Dirá, talvez, alguém: Já que Deus usou para comigo de tanta clemência no passado, espero que a terá também no futuro. Eu, porém, lhe respondo: E por ter sido Deus tão misericordioso contigo, queres de novo ofendê-lo? Desse modo — diz São Paulo — desprezas a bondade e paciência de Deus. Ignoras que se o Senhor te suportou até agora, não foi para que continuasses a ofendê-lo, senão para que te penitencies do mal que fizeste? (Rm 2,4) E se tu, fiado na divina misericórdia, não temes abusar dela, o Senhor te retirará. “Se não vos converterdes… entesará o seu arco e tem-no preparado” (Sl 7,13). Minha é a vingança, e eu lhes darei a paga a seu tempo (Dt 32,35). Deus espera; mas, chegada a hora da justiça, já não espera e castiga então.
Deus aguarda o pecador a fim de que se emende (Is 19,18); mas, quando vê que o tempo concedido para os pecados só serve para multiplicá-los, vale-se desse mesmo tempo para empregar a justiça (Lm 1,15). De sorte que o próprio tempo concedido, a mesma misericórdia outorgada, servirão para que o castigo seja mais rigoroso e o abandono mais imediato.
“Medicamos Babilônia e não há sanado. Abandonemo-la” (Jr 51,9).
E como é que Deus nos abandona? Ou envia a morte ao pecador, que assim morre sem arrepender-se, ou o priva das graças abundantes e só lhe deixa a graça suficiente com que o pecador se poderia salvar, mas não se salva. Obcecada a mente, endurecido o coração, dominado por maus hábitos, a salvação lhe será moralmente impossível; e assim ficará, senão em absoluto, pelo menos moralmente abandonado.
“Derrubar-lhe-ei o muro, e ficará exposta…” (Is 5,5).
Que castigo! Triste indício quando o dono rompe o cercado e deixa entrar na vinha os que quiserem, homens e animais: é prova de que a abandona. É o que faz Deus, quando abandona uma alma: tira-lhe a sebe do temor, dos remorsos de consciência e a deixa nas trevas. Penetram, então, nela todos os monstros do vício (Sl 103,20). O pecador, entregue a essa obscuridade, desprezará tudo: a graça divina, a glória, avisos, conselhos e censuras; escarnecerá até de sua própria condenação (Pr 18,3).
Deus o deixará nesta vida sem castigo, e nisto consistirá seu maior castigo.
“Compadeçamo-nos do ímpio… não aprenderá (jamais) justiça” (Is 26,10).
Referindo-se a esse texto, diz São Bernardo:
“Não quero essa misericórdia, mais terrível que a ira” (Serm. 42, in Ct)
Terrível castigo, quando Deus deixa o pecador em seus pecados, e parece que nem lhe pede contas deles (Sl 10,4). Dir-se-á que já não se indigna contra ele (Ez 16,42) e que lhe permite gozar quanto neste mundo deseja (Sl 80,13). Desgraçados os pecadores que prosperam na vida mortal! É sinal de que Deus os reserva para aplicar-lhes sua justiça na vida eterna! Jeremias pergunta: “Por que o caminho dos ímpios passa em prosperidade?” (Jr 12,1). E responde em seguida: “
Reúne-os como o rebanho destinado ao matadouro” (Jr 12,3)
Não há, pois, maior castigo do que deixar Deus ao pecador amontoar pecados sobre pecados, segundo o que diz David: “pondo maldade sobre maldade… Riscados sejam do livro dos vícios” (Sl 28,28-29). Observa Belarmino:
“Não existe castigo mais terrível do que o pecado tornar-se pena do pecado”.
Fora melhor a um desses infelizes que o Senhor o tivesse feito morrer após o primeiro pecado; porque, morrendo mais tarde, terá a padecer tantos infernos quantos foram os pecados cometidos.
AFETOS E SÚPLICAS
Bem reconheço, meu Deus, que, no miserável estado em que me acho, mereci ser privado da vossa luz e da vossa graça. Pela inspiração, porém, que me dais e ouvindo-vos a voz que me chama à penitência, estou persuadido, entretanto, de que não me abandonastes. Já que assim é, multiplicai, meu Senhor, vossa misericórdia sobre minha alma; aumentai-me a luz divina e o desejo de vos amar e servir. Transformai-me, ó meu Deus; de traidor e rebelde que fui, convertei-me em fervoroso amante de vossa bondade, a fim de que chegue para mim o venturoso dia em que parta para o céu e louve eternamente as vossas misericórdias.
Vós, Senhor, quereis perdoar-me, e eu só desejo que me outorgueis vosso perdão e vosso amor. Dói-me, ó Bondade infinita, de vos ter ofendido tantas vezes. Amo-vos, ó sumo Bem, porque mo ordenais, e porque sois digníssimo de ser amado. Fazei, pois, meu Redentor, que vos ame este pecador por vós tão amado, e com tal paciência por vós esperado. Tudo espero de vossa bondade inefável. Espero amar-vos sempre no futuro, até à more e por toda a eternidade (Sl 83,2).
Que vossa clemência, meu Jesus, seja constante objeto de meus louvores! Louvarei também, por todo o sempre, a vossa misericórdia, ó Maria, pelas graças inumeráveis que me tendes alcançado. À vossa intercessão as devo. Assisti-me, Senhora minha, auxiliai-me e alcançai-me a santa perseverança.
Preparação para a Morte – Santo Afonso