
Maria, Mater divinæ gratiæ
Maria, Mãe da graça divina.
Meus caríssimos irmãos, há dezoito séculos, em todos os cantos do universo, quantos lábios repetiram essa doce fórmula da liturgia sagrada! Por ela, quantas almas alcançaram a confiança e o arrependimento! Este título tão consolador, tão frequentemente reproduzido nos fulgores da piedade católica, revela-nos outro fundamento da devoção à Bem-Aventurada Mãe de Deus. Maria, Mater divinæ gratiæ.
A salvação do homem, o seu destino final, sobrenatural, só é possível pelo socorro divino da graça. Sem a graça, não há arrependimento, não há conversão, não há vitória sobre as nossas paixões, sobre o mundo e os demônios. Sem a graça, não há méritos, não há virtudes cristãs e, consequentemente, não há beatitude eterna. “Fostes salvos, diz São Paulo, pela graça, mediante a fé” (Ef 2, 8). Ao falar dos dons por excelência do divino Redentor, Davi dizia: “O Senhor vos dará a graça e a glória” (Sl 83, 12).
O grande Apóstolo pede incessantemente pelos povos dos quais a salvação lhe é confiada “a graça e a paz de Deus, o Pai, e de Nosso Senhor Jesus Cristo[1].” A Igreja, em suas súplicas, em sua liturgia sagrada, clama obstinadamente duas coisas ao seu celeste Esposo. “A graça para a vida presente e a glória para a vida eterna[2].” Ora, diuturnamente, é a Igreja que invoca a bem-aventurada Mãe do Salvador sob esse título consolador: “Maria, Mãe da graça divina.” Maria, Mater divinæ gratiæ. Esse comovente atributo da Rainha dos Anjos não é desprovido de sentido. E quando a Igreja invoca a Santíssima Virgem como Mãe da graça divina, ela não faz subir ao trono de Maria louvores exagerados, não lhe dirige votos supérfluos e impotentes.
A bem-aventurada Virgem é a nossa mediadora junto a Jesus Cristo.
Ela é a nossa advogada junto a Jesus Cristo.
Ela é o canal, a dispensadora da graça de Jesus Cristo.
Esses três pensamentos serão objeto desta Conferência. Encontraremos aqui um dos mais sólidos fundamentos da devoção à nossa poderosa protetora.
A bem-aventurada Virgem é, em primeiro lugar, a nossa mediadora junto a Jesus Cristo.
“Há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem, que se deu a si mesmo pela redenção de todos” (I Tm 2, 5-6).
Ouçamos o apóstolo São Pedro: “Jesus é a pedra que foi rejeitada por vós, construtores, a qual foi posta por pedra angular. E não há salvação em nenhum outro, e, sob o sol, nenhum outro nome foi dado aos homens pelo qual devemos ser salvos” (At 4, 11-12). Esta verdade é um dogma fundamental de nossa fé. Há apenas um Deus e apenas um mediador entre Deus e os homens. Esse mediador é Jesus Cristo.
Deus e o homem são separados por um abismo, por uma distância infinita. Quem cobrirá essa distância? Quem estabelecerá relações divinas, sobrenaturais, entre Deus e o homem? Quem reaproximará Deus do homem e o homem de Deus? Quem fará Deus viver da vida do homem, e o homem da vida própria de Deus? Quem unirá Deus ao homem e o homem a Deus por um laço supremo, insuperável, infinito? Quem fará um Deus do homem, e, do próprio Deus, um homem-Deus? Um mediador divino resolverá esse problema indetectável a toda inteligência criada. E esse mediador é aquele nomeado por São Paulo e São Pedro. Esse mediador, esse mediador único entre Deus e os homens, é Jesus Cristo homem, unus enim deus, unus mediator Dei et hominum homo Christus Jesus.
A mediação de Nosso Senhor Jesus Cristo se deve radicalmente à Encarnação. É pela Encarnação, e somente pela Encarnação, que Jesus Cristo, Filho de Deus e Filho do homem, une pessoalmente, em si mesmo, a natureza divina e a natureza humana.
Para unir Deus ao homem e o homem a Deus pelo laço da unidade sobrenatural, deífica e suprema, é necessário um ser prodigioso que possua em si mesmo a natureza dos extremos que ele deve unir. O Homem-Deus, ou o Verbo feito carne, é esse ser, esse mediador único entre Deus e o homem. Jesus Cristo cumpre sozinho todas as condições dessa mediação divina, que une Deus ao homem e o homem a Deus, que faz um Deus do homem, e, do próprio Deus, um Homem-Deus. Que consuma, entre Deus e o homem, a união mais estreita, mais profunda, mais única que a onipotência pôde realizar. Unus enim Deus, unus mediator Dei et hominum, homo Christus Jesus.
É, ao nos revelar sua divina mediação, que nosso doce Salvador dizia aos seus apóstolos: “Sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 16, 3). O Homem-Deus é o caminho que, único, conduz à graça e à glória. O Homem-Deus é a verdade, sem a qual ninguém jamais conhecerá o Pai, o Verbo e o Espírito Santo. O Homem-Deus é a vida, sem a qual ninguém jamais viverá da vida sobrenatural de Deus.
“Ninguém, dizia ainda Jesus Cristo, vêm ao Pai senão por mim” (Jo 6, 6).
Meditemos bem essa palavra adorável: “Ninguém vem ao Pai senão por mim”. Nem o anjo nem o homem subirão à beatitude eterna, atingirão a visão imediata da essência divina, contemplarão, nos esplendores da clara visão, o Pai, princípio eternamente fecundo de quem nasce eternamente o Verbo, dos quais procede eternamente o Espírito Santo.
Não, jamais o anjo e o homem gozarão da visão imediata das três pessoas divinas, na unidade de sua imortal essência, sem o mediador de Deus e dos homens: Unus mediator Dei et hominum, homo Christus Jesus.
“Sou a Porta, acrescentava o divino Salvador. Todo aquele que entra por mim será salvo: ele entrará, e sairá, e encontrará pastagens” (Jo 10, 9).
Cristo, mediador de Deus e dos homens, é a porta pela qual devem passar todos os eleitos que compartilharão da felicidade própria de Deus, saciar-se-ão, em um êxtase eterno, da vida própria de Deus. Ego sum ostium. Per me si quis introierit, salvabitur… et pascua inveniet.
É na ordem sobrenatural de nossas relações com Deus que o Homem-Deus disse: “Sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). É na qualidade de mediador divino entre Deus e os homens que ele acrescenta: “Sou a videira, e vós as varas” (Jo 15, 5).
“Permaneceis em mim e eu em vós. Como o vara não pode dar frutos por si mesma se não permanecer na videira, assim não podeis também, se não permanecerdes em mim” (Jo 15, 4).
Para entrar no céu da visão beatífica é preciso ser uma pedra viva da Jerusalém celeste. “Sois edifício de Deus, diz São Paulo, Dei ædificatio estis” (I Cor 3, 9). Contudo, a cidade de Deus, a Jerusalém celeste, tem apenas um fundamento, e esse único fundamento é Jesus Cristo.
Ouçamos o grande Apóstolo: “Ninguém pode colocar outro fundamento, senão o que foi posto, o qual é Cristo Jesus” (I Cor 3, 11).
Desses princípios, é necessário induzir que o sentimento universalmente difundido na Igreja, segundo o qual olhamos a Santíssima Virgem como a mediadora dos homens junto a Jesus Cristo, é um desses exageros não admitidos por uma severa ortodoxia, mas que, de algum modo, é permitido aos fulgores da piedade, do entusiasmo e do amor que inspira o culto da Mãe de Deus?
A bem-aventurada Virgem, ainda que Mãe de Deus, não é mediadora de Deus e dos homens. “Há um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem. Unus mediator Dei et hominum, homo Christus Jesus.”
Contudo, dizemos que a Santíssima Mãe de Deus é mediadora entre Jesus Cristo e os homens. Vamos a Deus por Jesus Cristo. Vamos a Jesus por sua divina Mãe.
Por sua maternidade divina, vimos, a bem-aventurada Virgem atinge a ordem da união hipostática por um vínculo de inexprimível unidade. “Deus habita no seio de Maria, repedimos com São Pedro Damião, e ele tem com ela uma identidade de natureza.” Habitat Deus in Virgine, cum qua habet identitatem naturæ.
Nada é tão próximo de um filho quanto a mãe que o carrega em seu ventre, que o traz à vida, que o nutre com o leite de seu seio materno. Ora, o sangue de Maria se tornou o sangue do Homem-Deus. A carne virginal e imaculada da Santíssima Virgem se tornou a carne de Jesus Cristo.
Pela encarnação do Filho de Deus, a augusta Maria possui uma dignidade que opera, entre Cristo e a Mãe de Cristo, uma união suprema, uma união infinita em seu tipo[3].
A Santíssima Virgem não é somente a Mãe de Deus, ela também é a Esposa de Deus. Cristo é o Adão divino; a bem-aventurada Virgem é a Eva divina. Ora, meditemos essas palavras misteriosas do Gêneses: “Não é bom que o homem seja só; façamos-lhe um adjutório semelhante a ele” (Gn 2, 18).
Deus quer criar o mundo da natureza. Ele quer que a raça humana nasça para a vida puramente natural por uma sequência de gerações cujo princípio e a fonte se ocultam no primeiro homem. Contudo, essa paternidade de toda a raça humana, esse princípio de vida natural, cujo primeiro homem carrega em si o elemento gerador, não pode se auto transmitir, se individualizar na posteridade de Adão senão com a ajuda, e pela mediação, Daquela que Deus deu como companhia ao Pai de toda a humanidade. “Não é bom que o homem esteja só; façamos-lhe um adjutório semelhante a ele.”
Eva será Mãe da raça humana. Ela será a coadjutora do homem. Ela cooperará à ação criadora. Ela será investida da missão mediadora entre Adão e toda a sua posteridade. Toda a raça humana sairá de Adão. Ele será seu Pai. Contudo, ela só nascerá à vida com a cooperação necessária da Mãe de todos os filhos dos homens. Eva será a Mãe da vida puramente natural. E eis o sentido desta palavra do Deus criador: “Não é bom que o homem esteja só; façamos-lhe um adjutório semelhante a ele.” Non est bonum hominem esse solum, faciamus ei adjutorium símile sibi.
Essas palavras misteriosas escondem uma imagem admirável da mediação que a Santíssima Virgem deve cumprir em relação ao Homem-Deus, do Adão divino, do Pai da raça dos filhos da regeneração e da graça. A bem-aventurada Mãe de Deus, a incomparável Esposa do Cristo redentor, a Eva divina, levará a posteridade do novo Adão à vida sobrenatural, assim como a Eva terrestre conduziu a posteridade do Adão terrestre à vida da natureza. Maria será Mãe da graça divina, assim como Eva foi Mãe da vida puramente natural.
Ouçamos São Bernardo desenvolvendo essa admirável doutrina, em um discurso sobre a mediação da Santíssima Virgem junto a Jesus Cristo, e que tem como título: “As doze Estrelas da coroa da bem-aventurada Maria.”
“Parece, dizia o grande panegirista das glórias da Santíssima Virgem, que Cristo por si só bastaria para a obra de nossa redenção, pois toda a nossa suficiência está nele[4].
Contudo, não era bom para nós que o homem estivesse só. Era conveniente que ambos os sexos trabalhassem na obra de nossa reconciliação[5].
A mulher bendita entre todas as mulheres, acrescenta esse santo doutor, não permanecerá ociosa. Ela terá seu lugar no plano dessa reconciliação[6].”
E qual lugar o imortal abade de Claraval assinalou à augusta Maria nesta obra toda divina e sobrenatural da redenção e reconciliação do gênero humano?
“Precisamos, continua São Bernardo, precisamos de um mediador junto ao nosso mediador. E não há mediador mais útil que a bem-aventurada Virgem, Mãe do Cristo mediador[7].”
Ao considerar a Eva divina na ordem dessa cooperação com a obra por excelência da redenção da humanidade, o santo doutor acrescenta:
“Eva foi uma mediadora cruel, pela qual a antiga serpente derramou seu veneno mortal na alma do primeiro homem. Contudo, Maria é a mediadora fiel, que preparou aos homens e às mulheres a bebida divina e o antídoto da salvação[8].”
Eva foi um instrumento de sedução, e Maria, um instrumento de propiciação. Eva aconselhou a prevaricação, e Maria nos deu a redenção[9].
A mediação da Santíssima Virgem junto a Jesus Cristo, tão eloquentemente ensinada por São Bernardo, é apenas um corolário da mediação do Homem-Deus junto a seu Pai. A celeste Virgem aplica à Igreja a virtude reparadora. Ela difunde sobre os filhos da regeneração a vida sobrenatural da qual Jesus Cristo é o princípio e a fonte.
Maria tira a graça das chagas de seu Filho, dos tesouros infinitos do divino mediador, das fontes do Verbo encarnado, sempre abertas para a Mãe e para a Esposa de Deus.
Em nossos livros santos, a bem-aventurada Virgem é comparada ao astro das noites, mas ao astro das noites na plenitude de seu esplendor. Ela é comparada a uma lua sempre cheia, que não sofrerá nenhuma diminuição, nenhuma atenuação em seu disco e em sua luz[10].
Ora, meus caros irmãos, o astro que nos ilumina durante a noite não é o princípio, o lar primordial da luz que ele difunde sobre nós. A lua se interpõe entre o sol e a terra. Ela recebe a luz do sol, a fim de nos transmiti-la enquanto a noite cobre com suas sombras e suas trevas a porção do globo que habitamos. A luz do sol não desce sobre nós durante a noite senão pela doce e salutar mediação do astro silencioso, que recebe diretamente do próprio astro do dia as torrentes de luz que ele nos reenvia. Sicut luna perfecta in æternum.
Todas as graças das quais a alma de Nosso Senhor Jesus Cristo é repleto em demasia, e das quais as efusões inundam o mundo sobrenatural, descem sobre a Igreja militante, nesta noite da provação, no seio das sombras da decadência, no fundo deste vale de lágrimas, apenas por meio do coração e das mãos de nossa doce e terna medianeira junto a Jesus Cristo. Opus est mediatore ad mediatorem.
A augusta Maria é a arca do testamento eterno, cuja arca da aliança é apenas uma representação. Ora, a arca figurativa se interpunha entre o Deus do Sinai e os filhos de Israel. Em seu seio, ela escondia a vara misteriosa que realizou tantos prodígios sob os Faraós, o maná que alimentou durante quarenta anos o povo de Deus, as Tábuas da Lei sobre as quais o dedo de Deus escreveu os dez mandamentos.
É do seio da arca figurativa que saem os oráculos sagrados. A bem-aventurada Virgem é a arca do testamento evangélico. Mediadora imortal, ela nos dá Aquele que ditou a Lei no topo do Sinai, que se tornou o maná divino dos filhos da graça, cujo poder esmaga Lúcifer. Ouçamos o discípulo bem-amado, o Filho adotivo da Virgem Imaculada, revelando-nos, em sua linguagem do terceiro céu, essa mediação misericordiosa da Mãe da graça divina.
“E abriu-se o templo de Deus no céu, e vi em seu templo a arca de sua aliança. E houve relâmpagos, e vozes, e trovões, e um tremor de terra, e uma grande saraiva” (Ap 11, 19).
Depois, o anjo de Patmos acrescenta:
“E um grande sinal surgiu no céu, uma Mulher revestida do sol. E a lua debaixo de seus pés, e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas” (Ap 12, 1).
A vida do tempo, a vida de nossa peregrinação é, para a vida eterna da glória, o que a noite mais sombria é para o dia mais puro e mais belo. Dizer isso não é suficiente. Ora, durante a nossa provação, não percebemos as clarezas sobrenaturais do sol dos eleitos. Nossos olhos doentes, carregados do pó da decadência, não poderiam suportar as luminescências das glórias reservadas aos habitantes da pátria celeste.
Todavia, o nosso doce Salvador, o divino sol que ilumina a cidade dos santos, encarregou sua terna Mãe de nos transmitir a luz divina do mundo da graça. Maria, Mater divinæ gratiæ.
E eis aqui o sentido destas palavras misteriosas do discípulo bem-amado: “E um grande sinal surgiu no céu, uma Mulher revestida do sol. E a lua debaixo de seus pés, e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas.”
Viajantes da esperança nesta noite que tantos erros e tantos crimes tornam tão sombria, jamais tiremos os olhos da nossa alma desta mulher bendita entre todas as mulheres, que recebeu a missão de fazer luzir, sobre essa terra de exílio, as doces luzes da graça. “Uma mulher revestida do sol”. Mulier amicta sole.
A mediação da Santíssima Virgem entre Jesus Cristo e a Igreja é figurada pelo Velo de Gedeão. A bem-aventurada Maria, dizem os santos Doutores, é o verdadeiro Velo de Gedeão, ou seja, daquele que subjugou todos os poderes infernais. Maria vellus Gedeonis.
“Assim como, diz São Bernardo, o Velo ficava entre o orvalho do céu e a superfície sobre o qual era estendido, assim também a bem-aventurada Virgem foi colocada como mediadora entre Jesus Cristo e a Igreja[11].”
Meditemos as palavras sublimes das quais o profeta Isaías se serve para pintar a mediação da augusta Virgem, tornada Mãe do Homem-Deus: “Céus, exclama o filho de Amos, derramem vosso orvalho. Que as nuvens façam chover sobre o justo; que a terra se abra e que ela faça germinar o Salvador” (Is 45, 8).
O seio virginal de Maria imaculada é essa nuvem divinamente fecunda que derramou sobre a raça humana o orvalho do céu da graça, dando-lhe Jesus Cristo, o próprio autor da graça. O Ventre da Mãe de Deus foi a terra de bênção na qual foi formado o novo Adão. A bem-aventurada Maria é o jardim do mundo sobrenatural, no qual as três pessoas divinas reuniram todos os tesouros e riquezas da graça, para espalhá-los sobre toda a Igreja.
O tempo, como um rio profundo, separa a Igreja militante da Igreja triunfante. Esse rio corre entre as margens dos céus e o vale das lágrimas, habitado pelos tristes filhos de um pai culpado. Contudo a bem-aventurada Virgem, por sua maternidade divina, é como uma ponte misteriosa lançada pela misericórdia infinita acima do rio do tempo, para aproximar as duas margens. É por ela que os filhos da esperança passam da margem desta vida para o reino eterno, onde seu divino Filho os recebe para fazê-los entrar na glória das três pessoas divinas, para consumar, entre os eleitos e o Deus três vezes Santo, essa unidade da glória, termo de nossos imortais destinos. Sic Maria inter Christum et Ecclesiam mediatrix constituta.
A bem-aventurada Mãe é chamada de “a porta do céu[12].”
O Homem-Deus disse: “Sou a porta. Aquele que entrar por mim encontrará pastagens[13].” Ora, como a bem-aventurada Mãe de Cristo é a porta do Céu, se o seu divino Filho se deu esse título misterioso? Ego sum ostium. A doce Mãe da graça divina é a porta que conduz a Jesus Cristo.
O Homem-Deus abre o santuário da visão beatífica somente aos eleitos. Maria é o pórtico sagrado que alcança o divino mediador.
Logo, queremos chegar um dia nas imortais regiões onde a divina essência se mostra descoberta aos filhos da glória eterna? Vamos a Maria. Tomemos o caminho que conduz a essa doce Mãe dos eleitos, e ela nos abrirá o pórtico misterioso que conduz a Jesus. Quæ pervia coeli porta manes.
A Santíssima Mãe de Deus é, portanto, nossa mediadora junto a Jesus Cristo, assim como Jesus Cristo é o nosso mediador junto ao seu Pai.
Acrescento que a Santíssima Virgem é a nossa advogada junto de Jesus Cristo, assim como Jesus Cristo é o nosso advogado junto ao seu Pai.
É dogma de fé católica claramente consignado no livro das revelações que Nosso Senhor Jesus Cristo, mediador de Deus e dos homens, é, ao mesmo tempo, advogado dos pecadores junto a seu Pai.
“Filhinhos, dizia o discípulo bem-amado, escrevo-lhes isto para que não pequeis… Mas se alguém de vós vier a pecar, temos um advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o justo por excelência. O qual é propiciação por nossos pecados, não somente pelos nossos, mas para aqueles de todo o mundo” (Jo 2, 1,2).
Temos como advogado junto do Pai celeste Nosso Senhor Jesus Cristo, seu próprio Filho, tornado nosso irmão. Advocatum habemus apud Patrem Jesum Christum justum.
Que atributo! Que asilo de esperança! Que fonte de confiança! Que oceano de salvação e de paz essa palavra inspirada oculta! “Temos Jesus Cristo como advogado junto ao Pai”. Advocatum habemus apud Patrem.
Como o nosso divino Salvador não se satisfaria se tivesse por bem defender a nossa causa no tribunal de seu Pai? E como ele poderia se proibir de defender a nossa causa se ele é o nosso advogado oficial, se ele está encarregado dessa missão? Advocatum habemus apud Patrem.
O Homem-Deus se torna o nosso advogado! Advocatum habemus apud Patrem.
Existe um advogado de maior nome? “Deu-lhe, diz São Paulo, um nome que está acima de todo nome”. Donavit illi nomen quod est super omne nomen.
Há um advogado com maior talento, com maior renome? “Toda a terra está repleta de sua glória”. Plena est terra gloria ejus.
Existe um advogado com um coração mais generoso, mais terno, mais compassivo, mais inclinado à misericórdia e à clemência, mais plenamente devotado à salvação daqueles cujos ele defende a causa no tribunal de seu Pai? Ouçam: “Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e vos aliviarei” (Mt 11, 28).
“Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas aqueles que te são enviados, quantas vezes quis reunir teus filhos, como uma ave reúne sua ninhada debaixo de suas asas, e não o quisestes!” (Lc 13, 34; Mt 23).
Onde obter uma piedade mais esquecida, uma caridade mais viva, mais ardente que aquela de Jesus Cristo por seus clientes? Ouçam este grito de uma compaixão que ultrapassa a admiração dos anjos e dos homens: “Chegados ao lugar chamado Calvário, ali o crucificaram, como também os ladrões, um à sua direita e outro à sua esquerda. E Jesus dizia: meu Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem” (Lc 23, 33-34).
O apóstolo São Paulo ensina a mesma doutrina que o discípulo bem-amado. Esse sublime pregador encontrou uma linguagem nova para falar à terra sobre a Misericordiosa ternura que fez de Jesus Cristo o advogado daqueles para a salvação dos quais ele derramou até a última gota de seu sangue.
Meditemos as palavras desse querubim do apostolado:
“Quem acusará os eleitos de Deus? (será) Deus quem os justifica? Quem os condenará? (será) o Cristo Jesus, que morreu por eles, ou melhor, que ressuscitou por eles? Que está à direita do Pai e intercede por nós? Quem, portanto, acrescenta São Paulo, nos separará do amor de Cristo? A tribulação ou a angustia? Ou a fome? Ou a nudez? Ou o perigo? Ou a perseguição? Ou a espada? Realmente, está escrito: somos todos os dias entregues à morte. Olham-nos como gado destinado ao matadouro.
Mas, em tudo isso, prevalecemos por causa daquele que nos amou. Ora, tenho certeza de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem a força, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma criatura poderá nos separar do amor que Deus nos testemunha em Cristo Jesus[14].”
Assim, longe de nos condenar, o Homem-Deus, após ter morrido por nós, subiu aos céus. Ele está sentado à direita do Pai para advogar por nossa causa, para, em nosso favor, fazer seus méritos infinitos, o sangue que ele derramou sobre a cruz, as chagas das quais seu corpo glorioso carrega os eternos estigmas, falarem. Qui etiam interpellat pro nobis.
“Porque vive para sempre, acrescenta o grande Apóstolo, ele tem um sacerdócio eterno. E, assim, pode salvar eternamente aqueles que por ele vão a Deus: sempre vivo para interceder por nós” (Hb 8, 23).
Jesus Cristo, mediador de Deus e dos homens, é também o advogado dos homens junto de seu pai. Contudo, assim como a bem-aventurada Virgem é a nossa mediadora junto a Jesus Cristo, essa bem-aventurada Mãe é a nossa advogada junto desse Filho bem-amado.
“Eia, pois, advogada nossa, exclama a Igreja, esses olhos misericordiosos a nós volvei. E depois deste desterro, mostrai-nos Jesus, bendito fruto do vosso ventre[15].”
A Igreja, inspirada, iluminada, dirigida pelo Espírito Santo, proclama a bem-aventurada Mãe de Deus sua advogada, sua poderosa protetora, sua misericordiosa patrona junto a Jesus Cristo. Ela a conjura a assumir nossa causa, a advogar por nós no tribunal de seu Filho divino, que o Pai eterno estabeleceu como juiz dos vivos e dos mortos.
A dulcíssima Mãe da graça divina é nossa advogada junto a Jesus Cristo. A Igreja o diz, a Igreja crê, a Igreja o ensina. Eia advocata nostra.
Logo, somos todos clientes desta poderosa, desta misericordiosa advogada. Para cada um de nós, nosso destino final é como um grande processo, de onde depende nossa felicidade ou nossa desgraça eterna. Não se trata somente da honra, da fortuna, da liberdade, da vida. Trata-se de conquistar o céu ou perdê-lo. De subir aos tronos gloriosos do céu da visão beatífica, ou descer ao fundo da região de desesperança, onde habitarão eternamente os reprovados. Se ganharmos esse grande processo contra o mundo, contra a carne e contra os demônios, atingiremos a felicidade suprema.
Entretanto, se o mundo, a carne e os demônios o vencerem no tribunal da justiça eterna, estaremos perdidos para sempre. Ei-nos devotados a males infinitos, caímos no abismo de um suplício eterno.
Mas, porque a eterna misericórdia investiu a santíssima Mãe de Deus da comovente missão de advogada, de padroeira da Igreja junto a Jesus Cristo?
Ah! Porque o divino Filho de Maria foi estabelecido por Deus, o Pai, juiz dos vivos e dos mortos[16]. “Todo poder foi dado ao Homem no céu e sobre a terra” (Mt 28, 18).
“Todos devemos comparecer diante do tribunal de Cristo, afim que cada um receba conforme o que fez ou de bem ou de mal em seu corpo” (II Cor 5, 10).
Vimos com qual terna e paterna bondade Jesus Cristo advoga a causa dos pecadores, com qual inefável amor ele os cobre com seus méritos, com sua caridade e seu sangue. Contudo, Jesus Cristo, Deus e Homem reunidos, não pode abandonar os direitos da justiça eterna. Essa justiça deve ser exercida com um rigor e uma severidade da qual nada é capaz de dobrar os decretos. Como Homem, Cristo compadece de nossas misérias, ele se sente inclinado a uma piedade ilimitada. Ele precisa esquecer, perdoar, agraciar esses pobres pecadores, que são seus irmãos, dos quais ele compartilha a natureza. Porém, como Deus, ele é cercado de uma majestade que oprime, que faz o pecador tremer. Diante da qual os próprios espíritos angélicos são tomados de terror.
Como o nosso irmão divino, sem faltar às formidáveis exigências de uma justiça inflexível, inexorável, procede, para fazer sobreabundar a misericórdia acima das ondas da justiça? Ele colocou a causa de todos os pecadores nas mãos Daquela que ele lhes deu como Mãe do alto do cadafalso, sobre o qual ele expiou os crimes da raça humana. Ele encarregou a Mãe da graça divina de pleitear por nós, ao pé do tribunal da justiça. Ele a investiu da plenitude de todos os direitos que pertencem à Mãe de Deus e à Mãe dos homens. Mãe de Deus, ela pode elevar suas súplicas e suas orações à altura da potência Daquele que ela invoca.
Mãe dos homens, ela pode extrair dos méritos infinitos de seu irmão divino o necessário para pagar à justiça toda a dívida da qual eles são devedores.
E quem poderia duvidar do poder desta bem-aventurada Mãe junto de seu Filho divino? Sua voz, mais doce que o mel, mais harmoniosa que todos os coros dos anjos, sempre encontra o caminho que vai direto ao coração do Homem-Deus. Ela possui palavras de inefável persuasão para atingi-lo. Ela é Mãe Daquele que foi constituído juiz dos vivos e dos mortos. Ela deu à luz, ao pé da cruz, a todos aqueles que devem comparecer ao tribunal do juiz supremo. Ela é a Mãe deles. Como esse juiz soberano, acorrentado pela piedade e a ternura filial a todos os desejos, a todas as vontades de sua augusta Mãe, poderia fechar seus ouvidos e o seu coração às súplicas e gemidos de semelhante Mãe? Como os pecadores poderiam entrar em desespero sobre sua salvação, quando a divina Mãe da graça e da misericórdia foi encarregada de protegê-los ao pé do trono da justiça; cercá-los com toda sua ternura, advogar por sua causa e aplicar-lhes os méritos infinitos do divino Redentor? No tribunal de Jesus Cristo, uma causa defendida, discutida, advogada por essa poderosa advogada, é uma causa ganha. Um processo, do qual a Rainha dos anjos e dos homens teve por bem se encarregar, é um processo perdido para o implacável inimigo dos homens.
Ao pleitear por nós no tribunal de seu divino Filho, a bem-aventurada Virgem faz seu coração de Mãe falar. Ela lhe mostra o ventre virginal onde ele foi concebido, e que foi, durante nove meses, seu leito de descanso, o santuário onde teve por bem se fechar, seu templo mais belo, seu palácio mais esplêndido, o paraíso das delícias de sua alma. Ela recorda ao divino Redentor do mundo o rio de lágrimas que ela derramou por nós ao pé da cruz, enquanto ele derramava seu sangue pela salvação dos homens.
“Sabem, diz Santo Anselmo, o que essa poderosa Advogada de todos os filhos de Adão imaginou para ganhar a causa dos pecadores que lhe confiam a salvação de sua alma? Daquele que é nosso juiz, a bem-aventurada Maria fez nosso Pai, nosso salvador e nosso irmão[17].”
Quando um desafortunado pecador, cliente desta incomparável advogada, é citado no tribunal do Juiz dos vivos e dos mortos, nossa bem-aventurada protetora precisa dizer ao seu Filho, tornado nosso irmão, apenas isso: “Lembrai-vos, ó meu Filho, que sou a Mãe deste pobre pecador, e que ele é vosso irmão.”
“Esta Advogada onipotente, diz por sua vez São Pedro Damião, não implora, ela ordena. Ela não pede, ela exige[18].”
Essa misericordiosa Advogada nunca experimentou uma recusa. Nunca advogou por uma causa sem assegurar seu triunfo. É o que leva Santo Anselmo a dizer: “Assim como é necessário que pereça aquele que se afasta de vós e vos abandona, assim também é impossível que aquele que se volta para vós, e que proteges, possa eventualmente perecer[19].”
“Que a tua misericórdia permaneça em silêncio, exclama São Bernardo, se alguém se lembrar de que estiveste ausente quando necessário[20].”
É sob o império da confiança ilimitada que lhe inspirava a poderosa mediação da Santíssima Virgem que o santo abade de Claraval compôs a ardente e suave oração que todos os filhos da Igreja repetem, noite e dia, há seiscentos anos, de um canto ao outro do universo.
“Lembrai-vos, ó piíssima Virgem, de que nunca se ouviu dizer que algum dos que tendo recorrido à vossa proteção, implorado a vossa assistência e clamado por vosso socorro tenha sido por Vós desamparado[21].”
A mediação da Santíssima Mãe de Deus junto a seu divino Filho se apoia, vejam, sobre poderosas razões e imponentes testemunhas. Logo, não é um exagero do entusiasmo, nem um piedoso excesso da confiança dos servos de Maria.
A Igreja, em suas orações mais solenes, em meio a suas pompas mais augustas, exalta ela própria os títulos que damos à doce Mãe da graça.
O Espírito Santo, que dita à Igreja as fórmulas suplicantes de sua liturgia, que são, para os fiéis, a expressão mais popular das crenças católicas, coloca nos lábios da Esposa de Jesus Cristo a confissão da doutrina tratada nessa conferência.
“Salve, ó Rainha dos céus! Exclama a Igreja, salve, dos anjos Senhora! Salve, raiz, salve, porta da Luz do mundo és aurora[22]!”
A mediação da bem-aventurada Virgem, sua poderosa intercessão junto a seu divino Filho, está ligada às próprias raízes de sua maternidade divina. A Santíssima Virgem não pode mais ser despojada de seu crédito junto a Jesus Cristo, porque ela não pode ser despojada da dignidade e do título de Mãe de Deus.
Quando deixar de ser a Mãe de Cristo, deixará de interceder pelos irmãos de Cristo, que são seus filhos. Mãe de Deus, ela tem sobre o Homem-Deus direitos eternos de Mãe, Mãe dos irmãos adotivos de Jesus Cristo, ela não pode deixar de ter por eles compaixões maternas.
Esse grande apostolado de misericórdia, essa mediação de salvação recaí sobre a bem-aventurada Mãe do divino Redentor no momento em que, por sua incomparável martírio ao pé da cruz, ela compartilhou do título de Redentora da humanidade e cooperadora do Homem-Deus.
Ela passou a participar dessa paternidade sobrenatural, da qual o Adão divino quis dividir a glória com sua Mãe, assim como ela dividiu com ele seu suplício e desolações.
Do alto de sua cruz, e alguns instantes antes de consumar o sacrifício redentor, o Homem-Deus deixou sua cabeça adorável, carregada de todas as dores e de todas as expiações, cair sobre seu peito dilacerado e ensanguentado. Seus olhos, inundados de sangue e lágrimas, se fixaram, com uma ternura inefável, sobre sua augusta Mãe, transpassada ela mesma, sobre o Gólgota, pela espada da dor da qual o ancião Simeão lhe tinha predito o suplício.
Então, ao abrir sua boca sagrada, Jesus lançou sobre a Eva divina essa palavra misteriosa: “Mulher, eis o vosso Filho” (Jo 19, 26).
Voltando em seguida seus olhos para João, o Evangelista, tornado seu irmão de adoção, Jesus acrescentou: “Eis tua Mãe” (Jo 19, 27). O que significa: ó mulher bendita entre todas as mulheres! Ó a verdadeira Mãe dos vivos! Ó vós que sois a Eva nova assim como sou o Adão novo, ó minha Mãe! Invisto-vos neste momento supremo de uma nova maternidade. Eu vos associo à obra da redenção e da salvação do mundo. Sereis a Mãe de todos os filhos da graça, assim como sois do filho de Zebedeu, meu filho e meu irmão de adoção. Vossa mediação, inseparável da minha, fará descer sobre a humanidade regenerada em meu sangue e em vossas lágrimas todos os frutos do grande sacrifício que ofereço ao meu Pai, e que vós mesma oferece, para lavar o universo das imundíces do pecado. Mulier, ecce filius tuus.
Notemos, meus caríssimos irmãos, que essa segunda maternidade, que faz de todos os filhos da graça, filhos adotivos da bem-aventurada Virgem, implica sua mediação entre Jesus Cristo e sua Igreja. Ora, no momento em que nosso adorável Salvador diz à sua mãe: “Mulher, eis vosso filho”; e ao seu discípulo: “Eis tua Mãe”, a posteridade do novo Adão e da Eva nova começa. É ao pé da árvore de vida que, na pessoa de João, o Evangelista, começa a linhagem de adoção sobrenatural fruto das núpcias sangrentas do divino Redentor e de sua augusta Coadjutora. Mulier, ecce Filius tuus; et ad discipulum: Ecce Mater tua.
Ao narrar a maravilhosa história do parto divino da Virgem imaculada no estábulo de Belém, o evangelista São Lucas se serve de uma expressão cheia de mistério: “Aí ela deu à luz ao seu primogênito, nos diz ele, e o envolveu em lençois, e o deitou em uma creche, porque não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2, 7).
Mas por que ele menciona um primogênito?
A Mãe imaculada do Verbo feito carne, a augusta Mãe do Filho único do Pai, poderia ter um segundo parto? Sim, respondem os santos Doutores. A Mãe da graça divina deveria dar à luz, na dor, à posteridade sobrenatural do novo Adão, e esse parto, de inexprimíveis torturas, se cumpriu no momento em que, do alto da árvore da salvação, Jesus Cristo, pai do século futuro, diz à mulher, única digna de toda a majestade desse nome, à Eva divina, à Mãe de todos os seus filhos adotivos: “Mulher, eis o vosso Filho”. Mulier, ecce Filius tuus.
A bem-aventurada Virgem nos gerará para a vida do Cristo, assim como ela trouxe Cristo para a vida do homem. Ela fará de nós os filhos e os irmãos de Deus, assim como ela fez de Deus o filho e o irmão do homem. Mulier, ecce Filius tuus; et ad discipulum: Ecce Mater tua.
A Santíssima Virgem, mediadora dos homens junto a Jesus Cristo, advogada de todos os pecadores ao pé do tribunal de Jesus Cristo, também é o canal pelo qual a graça divina desce sobre o mundo. Ela é a dispensadora de todos os dons sobrenaturais que jorram do sangue e dos méritos infinitos de Jesus Cristo.
“Deus, diz São Bernardo, só desceu à terra pelo ministério da bem-aventurada Virgem Maria. É por isso que ela é chamada, a justo título, pela própria Igreja: a raiz, a porta pela qual rompeu a aurora da luz divina[23].”
A Santíssima Virgem tendo recebido a sublime missão de conceder Jesus Cristo à terra, era conveniente, dizem os santos Doutores, que ela fosse investida da alta e salutar missão de derranar sobre toda a Igreja a graça que purifica e salva.
“Deus, retoma o imortal abade de Claraval, vos deu Jesus Cristo por Maria. Ele vo-la deu como um remédio necessário à cura de vossos males[24].”
“Cristo é um remédio, continua São Bernardo, porque, como um unguento misterioso, esse remédio divino se compõe de duas substâncias, da substância de Deus e da substância do homem[25].”
“Essas duas substâncias, acrescenta o santo Doutor, foram unidas, misturadas e, de algum modo, fundidas no seio da Virgem, como em um vaso preparador, o Espírito Santo as misturou, as uniu por uma sábia e inexplicável suavidade[26].”
E porque éreis indignos de receber esse remédio das mãos do Deus de toda majestade, diz ainda São Bernardo, ele vai confiá-lo às mãos da bem-aventurada Virgem. Ele lhe deu a guarda, a dispensação e a economia divina.
Querem, meus caríssimos irmãos, conhecer a razão providencial que fez São Bernardo compreender a ordem misteriosa das comunicações, das transmissões e das distribuições da graça? Ei-la. “É porque Deus não quer que única graça, que uma única bênção desça sobre a terra sem passar pelas mãos de Maria[27].”
Esse axioma tão consolador da piedade católica, essa fórmula arrebatadora das glórias da Santíssima Virgem, esse adágio imortal da misericórdia infinita de Deus por todos os pecadores, esse corolário laconicamente sublime de toda a mediação da augusta Maria junto a Jesus Cristo, só pode ter sido inspirado ao grande panegirista da Santíssima Mãe de Deus pelo espírito de verdade. Eis porque essa palavra, deslumbrante de esplendor e toda perfumada de piedade e de amor pela Rainha do universo, ressoa, desde seis séculos, do alto de todas as cátedras, e resume todos os louvores que sobem ao trono da Mãe de Deus e dos homens:
“Deus não quer que uma única graça, que uma única bênção desça ao mundo sem passar pelas mãos de Maria.” Nihil enim nos habere voluit, quod per Mariae non trensiret.
A puríssima Virgem é, de acordo com São Bernardo, a mulher do Evangelho que confeccionou um pão misterioso com três medidas do mais puro fermento: “O reino dos céus é semelhante ao fermento que uma mulher tomou e misturou em três medidas de farinha até levedar tudo” (Lc 13, 21).
Contudo, quais são as três medidas que compõem o pão descido dos céus? Essas três medidas são: a essência do Verbo infinito, a essência da alma e a essência da carne de Cristo, as quais, pela união hipostática do Verbo com a natureza humana, forma, no seio de Maria, no fogo da caridade infinita do Espírito Santo, e com o fermento da fé dessa Mãe virginal, o pão que alimenta os filhos da graça.
“Ó mulher bendita entre todas as mulheres! Exclama São Bernardo, é em vosso casto ventre que o Espírito Santo preparou, no fogo de seu amor, esse pão divino. Sim, ela é aventurada, essa mulher que misturou a essas três medidas o fermento de sua fé[28].”
“Sua fé concebeu, acrescenta São Bernardo, sua fé deu à luz[29]”.
A graça divina tem duas causas. Ela tem sua causa eficiente no Verbo divino, e sua causa instrumental na adorável humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Cristo, como Deus, “fez a graça e a verdade” (Jo 1). Gratia et veritas per Jesum Christum facto, est.
E Cristo, como chefe da Igreja, que é composta pelos anjos e os homens, lhe comunica a vida sobrenatural, a vida da graça e da glória. “Vim para que tenham vida” (Jo 10, 10).
Contudo, o Homem-Deus difunde a graça sobre seu corpo místico, ou sobre a Igreja, pelo canal de sua divina Mãe.
A bem-aventurada Mãe de Jesus Cristo é o aqueduto pelo qual corre a água da graça divina para irrigar o campo da Igreja. Quando uma fonte de água-viva entra integralmente no aqueduto, que deve transmiti-la, carregá-la, conduzi-la, a partir de sua nascente, ninguém pode beber da água dessa fonte se não tirá-la do canal pelo qual ela flui. Maria aquæductus gratiæ divinæ.
A Santíssima Virgem não produz a graça: o Homem-Deus é seu princípio, sua fonte, para todos os membros da Igreja. Contudo, o divino Filho de Maria não a difunde sobre o mundo senão pelo ministério de sua bem-aventurada Mãe. Maria aquæductus gratiæ.
Cristo é a fonte da vida sobrenatural da graça. Maria é o canal. A Igreja é o campo que o canal irriga. Fons Christus, canalis Maria, campus Ecclesia.
Cristo é o chefe do corpo místico, que é a Igreja.
Maria é pescoço que une o chefe aos seus membros.
Ora, os membros do corpo místico de Jesus Cristo são os fiéis. Caput Christus, collum Maria, corpus Ecclesia.
A doutrina que acabamos de expor é tão sólida quanto consoladora. Ela se fundamenta em um sentimento universalmente admitido na Igreja. Todos os monumentos da liturgia a proclamam, a destacam, a tornam popular. Os santos Doutores a ensinam, as nações católicos estão ligadas a ela no mais profundo de seu ser. Os séculos, enquanto transcorrem, a fortalecem. O irresistível movimento que arrasta toda a Igreja aos altares da dispensadora de todas as graças prova que a mediação da Santíssima Virgem junto a Jesus Cristo é um ponto inabalável das crenças mais firmes e dos sentimentos mais caros aos corações de seus filhos.
Bendigamos a Deus, caríssimos irmãos, por ter nos preparado, na mediação de Maria junto a seu divino Filho, um meio tão fácil e tão doce de atingir os nossos imortais destinos.
Logo, com Santo Agostinho, chamaremos a bem-aventurada Virgem de “a Reparadora do gênero humano.” Reparatrix generis humani. Não temeremos chamá-la, com Santo Ildefonso, de “a Reparadora do universo perdido pelo pecado.” Reparatrix orbis perditi.
Assim, tal como estabelecemos em nossas primeiras conversas, o culto que a Igreja presta à Santíssima Mãe de Deus se fundamenta no mistério de suas grandezas, em sua maternidade divina, na missão providencial que ela recebeu de Jesus Cristo.
Mãe de Deus, Maria tem o direito ao culto mais próximo daquele que prestamos a Deus. Mediadora entre Jesus Cristo e sua Igreja, Advogada de todos os filhos da esperança, Dispensadora de todas as graças, a Santíssima Virgem deve ser invocada como sendo, depois de Deus, o mais sólido apoio de nossa salvação.
A devoção à Maria é uma devoção necessária aos filhos da Igreja. Ela é um dos elementos fundamentais do Cristianismo. Sem essa devoção, a ordem sobrenatural é ferida mortalmente. O rio das divinas misericórdias seca. A piedade católica perde seu elemento mais profundo e mais doce.
É por isso que, meus caríssimos irmãos, noite e dia, façamos subir ao trono dessa poderosa Mediadora, dessa compassiva Advogada, dessa misericordiosa Dispensadora da graça de Jesus Cristo, esse clamor de amor que os filhos de Israel, cativos às margens do rio de Babilônia, dirigem à sua pátria: Si oblitus fuero tui… oblivioni detur dextere mea… adhæreat lingua mea faucibus meis si non meminero tui[30].
COMBALOT, Théodore, Pe. Le Culte de la B. Vierge Marie, Mère de Dieu. Tradução de Robson Carvalho. Lyon, Imprimerie Catholique de Perisse Frères, 1865, 4ª Conferência.
Notas:
[1] Epístolas de São Paulo.
[2] Gratiam in præsenti et gloriam in futuro. Liturgia.
[3] Suprema unio cum persona infinita. D. Thom. Dignitas maternitatis divinæ suo genere infinita. Suarez.
[4] Etenim sufficere poterat Christus siquidem, et nunc, omnis sufficientia nostra ex eo est, S. Bernard. Serm. 12, Stellas.
[5] Nobis bonum non erat hominem esse solum; sed congruum ut adesset nostræ reconciliationis uterque sexus. Ib.
[6] Jam itaque nec ipsa mulier benedicta in mulieribus, videbitur otiosa; invenietur equidem locus ejus in hac reeonciliatione. Ib.
[7] Opus est nobis mediatore ad mediatorem, nec alter nobis utilior quam Beata Virgo Mater Christi mediatoris. 1b.
[8] Crudelis nimirum mediatrix Eva, per quam serpens antiquus pestiferum etiam viro virus infundit. Sed fidelis mediatrix Maria, quae salutis antidotum et viris et mulieribus propinavit. Ib.
[9] Illa enim ministra seductionis, haec propitiationis. Ib. Illa suggessit praevaricationem, haec ingerit redeinptionem. Ib.
[10] Sicut luna perfecta in æternum
[11] Sicut vallus medium inter rorem et aream, sic B. Virgo mediatrix inter Christum et Ecclesiam constituta. S. Bernard. duodecim stell.
[12] Quae pervia coeli porta manes. Eccl. Liturg.
[13] Ego sum ostium. Per me si quis introierit… pascua inveniet. Jo X, 9.
[14] Rm 8, 33-39.
[15] Eia ergo, advocata nostra, illos tuos misericordes oculos ad nos converte. Et Jesum benedictum fructum ventris tui nobis post hoc exilium ostende. Salve Regina.
[16] Ipse est qui constituas est a Deo judex vivorum et mortuorum. Act. X, 42.
[17] Judex, per Mariam factus est Pater noster, Salvator noster, Frater noster. Ansel de B. V.
[18] Non orans sed jubens, non postulans sed imperans. Pet. Dam. Serm. B. M. V.
[19] Sicut, ó beatissima Virgo, omnis a te aversus et derelictus, necesse est ut intereat; ita omnis ad te conversus et a te respectus, impossibile est ut pereat. Ansel. B. M. V.
[20] Sileat misericordiam tuam si quis invocatam te, in necessitatibus meminerit abfuisse. Bern. Serm.
[21] Memorare, ô piissimaVirgo, non esse auditum a saeculo quemquam ad tua currentem prsesidia… esse derelictum. Bernard, Or.
[22] Ave,Regina coelorum, ave, Domina Angelorum: Salve, radix, salve, porta ex qua mundo lux est orta.. Ant. liturg.
[23] Salve, radix, salve, porta ex qua mundo lux est orta.. Ant. liturg.
[24] Dédit tibi Christum per Mariam, ut sanaret omnes infirmitates tuas. Bern. de Laud. B. M. V.
[25] Remedium est, quia ex Deo et homine, tamquam cataplasma divinum, confectum est. B. de Laud. V.
[26] Confuse sunt autem et commixtae istae duae species in utero virginis tamquam in mortariolo, Sancto Spiritu, tamquam pistillo, illas suaviter commiscente. De Laud. V.
[27] Nihii enim nos habere voluit, quod per Marias non trensiret. Bern. L. M.
[28] O felix mulier, benedicta inter mulieres, in cujus castis visceribus, superveniente igne Sancti Spiritus, coctus est panis iste… felix inquam, quae in haec tria sata, immiscuit fidei suae fermentum. Bern. De Laud. M.
[29] Fides concepit, fides peperit.
[30] Sl 136, 3.