A VIDA DE CRISTO EM NÓS, ENQUANTO CABEÇA DA IGREJA

jesus-christ-loveTrataremos:

  

1. O Testemunho de Cristo e de São Paulo

2. Que é, em linhas gerais, a vida de Cristo em nós;

3. Conseqüências práticas e aplicação às diversas virtudes em particular.

 

1. O Testemunho de Cristo e de São Paulo.

  

Nosso Senhor disse: «Eu sou a videira e vós as varas. O que permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto, porque, sem mim, nada podeis fazer» (Jo 15, 5). «nada», ou seja, nenhum ato salutar e, por conseguinte, nenhum ato meritório de vida eterna. Contra o que pensavam os semipelagianos, o mesmo initium fidei é da graça que provém de Cristo.

  

Semelhantemente, diz S. Paulo (Rm 6, 5): «nos tornamos uma mesma planta com Cristo», que é como que a raiz santa, e «se é santa a raiz, também o são os ramos» (11, 16). Noutra parte, expressa o mesmo valendo-se de outra figura: «vós sois o corpo de Cristo e membros unidos a membro» (1 Cor 12, 27); e o repete em diversas outras passagens.

  

Na Epístola aos Romanos (6, 4), afirma que pelo batismo «fomos sepultados com Ele a fim de morrer para o pecado»; morremos e ressuscitamos com Ele. Por isso, também diz S. Paulo: «Para mim, o viver é Cristo» (Gl 3, 27). Comenta S. Tomás: para os caçadores, sua vida é a caça; para os militares, a milícia ou os exercícios militares; para os estudiosos, o estudo; para os católicos e, sobretudo, para os santos, o viver é Cristo, pois Cristo quer viver neles; e porque os santos vivem da fé, da confiança e do amor de Cristo. E o próprio Cristo diz: «Mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará todas as coisas, e vos recordará tudo o que vos tenho dito» (Jo 14, 26). Ou seja: pelos dons de sabedoria, inteligência, ciência, conselho, piedade, fortaleza e do temor, vos sugerirá tudo que eu vos disse, de maneira que as palavras do Evangelho venham a ser para vós, «palavras de vida eterna» porque «são espírito e vida». O testemunho de Cristo e de São Paulo é manifesto, sobretudo nessas palavras da Epístola aos Gálatas: «E vivo, já não eu, mas é Cristo que vive em mim» (2, 20).           

  

2. Que é, em linhas gerais, a vida de Cristo em nós.

  

Da parte de Cristo, Ele, como cabeça da Igreja, satisfez outrora e mereceu, de condigno, todas e cada uma das graças, sejam suficientes, sejam eficazes, que recebemos ou viremos a receber. Ademais, intercede ainda agora, no céu, por nós e é causa instrumental física de todas e de cada uma das graças que recebemos, é instrumento unido à divindade, enquanto são os sacramentos, na produção da graça,  instrumentos separados, cf. III, q. 62, a. 5 e q. 8.

  

Que é que se requer, da nossa parte, para esta vida de Cristo em nós? Em primeiro lugar, é preciso guardar esta verdade na memória, e repetir freqüentemente para si mesmo: «Cristo quer viver em mim, rezar, amar, agir e sofrer em mim». Se assim fizermos, espontaneamente sepultaremos o velho homem, com seus desejos desordenados, baixos, mesquinhos, para abrigar em nossos corações os mesmos desejos de Cristo. É absolutamente necessário despojar-se do velho homem. Então, paulatinamente compreenderemos as palavras de S. João Batista: «Convém que ele cresça e que eu diminua» (Jo 3, 30). Em sentido moral, é preciso como que perder a personalidade própria, perder no bom sentido, para viver em Cristo, como membros que se ligam à cabeça. Ou seja, é preciso pensar, desejar, agir com Cristo e em Cristo, como a mão que opera movida e dirigida pela cabeça.

  

Assim, pouco a pouco, o espírito de Cristo se substitui ao nosso próprio. Ora, nosso espírito próprio é um determinado modo de pensar, de sentir, de julgar, de amar, de querer e de sofrer; é uma certa mentalidade especial, bastante limitada e superficial, que depende materialmente de nosso temperamento físico, da nossa herança, do influxo das coisas exteriores, das idéias da nossa geração e da nossa região. Este espírito próprio tem de ser paulatinamente substituído pelo espírito de Cristo, isto é, por seu modo de pensar, julgar, sentir, amar, agir e sofrer; então, Cristo verdadeiramente viverá em nós.

 

Os santos chegaram a uma impessoalidade superior, que supera em muito a personalidade própria natural, assim como, na ordem especulativa, Santo Tomás, jamais falando de si mesmo, escrevendo obras sempre objetivas, tornou-se o Doutor comum da Igreja; o mesmo ocorre, na ordem prática, com muitos santos nos quais aparece de modo eminente a vida de Cristo, como S. João Maria Vianney; nestes santos verifica-se plenamente estas palavras: «para mim, o viver é Cristo». Só os santos compreenderam perfeitamente que nossa personalidade moral não se completa perfeitamente caso não se perder, de alguma maneira, na pessoa do Cristo; assim como o rio, que só se completa quando se precipita no mar. Por isso, os santos substituíram seus próprios juízos e idéias pelos juízos de Cristo, recebidos pela fé; substituíram sua própria vontade, pela vontade santíssima de Cristo; sua ação pessoal, pela sua ação santificadora; assim, fizeram-se servos de Deus em sentido pleno, como a mão que serve à nossa vontade. Daí, S. Paulo poder dizer: «E vivo, já não eu, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 20). E S. João Crisóstomo: «Coração de Paulo, coração de Cristo».

   

No entanto, é preciso compreender de modo reto e pleno: isto não significa que Cristo deva diminuir-se, descendo à nossa vida inferior; mas que devemos nos oferecer a Ele, para que Ele viva em nós sua vida superior, vida que nos supera imensamente. Por exemplo, quando rezamos, devemos nos recolher sob a grande oração de Cristo, para que ela, de algum modo, se prolongue em nós, continue em nós. 

  

Se verdadeiramente tomássemos este caminho, não apenas seríamos melhores, mas nossa alma abandonaria a si mesma para viver esquecida de si própria. Então entenderíamos as palavras que Cristo disse a muitos santos: «permitte mihi in te vivere, et tu moriaris» [Permita que eu viva em ti, e que tu morras a ti mesmo]. Assim o fizeram S. Bento, S. Francisco, S. Domingo, S. Vicente de Paula; todos os santos que, por este meio, chegaram à santa liberdade dos filhos de Deus. Isto, que vale para os fiéis, vale ainda mais para os sacerdotes.

  

Devemos abandonar o velho homem, e «revestirmo-nos do homem novo». Revestirmo-nos de Cristo, como diz S. Paulo (Gl 3, 27; Ef 4, 24; Rm 13, 14).    

  

3. Conseqüências práticas e aplicação às diversas virtudes em particular.

  

Disso, derivam-se muitas aplicação com respeito à oração, humildade, caridade fraterna, fé, esperança, amor de Deus e aceitação das cruzes.

   

Com Respeito à oração: A alma, então, já não reza como antes, de modo demasiado limitado, conforme seus interesses próprios, mas sua oração torna-se a oração de Cristo, que se estende e continua nela mesma. Então, compreende as palavras ditas aos Apóstolos: «tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu o farei, para que o Pai seja glorificado no Filho. Se me pedirdes alguma coisa em meu nome, eu a farei» (Jo 14, 13); «Até agora não pedistes nada em meu nome; pedi e recebereis, para que o vosso gozo seja completo» (Jo 16, 24).

  

A alma, então, principalmente durante a Missa, adora em nome de Cristo; pede em nome do Salvador a conversão, não apenas de algumas, mas de muitas, de inúmeras pessoas, no presente e no futuro. Do mesmo modo, é reparadora, em nome de Cristo, pela generosa aceitação dos sofrimentos e dá graças, em nome de Jesus, pelos benefícios particulares, e pelo universal benefício da Criação, da elevação da vida à ordem da graça, da Encarnação, da Redenção, da Eucaristia. E, ao ver os pequeninos recebendo o pão espiritual, diz com Cristo: «Vos dou graças, ó Senhor do céu e da terra, porque revelastes estes mistérios aos pequeninos».

   

Então, a alma que segue esta via, dirige-se também à Santíssima Virgem, como em nome de Cristo; nela encontra sua Mãe em sentido pleno, e compreende melhor as riquezas que encerra a maternidade espiritual de Maria com respeito a todos que buscam a salvação.

  

Então, a alma consegue continuar mais facilmente sua oração por todo o dia; oferecendo, a qualquer hora, as obras do Salvador, principalmente as que meditamos no santo Rosário e na Via Crucis. Durante a visita ao Santíssimo Sacramento, oferece a Deus os atos do Menino Jesus, os atos de sua vida dolorosa e os de sua vida gloriosa e eucarística. Cristo vive verdadeiramente nela. A irradiação da contemplação e do amor do Salvador é uma realidade nesta alma.

   

Com Respeito à humildade: A alma começa a aborrecer a vida demasiado pessoal, começa a desprezar a si mesma, ao comparar-se com Cristo. Compreende melhor que todo pensamento excessivamente pessoal é limitado, estreito, inferior, oposto à santa liberdade dos filhos de Deus. Renuncia a eles, para viver da fé, das palavras de Cristo, que «são espírito e vida».

   

Por isso, começa a aborrecer o amor próprio, que impede a vida de Cristo em nós, assim como as mãos impediriam a vida do corpo, se quisessem viver ordenadas para si mesmas, e não para o corpo.

  

Donde, esta alma começa a gostar das humilhações e aceitar o desprezo sem muita tristeza. Crê que aquilo que nela é defeituoso deve ser notado, para que melhor ressalte, por oposição, a grandeza de Cristo, que deve viver em nós.

  

Assim, melhor se compreende estas palavras: «Permita que eu viva em ti, e que tu morras a ti mesmo» e estas outras: «Tua pobreza é extrema, mas eu sou rico e minhas riquezas te bastam»; são tuas; são como que propriedade pessoal tua.

  

A alma termina por ter suas virtudes, muito limitadas, como coisa de pouco valor e começa a amar, como um bem seu, as imensas perfeições do mesmo Cristo. O que parece grandioso aos soberbos e ambiciosos, a ela parece um nada, por ter renunciado a sua própria glória.

  

Com respeito à caridade fraterna: A alma cristã considera as demais pessoas como as consideraria o próprio Cristo e, por isso, encontra em quase todos algo de belo e digno de imitação, assim como em qualquer florzinha silvestre encontramos alguma beleza. Ama sobretudo os pobres, que são os membros dolorosos de Cristo, e as crianças, por sua inocência. Os ama de modo semelhante ao que Cristo os amou. Ama também aos velhos abandonados, que costumam ser mais sábios.

  

Com respeito à Fé: A fé desta alma é cada vez mais ilustrada pelos dons e torna-se mais penetrante e saborosa; Vê as coisas mais diversas com os olhos de Cristo. E em tudo se pergunta: Que pensa Jesus sobre isso? Assim, compreende muito mais o valor da Missa, da Comunhão, da absolvição sacramental. Do mesmo modo, melhor compreende o sentido espiritual dos acontecimentos quotidianos e para quais bens superiores Deus permite o mal. Esta alma diz a si mesma: «Cristo vê este bem superior». Ela mesma tem um certo pressentimento deles.     

   

Com respeito à Confiança: A alma aumenta sua confiança, pois Cristo lhe comunica a sua própria. Em sua memória, guarda as palavras do Salvador: «Eu venci o mundo». Que é como se dissesse: «Venci o pecado, o demônio, a morte. Tende confiança.» Esta alma pode desesperar de si mesma, de suas próprias forças; mas é então que mais espera em Deus. Com S. Paulo dirá: «Quando estou fraco, então sou forte» (2 Cor 12, 10). Assim trabalhava S. Felipe Neri: «Quando desconfio de mim mesmo é que mais confio na graça de Deus». João Batista Mazella, apóstolo da Sardenha, dizia, quando as dificuldades eram maiores: «De mim desespero, toda esperança perco, só em Deus confio».

  

Com respeito ao Amor de Deus: Aumenta muito notavelmente o amor de Deus, porque é como o amor de Cristo transfundido na alma de quem dele vive. É um amor que começa por causar na alma um certo êxtase espiritual, não corporal, pelo qual a alma que ama a Deus sai fora de si, é como que transportada a Deus. Enquanto o homem natural pensa quase sempre em si mesmo e em seus próprios interesses, ainda que de modo confuso, a alma espiritual pensa quase sempre em Deus; ama a Deus verdadeiramente e, no mesmo Deus, ama-se a si mesma e ao próximo, para mais glorificar a Deus estando cheia de paz e de alegria, ao menos no mais fundo de sua alma. É então que a alma começa a confiar-se inteiramente a Deus; está na via do perfeito abandono de si nas mãos de Deus.

  

Assim se cumpre o que pedia o Beato Nicolau von Flue: «O Mein Herr und mein Gott, nimm alles von mir, was mich hindert zu Dir; o mein Herr und mein Gott, gib alles mir, was mich fördert zu Dir; o mein Herr und mein Gott, nimm mich mir und gib mich ganz zu eigen Dir!» [Deus meu e Senhor meu, tirai-me de tudo o que me impede de me aproximar de vós; dai-me tudo o que me conduza a vós; privai-me de mim mesmo e concedei-me que, por inteiro, me entregue a vós].

  

Com respeito à aceitação da cruz: Por fim, a alma chega à uma generosa aceitação da cruz que é permitida por Deus para que se trabalhe mais eficazmente pela salvação das almas. É o que ocorreu com muitos santos pobres, tal como S. Bento José Labré e ocorre ainda hoje com muitos outros. É o que ocorre com os santos enfermos, que sofrem dia e noite sem gemer, mas, com Cristo, oferecem suas dores para a conversão dos pecadores; e, se estes não se converterem, a paz do mundo é impossível.

   

Se algumas almas generosas são movidas a se oferecer a Deus como vítima, é porque Deus, prevendo suas dores futuras, dá a elas a inspiração de assim se oferecerem. Daí que o mesmo Cristo as conforta como se fora Ele mesmo que nelas sofresse. Neste sentido, Cristo prolonga sua agonia até o fim do mundo.

   

Assim, Cristo foi a fortaleza dos mártires, sofrendo neles pelos três primeiros séculos da Igreja.

  

Por isso, com esse espírito, muitas almas rezam assim: «Senhor, nesta hora de crise mundial, em que se difunde o espírito da soberba, negando toda a religião e até a existência de Deus, dai-me uma inteligência mais profunda do mistério da Encarnação redentora e do vosso santo aniquilamento na Paixão; dai-me o desejo de participar das vossas humilhações e dores, na medida desejada pela Providência para mim; e fazei que neste desejo encontre paz, fortaleza e a mesma alegria, conforme o vosso beneplácito, para erguer o meu espírito e a confiança dos demais».

  

Isto vale para os fiéis que aspiram à santidade e, mais ainda, para os sacerdotes, que, em virtude de sua ordenação, devem especialmente tender à perfeição cristã, para que possam santificar os fiéis, sobretudo nos gravíssimos erros e extravios da hora presente, e para poder conduzir de novo à verdade e à vida cristã a quantos as tenham abandonado.

 

(Tradução: Permanência. extr. de “De unione sacerdotis cum Christo sacerdote et victima“)