A LINGUAGEM OPACA DA IGREJA CONCILIAR

PODE-SE FALAR DE UMA “IGREJA CONCILIAR?” | DOMINUS EST

Oreste Sartore | Fonte: Corsia dei Servi

Tradução: Gederson Falcometa

Sob as inovações teológicas, as mutilações sacramentais, as liturgias criativas e os sermões ecumênicos assistenciais, é possível discernir o papel nada secundário desempenhado pela nova forma de comunicação da hierarquia eclesiástica.

A nova forma de comunicar nasceu, nem é preciso dizer, com o Concílio Vaticano II, seguindo as indicações de João XXIII, que deu aos teólogos e padres sinodais uma ampla renovação na forma de apresentação da doutrina, a menos que a substância fosse alterada[1]. Essa reestilização do catolicismo foi justificada pelo axioma (sofístico e falso) de que o homem moderno não pode ser abordado com a linguagem clara e definidora do Magistério precedente. 

O resultado agora visível para todos aqueles que querem ver a realidade é um caos comunicativo pelo qual os documentos, homilias e entrevistas de eminentes bispos, cardeais e papas, dependendo da filiação e conveniência de quem os interpreta, podem ser considerados em completa continuidade com a Igreja de sempre, ou em continuidade apenas em algumas partes (enquanto em outras precisariam de esclarecimentos), ou julgados substancialmente em ruptura com a Tradição ou mesmo tachados de anticristicos.

As razões desse caos podem ser vislumbradas em algumas distorções muito específicas da linguagem eclesial. 

A primeira forma de distorção é resultado do estilo usado nos próprios documentos conciliares. Os teólogos da Nouvelle Théologie, chamados por Roncalli para dirigir as obras, e os cardeais renanos dedicados à Revolução, cercaram de atenuações (litotes) os filosofemas modernistas ao colocarem um termo limite junto de uma afirmação que inclina à heresia: trata-se do o famoso “de certo modo” com o qual tentou-se tornar a afirmação menos perturbadora, desprovida de fundamento bíblico: “com a encarnação, o Filho de Deus se une de certo modo a todo homem” [2]. 

Uma segunda forma de linguagem opaca é a técnica de mascaramento, também de origem vaticano-segundista. Os padres sinodais, para obedecer à vontade de Paulo VI (as inovações tiveram que passar por uma grande maioria), acompanharam as ideias reformadoras com citações tiradas da Bíblia e do Magistério anterior que queriam reassegurar, mas nem sempre com sucesso (e nem poderiam: a palavra divina é como um diamante, que não pode se curvar à vontade de poder do homem) [3]. 

Mascarados pela linguagem imprecisa e narrativa, elementos não católicos foram gravados em documentos que, pela sua própria natureza, estavam protegidos pela aura magisterial [4], tanto que foram posteriormente selados por interessados intérpretes como obra da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade [5]. Algumas passagens são tão suscetíveis de uma interpretação ortodoxa (útil para reprimir o alarmismo perigoso) quanto liberal (aquela que será empunhada como um machado pelos epígonos modernistas). A hermenêutica pós-conciliar progressiva assumiu a responsabilidade de trazer à luz as sementes da erva daninha modernista que jazia misturada com as verdades divinamente reveladas. 

Esta forma de redigir os textos conciliares reflete uma técnica que não é nova, mas tem sido usada há séculos por hereges e expoentes heréticos (Erasmo). Pio VI já havia denunciado “a arte maliciosa dos inovadores”, que “fazem o possível para encobrir as armadilhas de sua astúcia sob frases fraudulentas, para que o erro oculto … se infiltre mais facilmente nas mentes e aconteça que – alterada a verdade da frase por meio de um acréscimo ou variante muito breve – o testemunho que deveria trazer a saúde, após certa modificação sutil, leva à morte… Afirmar e negar a bel prazer foi sempre uma fraudulenta astúcia dos inovadores para encobrir o erro”… e  tal “multilóquio incoerente … obscurece a verdade e, confundindo uma e outra coisa, confessa o que havia negado ou se esforça para negar o que havia confessado” [6]. 

O que ainda era embrionário no Vaticano II, ao contrário, se espalhou por todo o período pós-conciliar. Estamos falando aqui do uso indevido do gradualismo, uma terceira forma de distorção, que consiste em querer aplicar a uma realidade que tem um número finito de alternativas uma medida de avaliação de espectro contínuo.

A distinção entre a Igreja Católica e as confissões cismáticas/heréticas – pela qual se estava dentro ou fora da Igreja – foi substituída pelo conceito de comunhão incompleta, imperfeita, abrindo assim espaço para vários graus de comunhão e criando do nada (poder da linguagem) as igrejas irmãs, obviamente a caminho da plena comunhão. É uma pena que a semi-comunhão no reino sobrenatural não exista e, portanto, o conceito não tenha valor soteriológico.  

Da distinção pecado mortal- pecado venial, deixada de lado entre os primeiros arneses inúteis, passou-se a falar de ideal e de situações que ainda não a representam completamente. Desta forma, até mesmo a desagradável dicotomia salvação-danação é omitida (mas qual foi o propósito da Paixão de Jesus Cristo então?) e, consequentemente, os lugares relativos de alegria ou desesperação eterna. 

O gradualismo abre a porta para o relativismo explícito; de fato, “a verdadeira tolerância religiosa só pode existir superando a distinção mosaica entre verdadeira e falsa religião”, como afirmam descaradamente as colunas do jornal vaticano [7]. 

O gradualismo se opõe a conceitos claros e distintos, especialmente mandamentos divinos, que permanecem como normas de fundo que nunca são perfeitamente aplicáveis. Assim, se o matrimônio sacramental permanece o ideal dos casados, as outras uniões diferem apenas em grau, gozando cada uma de mais ou menos grande plenitude, encontrando-se em cada uma elementos de bem. 

Na medida em que nas mentes dos revolucionários o Concílio suplantou totalmente o Magistério precedente, novas deformações linguísticas foram produzidas. 

Como a fé chega até nós graças às palavras, uma forma drástica de expurgar a doutrina é remover as palavras que representam concepções católicas muito difíceis de conectar com a religião conciliar que está sendo estabelecida. 

A Missa deixa assim de ser o Santo Sacrifício para se reduzir a uma reunião festiva dos fiéis celebrando “o Ressuscitado” e a si mesmos. 

A vida após a morte tornou-se despovoada, pois os anjos da guarda, outros espíritos celestiais e demônios quase não são mais mencionados. 

O pecado mortal e o pecado original saíram do léxico dos sacerdotes (ou melhor, dos “presidentes da sinaxes dos fiéis”). Nem são mais lembrados os pecados que clamam por vingança diante de Deus. 

Alguns pecados capitais desapareceram, e as pessoas preferem apontar o dedo para crimes cometidos pelos poderosos (corrupção, evasão fiscal, etc.), ao passo que em vez das virtudes cardeais, são propostas as condutas que a ONU patrocina (acolhida, respeito pela Terra , etc.). 

Uma segunda maneira de fazer mudanças na doutrina é substituir as palavras usuais por outras mais ecumenicamente corretas. 

O pecado então assume nomes que carregam menos carga de responsabilidade como “ferida” ou “fragilidade”. 

O concubinato e a coabitação sodomita tornam-se “formas não perfeitas de união” ou “situações ditas irregulares”. 

A corrupção de inocentes perpetrada nas escolas – em palavras e atos – é tolerada como “educação sexual” pedida pela Europa (o grande Leviatã); de fato, os bispos se comprometeram a “respeitar e aplicar lealmente” os famigerados decretos que impõem o ensino de gênero mesmo em institutos administrados por religiosos. 

A substituição de palavras corresponde a um ofuscamento da doutrina e da ética que se tornam nebulosas, diferentemente interpretáveis e adaptáveis às situações. 

Em respeito ao humanitarismo de matriz onusiana (ONU), aqueles que querem entrar na Itália são automaticamente refugiados e, como imigrantes, foram elevados pela Caritas à condição de migrantes (uma palavra agora envolta em uma aura sagrada). Assim, o “acolhimento” é obrigatório (alimentação, alojamento, dinheiro para pequenas despesas e pagamento RCA auto) com o dinheiro do Estado e da Igreja (ou seja, nosso). 

Para manter a atenção voltada para as questões caras aos revolucionários, existem palavras-mantra da parafernália modernista, que são repetidas incessantemente por teólogos e prelados ligados à seita. Em particular, destacam-se: “esquadrinhar os sinais dos tempos” (isto é, adaptar-se e conformar-se com os sentimentos mundanos), “por um cristianismo profético” e (isto é, revolucionário e anti-católico) “o espírito sopra onde quer” (ou seja, todas as religiões são boas). 

O convite a libertar-se das amarras da doutrina é favorecido pelas primazias atribuídas ao “diálogo” (mesmo em detrimento da Verdade) e à “experiência” (caminho subjetivo e sentimental em direção à Deidade). 

Em seguida vêm os “vocábulos totem”, que contribuem para aumentar a névoa e possuem forte valência unitiva com as quais o mundo se adorna: paz [8], amor, liberdade e irmão, foram, com efeito, semanticamente esvaziados de seu significado cristão, encerrados em um limbo lexical e, portanto, instrumentalizados por aqueles que querem liderar as massas para a Nova Ordem Mundial. Os clérigos ecumênicos e os e os clericais a seus súcubos os repetem incessantemente, sem perceber o moinho para o qual estão levando água. 

O exposto também explica por que os documentos, conferências, exortações e homilias do clero de hoje são caracterizados por uma verbosidade transbordante. As encíclicas, desde João Paulo II até o atual bispo de Roma, assumiram dimensões nunca vistas no passado. Os documentos das conferências episcopais perdem-se em torrentes de tagarelice anódina. E, por amor à pátria, deixemos de lado as delirantes homilias vaticanas do capuchinho pentecostal Raniero Cantalamessa. Mesmo as orações, os Rosários, as Ladainhas e a Via Crucis seguem a onda com a adição de expressões pleonásticas. E deve ser. se você quiser basear a Via Crucis – como aconteceu aqui – nas letras de um cantor e compositor de orientação gnóstica como Fabrizio de André. 

A enxurrada de palavras e a ambiguidade dos textos também servem para reduzir o impacto das teses revolucionárias, encobertas por atenuações e digressões. 

Há também uma indeterminação estudada em textos recentes, por exemplo em Amoris Laetitia, como se fosse para deixar para os intérpretes (ou seja, a mídia) a tarefa de extrair o que é apenas insinuado sem ser totalmente explicado. O arcebispo Bruno Forte – Bergoglio sugeriu que no relatório do sínodo sobre a família não se falasse explicitamente de comunhão aos divorciados recasados: “… se falarmos sobre isso, não sabe a confusão que eles [os refratários à revolução, ndr] farão. Portanto, não falaremos de modo direto, mas faremos de forma que estejam as premissas, e depois eu tirarei as conclusões”. 

A fúria que incita a levar a cumprimento o mais rápido possível a reviravolta doutrinária induz a escrever sem retenção coisas que se contradizem entre si, para que das duas pontas do dilema cada um possa escolher a que melhor lhe convém. 

Entra-se no abismo quando as palavras de ordem da Maçonaria são retomadas descaradamente, como abertura (que muitas vezes indica a capitulação à reivindicações progressistas), mudança (que às vezes é usada como arma contra o ser e o dogma: nada é eterno, nada é imutável) e desafio (a coragem de se abrir e mudar). 

Para contrastar, em um tempo de palavras e diálogos com o mundo anticrístico, o clero  pelo contrário é ferido de afasia ao comentar alguns pontos da Revelação. Vale para todos o silêncio obstinado sobre Mc. 16,16 (“Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado”) ou não levando em conta o divino discurso na Última Ceia (Jo. 14-17). 

O clero também não encontra palavras para condenar as leis desumanas, sob o pretexto de não se intrometerem (afirmação desmentida noutras ocasiões, ver Lampedusa, Trump, etc.) ou de respeitar a autonomia do Parlamento (declarando assim a própria adesão a um dos principais dogmas da Maçonaria, a não ingerência, ou seja, a insignificância política da Igreja). Salvo depois, uma vez ocorrido o crime, colocam-se a lamentar (tendo cuidado para não desembainhar a espada, também porque os monsenhores se horrorizam com a tomada de posições claras e corajosas: para eles é sempre necessário buscar primeiro o que une em vez de condenar em nome dos conteúdos dogmáticos da Fé, que ao contrário seriam “divisivos” [9]; para eles, em suma, a “verdade” deve ser superada em nome da “caridade”). 

A conjunção das duas miseráveis máximas joaninas (“procurar o que une”, “atualizar a linguagem”) transformou-se inexoravelmente na liquefação da doutrina de Nosso Senhor substituída por um conglomerado de vagas declarações e exortações, mais em harmonia com os diktat dos potentados e, em última análise, do “príncipe deste mundo”. 

A fé católica tende a reduzir-se a uma religiosidade aberta ao mundo e às outras fés, privada da sua identidade à medida que sua fundação divina é obscurecida. 

Tudo isso é feito em troca das trinta moedas de prata hodiernas: o respeito dos potentados e da mídia. É por isso que quase todos os bispos e teólogos são sempre retratados com um sorriso alegre: sorriem porque são mais gentis do que seus predecessores, ficam satisfeitos porque são diferentes dos cruzados, inquisidores e papas católicos. 

Na prática, a igreja conciliar gradualmente se assemelha cada vez mais a uma associação a qual foi atribuída uma dupla tarefa: a de dar apoio espiritual ao Poder e de amalgamar as massas. Análoga função de controle os potentados esperam dos outros chefes religiosos. 

Dos atos da neo-igreja se deduz o objetivo indicado às nações: a paz universal (de Comenius, não de Cristo). Também é evidente o horror pelas guerras das quais as religiões são supostamente culpadas com suas divisões inúteis. Finalmente, surge a solução proposta: uma escolha entre uma religião reduzida aos limites da razão apenas (deísmo kantiano sob a supervisão dos Illuminati), e uma religiosidade individual (subjetivismo), guiada pelo sentimento (é verdade o que “sinto”) e orientado para a melhoria das condições econômicas e sociais (naturalismo). 

Em outras palavras, os dogmas dos Maniqueístas, Irmãos do Livre Espírito, Cátaros, Alquimistas, Rosa-Cruzes, Maçons de várias obediências, Teosofistas, Fabianos, Luciferianos, etc. foram assumidos pelo que ainda se orna com o título de hierarquia católica. 

E deles herdou, além da visão do futuro, o ódio ao passado e ao presente da Igreja Católica Apostólica Romana e seus obstinados residuais adeptos. 

Notas

[1] uma ilusão, pois toda linguagem pressupõe uma racionalidade subjacente e, portanto, é absurdo pensar em introduzir uma nova sem ter repercussões doutrinárias sequer profundas; de fato, uma práxis não pode existir sem uma doutrina que a justifique (a menos que se caia na absolutização da práxis, típica dos vários pragmatismos). 

[2] Gaudium et spes n. 22, 7 de dezembro de 1965. 

João Paulo II retomou esta invenção modernista em Redemptor Hominis, 4 de março de 1979, onde diz no n. 14: “o homem – cada homem sem exceção – foi redimido por Cristo, porque com o homem – cada  homem sem exceção – Cristo está de alguma forma unido, mesmo quando esse homem não está consciente disso”. 

[3] esta forma de esconder as inovações heréticas encontrou o seu ápice na exortação apostólica Amoris Laetitia, na qual as incríveis reviravoltas da doutrina e da moral são acompanhadas impudentemente por citações magisteriais e filosóficas que estão longe de endossá-las. Veja Patrizia Fermani, L’Amoris Laetitia como uma nova inculturação, site Riscossa Cristiana, 17 de maio de 2016 

[4] ao contrário, deveria ser dever preciso do Magistério (a força que se opõe ao caos) usar uma linguagem livre de ambiguidades, e não suscetível a interpretações espúrias. 

Vale a admoestação de Pio VI: “Se uma forma involuntária e falaciosa de dissertar é viciosa em qualquer manifestação oratória, de modo algum deve ser praticada em um Sínodo, cujo primeiro mérito deve consistir em adotar tal expressão em ensinar claro e límpido que não deixa espaço para o perigo de conflitos”. São numerosas as passagens do Evangelho (Mt. 5, 37), do Novo (1Jo. 2, 21; Ef. 4, 25; Rom. 1, 25) e do Antigo (Jer. 23, 26 e 28, 15; Eclo. 20, 24) Testamento ordenando proclamar a verdade contra a falsidade. 

[5] Este temerário apelo ao Espírito Santo para proteger, juntamente com os conteúdos católicos, também ambiguidades e teses extra-evangélicas, aliás inseridas com truques indignos de uma assembleia ecumênica, é repugnante tanto à razão quanto à fé. 

[6] Pio VI, bula Auctorem fidei, 1794, na qual condenou o Sínodo diocesano de Pistoia de 1786 

[7] Marco Vannini, “L’Osservatore Romano” 26 de abril 

[8] o Divino Mestre havia nos advertido (Jo 14, 17) 

[9] também este ponto indica uma adesão a um dos principais dogmas da Maçonaria, que “as religiões dividem e causam guerras”.