e absolutamente primordial da unidade social da Igreja. E a fé existindo em vista da salvação eterna (pois ela é o mandamento da salvação) esse governo pressupõe, outrossim, um poder de santificar. Como em qualquer sociedade, o bem comum é o princípio absolutamente primário, fundamental e radical que comanda toda a realidade da Igreja. Contudo, aqui, esse bem comum é de uma perfeição de ordem sobrenatural, que equivale à santificação das almas pela graça e o exercício da caridade, tal como supõe em si mesma a profissão de fé e culto. Depois, o governo vem ser empregado como ato diretivo da autoridade, e é exercido dependente deste bem comum, que dispõe toda a atividade, visto que constituí seu objeto específico.

7. Eis porque a unidade da Igreja não é unicamente, nem mesmo fundamentalmente, uma unidade de governo, como nas outras sociedades da ordem natural. Ademais, em primeiro lugar, ela é uma unidade de fé e de sacramentos. Ora, o Papa e os bispos só podem governar aqueles que foram previamente instruídos por seu poder de Magistério, e dos quais eles devem assegurar a santificação. Como já dizia o Papa Leão XIII, na Encíclica Satis cognitum(4), a unidade de fé precede a unidade de governo, assim como o entendimento e a união das inteligências é o fundamento da harmonia das vontades e do acordo nas ações. E na Encíclica Mortalium animos, o Papa Pio XI também já dizia: “É a unidade de fé que deve ser o elo principalque une os discípulos de Cristo. […] Esta unidade só pode nascer de um Magistério único, de uma regra única de fé e de uma mesma crença dos cristãos” (5). Pio XI não diz somente que a unidade da Igreja nasce da regra da fé; ele diz que ela não pode nascer de modo diferente. E as duas primeiras unidades, a unidade de fé e a unidade de governo são, elas mesmas, determinadas em vista da unidade de santificação, através do culto.

3 – A INDEFECTIBILIDADE DA IGREJA

8. Por conseguinte, que será a indefectibilidade da Igreja? Esta envolve dois elementos: quanto à existência, a perpetuidade; quanto à essência, o fato da imutabilidade substancial. Assim, uma sociedade é indefectível no sentido que ela não poderá, aqui na terra, antes do fim do mundo, nem deixar de existir nem mudar substancialmente. Compreendemos a partir daí porque essa indefectibilidade é própria da Igreja, sociedade de ordem sobrenatural: é por isso que ela não pode ser explicada senão em razão de uma assistência da mesma ordem, pois divina. Com efeito, somente a Igreja pode se beneficiar deste tipo de assistência.

9. Até aqui, a indefectibilidade da Igreja não foi objeto de uma definição explícita por parte do Magistério solene e infalível da Igreja(6). É definida apenas a perenidade do Primado do bispo de Roma(7). A Sagrada Escritura ensina essa indefectibilidade da Igreja no Evangelho de São Mateus, no versículo 18 do capítulo XVI, quando Nosso Senhor prediz que as potências inimigas jamais conseguirão destruir a Igreja. “Tu és Pedro”, diz ele ao seu apóstolo, “e sobre essa pedra edificarei minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. O magistério corrobora esta verdade revelada quando o Papa Pio VI, na Bula Auctorem fidei,de 28 de agosto de 1794, declara que “a proposição que afirma que “nestes últimos séculos, difundiu-se um obscurecimento geral sobre verdades de grande importância relativas à religião, e que são a base da fé e da doutrina moral de Jesus Cristo”, é herética”. Dado que essa proposição condenada nega de modo equivalente a indefectibilidade da Igreja, logo, a Igreja é indefectível, e negar isso representa implicitamente uma heresia. Enfim, o Papa São Pio X, no Decreto Lamentabili, de 3 de julho de 1907, condena a seguinte proposição: “A constituição orgânica da Igreja não é imutável, mas a sociedade cristã é submetida, assim como a sociedade humana, a uma perpétua evolução”. Ora, essa proposição nega implicitamente a indefectibilidade da Igreja. O Decreto Lamentabili declara, portanto, implicitamente, que a Igreja é indefectível. O valor dogmático desta afirmação é igual ao de uma “doutrina católica”, ou seja, de uma verdade divinamente revelada e ensinada – de modo equivalente ou implicitamente – pelo Magistério ordinário ou não infalível da Igreja. Não se pode considerá-lo como um dogma propriamente dito, ainda que ele reclame a adesão do assentimento religioso interno, ou seja, o equivalente a uma obediência da parte da inteligência.

10. Notemos, sobretudo, que essa indefectibilidade é própria da Igreja, tal como definimos anteriormente: ela não é, em primeiro lugar, e, antes de tudo, ou fundamentalmente, própria da autoridade, própria da hierarquia – sejamos claros: em primeiro lugar, e antes de tudo. Certamente, sim, é uma verdade de fé, solenemente definida, e, portanto, um dogma, que o Primado do Papa é perpétuo. Porém a indefectibilidade é diferente da perpetuidade, e ela é, em primeiro lugar, própria da Igreja tomada como uma sociedade, sendo fundamentalmente a indefectibilidade do tríplice vínculo da unidade de profissão externa e pública de fé e de culto, na submissão ao governo hierárquico divinamente instituído. Sem dúvidas, por si, a indefectibilidade deste vínculo supõe a indefectibilidade do governo e da autoridade hierárquica, e, portanto, sua perenidade. Porém, ele não se reduz a isso, ainda que os dois coincidam muito frequentemente. Ou, mais exatamente, a indefectibilidade da autoridade, tomada no exercício de seus atos: a história está aí para demonstrar. Outrossim, é o sentido da distinção expressa no versículo 18 do capítulo XVI do Evangelho de São Mateus, já citado: “et portae inferi non prævalebunt adversus eam”. Ao que se refere aqui o pronome demonstrativo “eam”? Essa passagem do Evangelho é objeto de diferentes interpretações, sobre as quais o Magistério não se pronunciou(8). Cristo indica de modo indireto a indefectibilidade de sua Igreja, por meio desta pedra sobre a qual ele a edificará, ou seja, o Papado, ou a indica de modo direto, ao afirmar que as portas do inferno jamais prevalecerão contra a própria Igreja? Tudo depende do sentido dado ao inciso “adversus eam”. Independente de como seja, a indefectibilidade da Igreja permanece afirmada em seu princípio. Contudo, ela se distingue, como tal, da indefectibilidade do Papado, ou seja, da autoridade suprema na Igreja. E a indefectibilidade do Papado (que é um dogma) se distingue, por si mesma, da indefectibilidade do exercício do Papado – ou de todos e cada um de seus atos -, indefectibilidade que não é um dogma, e que de modo algum é afirmada nas fontes da Revelação.

11. Há, com efeito, uma distinção a ser feita entre, de um lado, a própria instituição da Igreja, que é uma instituição divina e, portanto, indefectível, e, do outro lado, os atos dos homens que representam essa instituição. Paralela distinção é evidenciada por São Tomás de Aquino na Suma teológica, quando ele estuda a perpetuidade da Nova Lei, no artigo 4 da questão 106 na 1a2ae: a Nova Lei deve durar até o fim do mundo, ou será que uma Lei diferente deverá lhe suceder?Se se admite a ideia de que a Igreja é a única instituição social desejada por Deus para realizar a Nova Lei no estado deste mundo, a questão posta aqui é equivalente à da indefectibilidade da Igreja.

12. Ora, a Lei, tal como se encontra no estado deste mundo, pode sofrer dois tipos de mudanças. Primeiramente, uma mudança que a afetaria enquanto tal, e que seria, portanto, a própria mudança da Lei. Tal mudança é impossível e, neste sentido, nenhum outro estado deve suceder àquele da Nova Lei. Em si, esta já sucedeu a Lei antiga como um estado mais perfeito sucede um estado menos perfeito. Mas nenhum outro estado da vida presente pode ser mais perfeito que aquele da Nova Lei, pois nada pode ser mais próximo do fim último que o que o introduz imediatamente. A Igreja que cumpre esta lei também não pode, portanto, mudar. Mas, em segundo lugar, a Lei tal como se encontra no estado deste mundo também pode mudar por acidente, na medida em que, a Lei permanecendo a mesma, os homens se comportem de modo diferente em relação a ela, com mais ou menos perfeição. Neste sentido, o estado da Lei antiga conheceu frequentes mudanças: em certas alturas, as disposições legais eram observadas com cuidado; às vezes, elas eram totalmente negligenciadas. Da mesma forma, o estado da Nova Lei também varia de acordo com os lugares, as épocas, as pessoas, na medida em que a graça do Espírito Santo é possuída mais ou menos perfeitamente por este ou aquele. Consequentemente, a Igreja permanecerá sempre idêntica a si mesma, enquanto os homens que vivem na Igreja podem se comportar de modo diferente perante ela. A Igreja é, portanto, indefectível enquanto tal, ainda que ela não o seja nestes ou naqueles de seus membros, sejam eles titulares da autoridade da Igreja.

13. Observamos aqui um princípio sólido, sobre o qual a teologia pode e deve se apoiar para explicar fatos que poderiam, aparentemente, conduzir à negação da indefectibilidade da Igreja, mas que encontram sua explicação à luz da distinção supramencionada.

4 – SOLUÇÃO DAS OBJEÇÕES

14. Em primeiro lugar, poderíamos objetar que a Igreja de Roma, visível em sua hierarquia humana, deixou de existir ora desde o século 9, de acordo com os cismáticos ortodoxos, ora desde o século 16, de acordo com os hereges reformados. Desta forma, se a Igreja é indefectível, ela não é aquela de Roma, de acordo com os cismáticos, ou não é uma Igreja visível e hierárquica, de acordo com os protestantes. A Igreja não seria, portanto, indefectível precisamente enquanto ela se identificar com a Igreja católica romana, sociedade visível e hierárquica. A isto, é fácil responder que a falha indicada, se for verdadeira, não diz respeito à Igreja visível de Roma enquanto tal, tomada como instituição e em seus poderes divinamente instituídos, mas a alguns de seus membros, que caíram no cisma e na heresia usando como pretexto algumas atitudes imperfeitas, até mesmo escandalosas, de outros membros da Igreja.

15. Em segundo lugar, desde o Concílio Vaticano II, as autoridades da Igreja têm ensinado erros graves já condenados anteriormente pelo Magistério da Santa Sé. Ora, isso equivale a dizer que a Igreja falha(9). A Igreja não é, portanto, indefectível. A isto, respondemos que a falha diz respeito não à Igreja enquanto tal, considerada em seu Magistério, mas a alguns dos atos realizados por alguns dos membros de sua hierarquia, que romperam com a Tradição e que ocupam, infelizmente, os postos de autoridade na Igreja. O que convém designar como “Igreja conciliar” não é uma outra sociedade que nasceu da corrupção, ou seja, da morte ou da falha da Igreja Católica. Ela é uma privação, não do ser, mas do agir da Igreja católica. É uma paralisia, que ocorreu em alguns de seus membros, da ação comum da Igreja (ou seja, de sua profissão de fé e de culto), mas isto não pode ser a morte da Igreja, pois ela não pode deixar de existir antes da parusia.

16. Em terceiro lugar, desde o concílio Vaticano II surgiu o que Dom Lefebvre não hesita em chamar de “uma nova Igreja, uma Igreja liberal, uma Igreja reformada, semelhante à igreja reformada de Lutero” (10), uma “Igreja conciliar” e “modernista” (11). Ora, a Igreja é única e não pode se distinguir como tal de uma outra Igreja, mas de uma seita, cismática ou herética. Logo, a Igreja tendo se tornado liberal e modernista, ela não é mais católica, e deixou de existir. A Igreja não é, portanto, indefectível. A isto, respondemos que no espírito de Dom Lefebvre, as expressões que ele emprega ao falar da Igreja liberal, modernista ou conciliar designam não a Igreja enquanto tal, mas a Igreja considerada em uma de suas partes, que tende a paralisar sua operação interna, substituindo o propósito da Igreja católica, querido por seu divino Fundador, por um outro fim inventado em todos os seus componentes por conspiradores. Em outras palavras, a Igreja é dita liberal, modernista ou conciliar não essencialmente enquanto tal (pois, então, ela não seria mais católica e teria deixado de existir), mas acidentalmente, e enquanto alguns de seus membros induzem os outros a sofrer os efeitos nefastos de uma “infiltração inimiga”.

Padre Jean-Michel Gleize, FSSPX

(1) O leitor poderá se reportar ao que escrevemos nos números de fevereiro e setembro de 2013 do Courrier de Rome, assim como no artigo “Unité et légalité”, publicado no exemplar de maio de 2017.

(2) Cajetano, em seu Comentário da Suma teológica de São Tomás, no artigo I da questão 39 na 2a2ae, utiliza, para designar essa realidade, a expressão do “agere ut pars”: o membro da sociedade sendo, tomado como tal, aquele que “age enquanto uma parte de um todo”.

(3) São Tomás de Aquino, Suma Teológica, I parte, questão 96, artigo 4, corpus.

(4) Leão XIII, Encíclica Satis cognitum em Ensinamentos Pontifícios de Solesmes, L’Église, t. I, nº 557.

(5) Pio XI, Encíclica Mortalium animos em Ensinamentos Pontifícios de Solesmes, L’Église, t. I, nº 867-869.

(6) Joachim Salaverri, de Ecclesia Christi, tese 7, nº 294-296. O Concílio Vaticano I tinha previsto publicar a definição formal e explícita da perenidade da Igreja, nos dois esquemas sucessivamente propostos aos Padres (aquele de Clément Schrader, rejeitado, depois o de Joseph Kleutgen), mas essa iniciativa não obteve êxito pelas razões que se sabe. E, notar-se-á que a perenidade é diferente de indefectibilidade.

(7) Concílio Vaticano I, constituição dogmática Pastor aeternus, Prólogo (DS 3051-3052) e capítulo I (DS 3056 e 3058). É afirmado a perpetuidade da Igreja (“… quae fundata supra petram ad finem saeculorum usque firma stabit…”), mas este não constitui objeto direto da definição.

(8) Salaverri, nº 297.

(9) Ver no exemplar de abril de 2016 do Courrier de Rome os artigos “Assentiment ou soumission?” e “Obéir ou assentir?”.

(10) Cf. Dominique Palmieri, Tractatus de romano pontifice, tese I, § 6, 5ª demonstração, Roma, 1877, p. 257-259.

(11) “A Igreja conciliar nasce da corrupção da Igreja católica e só pode viver desta corrupção” (Editorial em Le Sel de la terre, nº 85 do verão de 2013, p. 10).