Todos os seres humanos recebem a mesma vocação, de alcançar sua salvação.
Fonte: Le Parvis n° 110 – Tradução: Dominus Est
A chamada à vida religiosa ou sacerdotal merece ser chamada, em sentido estrito, de “vocação”, como consagração a Deus. Contudo, o destino de cada homem está bem predeterminado por nosso Criador em seu fim último, o Céu e, neste sentido “ampliado”, podemos afirmar que todos os seres humanos recebem a mesma vocação de alcançar sua salvação. Em todos os casos de vocação, seja de modo particular na consagração a Deus ou universal na busca da salvação, o Bom Deus parece usar o mesmo “método” para nos guiar em direção ao nosso objetivo. Verificamos isso estudando a vocação “sublime” dos próprios apóstolos e aplicando a cada fiel o que lhe é próprio, ainda que, por sua vez, o cristão que vive no mundo só esteja comprometido com a chamada vocação dita “comum”.
O insigne favor de Deus e irresistível atração do discípulo
O Evangelho relata a origem da vocação dos apóstolos dessa maneira bem impressionante: “Jesus retirou-se ao monte a orar e passou toda a noite em oração a Deus. Quando se fez dia, chamou seus discípulos e escolheu doze deles, aos quais deu o nome de Apóstolos” (S. Lucas 6,12). Notamos que a iniciativa vem inteiramente do próprio Jesus, uma vez que Ele se dará ao trabalho de nos lembrar ocasionalmente: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi” (S. João 15, 16). Podemos especificar que a chamada dos apóstolos também poderia ter sido feita individualmente, por exemplo, como no caso de São Mateus “Ao passar, viu Levi, filho de Alfeu sentado no telónio, e disse-lhe: segue-me. Ele, levantando-se, o seguiu” (S. Marcos 2,14).
Assim, Jesus se dirige aos seus escolhidos sob a forma de um mandamento, sem procurar explicar sua decisão ou dispor deles a uma resposta positiva e os apóstolos unanimemente dão sua concordância imediata e incontestável, como acabamos de ver em São Mateus e como é também é relatado para vários deles: “Passando adiante, viu outros dois irmãos, Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, que estavam numa barca juntamente com seu pai Zebedeu, consertando as suas redes, e chamou-os. E eles imediatamente, deixando a barca e o pai, o seguiram” (S. Mateus 4, 21-22).
Para a maioria de nós, a entrada na vida de filhos de Deus representa uma marca de maravilhosa predileção da qual fomos favorecidos desde tenra idade, sem o mínimo mérito de nossa parte e mesmo na mais completa inconsciência. Como única explicação para este incrível privilégio, podemos muito bem aplicar a cada alma que se tornou cristã esta declaração de amor: “Eu amei-te com amor eterno, por isso mantive o meu favor para contigo” (Jeremias 31, 3). E uma vez que a recepção desta graça inicial ocorreu sem o nosso consentimento, a cerimônia da “comunhão solene” proporcionou gradualmente a oportunidade de se apropriar de tal dom pela promessa de estarmos apegados a Jesus para sempre. Ao longo das nossas vidas, é importante valorizar cada vez mais este tesouro precioso e totalmente livre da nossa elevação à vida da graça e afastarmo-nos de tudo o que possa comprometê-la e causar-nos a sua perda.
Eficácia e disponibilidade soberana da graça, mas santificação lenta e incompleta do discípulo
O Evangelho não procura de modo algum ocultar a modesta origem dos apóstolos, que vieram de um ambiente rural e envolvidos em trabalhos manuais, uma vez que a maioria deles eram pescadores. Mas, ainda mais surpreendente, descobriu-se que até mesmo os apóstolos tinham muitos defeitos graves que muitas vezes levaram a severas reprovações do seu Mestre. A esse respeito, podemos limitar-nos a citar esta pungente queixa do Salvador dirigida não apenas à multidão de judeus, mas também aos seus próprios discípulos: “Ó geração incrédula e perversa, até quando vos hei de suportar?” (S. Mateus 17,17). Como resultado, já podemos tirar uma dupla lição:
- por um lado, a Igreja é divina e não pode perecer: seu Fundador não corre, portanto, o risco de apresentar seres humanos falíveis como sua base e como seus representantes;
- por outro lado, Jesus, o Bom Pastor não hesita, na sua grande misericórdia, em honrar homens comuns com a suprema dignidade de apóstolos, ao passo que poderia ter facilitado sua tarefa ao entregar-se, como colaboradores, pessoas excepcionais com uma trajetória irrepreensível, á imagem de um Cura d’Ars ou de um Padre Pio, que abundam na história da Igreja.
Deve-se salientar que ao longo dos três anos em que os apóstolos viveram na presença permanente do seu Mestre, testemunharam os maiores milagres e foram os primeiros beneficiários do ensinamento divino. No entanto, durante todo este período do ministério público de Nosso Senhor e nestas condições ideais para se aperfeiçoarem, os apóstolos progrediram de forma gradual, uma vez que a sua “conversão” radical e definitiva em heróis da fé e pilares da Igreja só teve lugar no momento de Pentecostes.
É fácil transpor este segundo ponto da história dos apóstolos para a vida de cada um de nós. Quer sejamos clérigos, religiosos ou leigos e, portanto, qualquer que seja a nossa vocação, a prestigiosa dignidade que nos é conferida pelo batismo não nos isenta de nenhuma das misérias da condição humana e desta natureza ferida pelo pecado: consequentemente, ninguém pode pretender se isentar da fatídica luta contra os seus próprios defeitos e maus hábitos. No entanto, esquecemo-nos demasiadas vezes desta realidade humilhante e damos, a nós próprios, um ar superior. Nisso merecemos a observação que Jesus fez aos judeus, advertindo-os contra a ilusão fatal de se acreditarem salvos e com direito ao Reino pelo simples fato de pertencerem à raça do povo eleito: “Produzi, pois, verdadeiros frutos de penitência, e não queirais dizer dentro de vós: temos Abraão por pai, porque eu vos digo que Deus pode fazer destas pedras filhos de Abraão”(S. Mateus 3, 8-9).
A superabundante bondade de Deus e o destino sublime do discípulo
Acabamos de constatar que, entre os apóstolos, os méritos pessoais de cada um permanecem muito limitados e suas próprias personalidades também nos parecem muito comuns. Mas como podemos explicar o fato de, por outro lado, Nosso Senhor lhes ter concedido prerrogativas tão incríveis e lhes ter feito promessas tão vinculativas? Na verdade, não podemos deixar de nos surpreender com o contraste ao descobrir, por exemplo, com que intimidade, Jesus trata seus apóstolos: “Não mais vos chamarei servos[…] mas chamo-vos amigos porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai”. (S. João 15,15). Jesus também assegura uma fecundidade maravilhosa ao apostolado dos apóstolos: “Eu que vos escolhi a vós, e vos destinei para que vades e deis fruto, e para que vosso fruto permaneça, a fim de que tudo o que pedirdes a meu pai em meu nome, ele vo-lo concederá.” (S. João 15, 16). Jesus ainda garante aos seus apóstolos poderes ilimitados e imunidade completa: “Eis que vos dei poder de caminhar impunemente sobre serpentes e escorpiões e de vencer toda a força do inimigo, e nada vos fará dano” (S. Lucas 10, 19). E, finalmente, Jesus compromete-se a conceder aos seus apóstolos a recompensa suprema: “Vós sois os que tender permanecido comigo nas minhas tribulações. Por isso eu preparo o reino para vós, como meu Pai o preparou para mim, para que comais e bebais à minha mesa, no meu reino” (S. Lucas 22, 28-30).
Sem dúvida, os apóstolos se beneficiaram de tal tratamento preferencial devido à missão única e papel inimitável na fundação e difusão da Igreja nascente. Mas, sem medo de errar, qualquer alma fielmente cristã pode aplicar a si mesma, de alguma forma, aqueles privilégios e compromissos divinos que são apropriados aos apóstolos, mas apenas como uma prioridade. Não devemos desanimar, embora nossas atividades possam parecer banais e nossa vida interior possa parecer de um nível medíocre. Santa Teresinha do Menino Jesus nos enche de esperança através de sua pequena via de “infância espiritual“, onde não se trata de acumular méritos pessoais nem de multiplicar os direitos à recompensa: mas o estado de graça fielmente salvaguardado é suficiente em si mesmo e desde a sua primeira aparição para atrair para todos nós a ternura paterna de Deus.
Pe. Pierre-Marie Laurençon, FSSPX