ANÁLISE DA “NOVA RELIGIÃO”

Resultado de imagem para garrigou lagrangeO título destas páginas, tiradas da obra de Garrigou-Lagrange, é de nossa autoria. Julgamos que, embora escritas em 1928, permanecem impressionantes por sua atualidade e vigor.
A mortificação, assim como a humildade, estabelecidas de um modo permanente na vida religiosa pela prática dos três conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência, são coisas tão contrárias ao espírito mundano que este se esforçará sempre por negar-lhes a necessidade. O naturalismo prático sempre renascente sob uma outra  forma — que se chame “americanismo” quer “modernismo” — deprecia sempre a mortificação  e com ela os votos religiosos nos quais pretende ver não um nascimento para uma vida nova mas um entrave ao bem que cada um deve fazer em torno de si.
 
Por que, dizem, falar tanto em mortificação se o Cristianismo é uma doutrina de vida? Ou tanto de renúncia se o Cristianismo deve assimilar toda atividade humana em lugar de destruí-las? Ou falar tanto de obediência se o Evangelho é uma doutrina de libertação? Tais virtudes passivas não têm maior importância senão para espíritos negativos, incapazes de empreender qualquer coisa e que não têm senão a força da inércia.
 
Por que, acrescentam, depreciar nossa atividade natural? Nossa natureza não é boa? Não vem de Deus? Não se inclina a amar seu Autor mais do que a si mesma e acima de tudo? Nossas paixões ou emoções, isto é, os diversos movimentos de nossa sensibilidade, desejo ou aversão, alegria ou tristeza, etc., não são, do ponto de vista moral, nem boas nem más, só se tornam boas ou más conforme a intenção de nossa vontade que consente nelas, desperta-as, modera-as ou não as modera. E então não há que mortifica-las, cumpre apenas regula-las, são forças a utilizar, não a destruir. Não é este o ensinamento de Santo Tomás, tão diferente, acrescentam, do de tantos outros autores espirituais, notadamente do autor da “Imitação” 1.III,c.54, onde ele trata “dos diversos movimentos da natureza e da graça” em termos tais que fazem pensar naqueles que usarão mais tarde os jansenistas?
 
Por que, continua o naturalismo prático a dizer, combater tanto o julgamento próprio, a vontade própria? É lançar-nos no escrúpulo e pôr-nos em estado de servidão que destrói toda espontaneidade.
Porque condenar a vida do mundo, uma vez que é no mundo que a Providência nos colocou não para o combater mas para melhora-lo? O valor da vida religiosa se mede por sua influência social e para exercer esta influência ela não deve ser coibida por estas preocupações excessivas de renúncia, mortificação, humildade, obediência. Ela deve, ao contrário, deixar se desenvolver ao máximo o espírito de iniciativa, todas as aspirações naturais que nos permitirão compreender as almas do nosso tempo e entrar em contato com este mundo que nós não devemos desprezar mas tornar melhor.

 
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Netas objeções formuladas no final do século passado pelo chamado “americanismo”, retomadas pelo “modernismo”, a verdade está habilmente misturada com a falsificação. Chegam até a invocar a autoridade de Santo Tomás.
 
Pelo fato de que as emoções ou movimentos da sensibilidade, que Santo Tomás chama paixões, são forças a utilizar e não destruir; pelo fato de que cumpre regula-las e não mata-las, não se deve esquecer que estas paixões, quando não estão muito bem disciplinadas pela temperança, pelo desapego, pela castidade, pela força, pela paciência, pela humildade, pela doçura, pela justiça, pela obediência e pelas outra virtudes, animadas todas pela caridade, tornam-se as raízes de uma multidão de defeitos ou vícios. As virtudes, quer teologais, quer cardinais, e também as que se vinculam a estas, devem quase sempre, evitar dois vícios contrários; ora, esses vícios e suas conseqüências que subsistem em nós devem ser não somente velados, regulados ou moderados mas extirpados. Para se ver qual é, segundo Santo Tomás, o papel da mortificação inspirada pela virtude da penitência em espírito de reparação, bastaria enumerar os vícios dos quais ele trata em sua Suma Teológica, IIa., IIae.: os sete pecados capitais que nascem das três concuspicências e que têm cada um seis ou sete filhos muitas vezes piores que os pais que os engendram. Esta terrível progenitura dos pecados capitais, tal como descrita por Santo Gregório Magno, conta mais de 40 vícios que, felizmente, ao menos não são conexos como ocorre com as virtudes, porque o reino do mal não poderia ser uno como o reino do bem uma vez que ele se distancia da unidade. A matéria para mortificação está esparsa de um lado e de outro, mas hélas, ela não falta digam o que disserem os amantes do “caminho curto e fácil” para ir a Deus.
 
O naturalismo prático também repete, muitas vezes, este princípio de Santo Tomás: “A graça não destrói a natureza mas a aperfeiçoa”. Também dizem que os movimento da natureza não são tão desregrados como afirma o autor da “Imitação” e que é preciso o pleno desenvolvimento da natureza sob a graça. Como falta aí o verdadeiro espírito de fé, falseia-se o princípio de Santo Tomás que se invoca. Ele, Santo Tomás, fala de “natureza” no sentido metafísico da palavra e não no seu sentido ascético, isto é, fala da natureza humana como tal, aquela que corresponde à definição abstrata do que é um homem, portanto fala da natureza no que ela tem de essencial e boa, obra de Deus que deve ser, é claro, aperfeiçoada pela graça e não destruída por ela. Ele não trata aqui da natureza humana enquanto decaída e ferida, como ela está, de fato, concretamente, depois do pecado de Adão, deformada por nosso egoísmo às vezes inconsciente que se mistura a muitos dos nossos atos. Ora, é dessa natureza ferida, cujos ferimentos custam a cicatrizar, que falam as obras ascéticas e místicas como a “Imitação”  e elas não fazem outra coisa senão redizer o que também ensina Santo Tomás a respeito das seqüelas do pecado original e de nossos pecados pessoais (Ia., IIa., q. 85-86).
 
Estas conseqüências do pecado, enquanto representam uma desordem, devem ser destruídas, evidentemente. E esta destruição é obra da graça que não somente nos eleva mas também nos cura, “gratia sanans et elevans”.
 
Um excelente mestre de noviços dizia a um jovem aturdido que repetia o princípio “a graça não destrói a natureza” que “Não somente não a destrói mas a reconstitui, restaura-a, destruindo os germes de morte que nela estão e, em seguida, ela a aperfeiçoa tanto mais quanto aquela salutar destruição foi radical, como o mostra a vida dos santos”. É neles e não alhures que é preciso ver o que deve ser o “pleno desenvolvimento da natureza sob a graça” para não falsear tal desenvolvimento completamente, destruindo natureza e graça sob o pretexto de não destruir nada.
 
O equívoco mais ou menos desejado e mantido pela morna mediocridade a respeito das diversas acepções da palavra “natureza” não tarda a manifestar suas desastrosas conseqüências. A árvore se julga pelos frutos. Querendo muito agradar o mundo, estes apóstolos de novo tipo, em lugar de converter, saem convertidos por ele. Vimo-los, primeiro, ignorar as conseqüências do pecado original. A ouvi-los, o homem nasce bom, como diziam, os pelagianos e depois dele Jean Jacques Rousseau. Vimo-los, depois, esquecer a gravidade infinita do pecado mortal, como ofensa feita a Deus. Eles não mais o consideraram senão pelo lado humano e exterior, pelo mal que ele nos causa visivelmente na vida presente. Daí em particular desdenharam a gravidade dos pecados do espírito: incredulidade, presunção, orgulho e as desordens que são suas conseqüências. Em terceiro lugar e pela mesma razão desdenharam a elevação infinita de nosso fim sobrenatural; ao invés de falar da visão beatífica e da vida da eternidade puseram-se a falar de um vago ideal moral, tingido de religião, onde desapareceu a oposição radical entre o céu e o inferno.
 
Enfim, em quarto lugar, os escritores principais, tornou manifesto o seu princípio: o naturalismo prático ou, o que é o mesmo, a negação prática do sobrenatural, princípio que às vezes se confessa sob a seguinte forma: “A mortificação não é da essência do Cristianismo”.
 
É claro que estas invenções mais ou menos habilmente expostas não têm nenhuma relação com a vida e a doutrina de Nosso Senhor e dos Santos. O Salvador não desceu à terra para fazer uma obra humana de filantropia mas uma obra divina de caridade. Ele a realizou falando aos homens mais dos seus deveres que de seus direitos, dizendo-lhes da necessidade de morrer completamente para o pecado para receber em abundância uma vida e quis lhes testemunhar seu amor até morrer sobre a cruz para resgatá-los. Os santos seguiram-nO, estão todos marcados com a efígie de Jesus crucificado, todos amaram a mortificação e a cruz, tanto os santos da Igreja primitiva como os primeiros mártires como os da Idade Média, como um São Bernardo, um São Domingos, um São Francisco de Assis ou aqueles mais recentes como um São Bento José Labre ou o Santo Cura D’Ars.
 
É que Nosso Senhor havia dito “dirigindo-se a todos”; “Se alguém quer vir após mim que renuncie a si mesmo, tome cada dia sua cruz e siga-me. Porque aquele que quiser salvar sua vida, perde-la-á e aquele que perder sua vida por minha causa, salva-la-á. De que serve ao homem ganhar o universo se se perde a si mesmo?” (Luc. IX, 23).