BREVE CATECISMO SOBRE A IGREJA E O MAGISTÉRIO – GALICANISMO

História da Igreja: Galicanismo e Febronianismo - Cléofas

Fonte: Sì Sì No No, ano XXXIX, n. 18 – Tradução: Dominus Est

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Trata-se de um conjunto de doutrinas teológico-políticas sobre a eclesiologia, que defende:

1) limitar o poder do Papa sobre a Igreja francesa (“galicanismo teológico”), apoiando-se em direitos adquiridos no passado (Clóvis †511 e Carlos Magno †814);

2) favorecer a interferência do rei da França na própria Igreja, retirando do papa todo o poder sobre o reino de França (“galicanismo político”).

A origem remota do galicanismo encontra-se na teoria da unção de Clóvis, rei dos francos (496), pelo Bispo de Paris, S. Remígio (Remy) (†530), com óleo trazido por uma pomba diretamente do céu e não consagrado pelo bispo. A Enciclopédia Católica (Vaticano, 1951, vol. VI, col. 1769-1770) atribui a Incmaro, Arcebispo de Reims (806, 21 de dezembro de 882), a lenda da santa Ampola contida em sua obra Vida de São Remígio (P.L. 125, 1229-88, Monumenta Germaniae Historica, Hannover-Berlim, 1826, Script. Rer. Merov. III, pp. 239-341), que “é apenas uma obra de edificação” (“Enciclopedia Cattolica”, ibid., col. 1170).

A figura de Incmaro é altamente discutível. Basta consultar A. Fliche-V. Martin, Storia della Chiesa, (Cinisello Balsamo, San Paolo, 1983, vol. VI, pp. 423-475) para conhecer mais sobre sua longa atividade de falsificador de documentos e de decretos de direito canônico ou, pelo menos, de explorador de documentos falsos (as chamadas “falsificações isidorianas”, em homenagem a Isidoro Mercator, compostas por volta de 850). O fato de o Arcebispo de Reims (que era então o próprio Incmaro) ter sido o depositário e o guardião da Ampola trazida diretamente pelo Espírito Santo a Remígio em 498 ou 499 tornou esse arcebispo – tal como o rei da França – “em certo sentido” independente do papa. Todo o curso de ação de Incmaro na disputa que teve com Roma foi uma longa procrastinação, composta de atestados teóricos de obediência e de dependência em relação à Sé Apostólica, quando, na realidade (A. Fliche – V. Martin, ibidem, p. 473 e 475), ele continuava a agir como se fosse o soberano absoluto da sua arquidiocese e da Igreja da França, dada a sua supremacia sobre toda a Gália de Reims, por causa da Santa Ampola ainda conservada lá.

A origem próxima do galicanismo remonta à disputa entre Felipe o Belo e Bonifácio VIII e ao Grande Cisma do Ocidente. Formalmente, as primeiras expressões explicitamente galicanas encontram-se no “Concílio dos Bispos Franceses”, convocado pelo rei Carlos VI em Paris, em 1398 e em 1406. A expressão “liberdades galicanas”, que até então tinha servido para fortalecer as imunidades do clero francês face ao poder temporal, passou a mudar de significado, indicando a ideia de que a Igreja da França, com a ajuda do rei francês, devia recuperar as suas “antigas liberdades galicanas” contra a ingerência da autoridade papal, que teria sido limitada pelos antigos concílios franceses subordinados a ele. Nos “Quatro Artigos” aprovados, sob a presidência do Cardeal Pierre D’Ailly, pelo Concílio de Constança (1414-1418), artigos que refletiam a sua doutrina antipapal, foi resumida toda a doutrina galicana. Os Papas Martinho V (†1431) e Eugênio IV (†1447) recusaram-se a reconhecer os “Quatro Artigos”, mas os galicanos do século XVII apelaram para eles, como se fossem artigos definitivos da Fé. Essas ideias foram consagradas na “Pragmática Sanção” de Bourges (7 de julho de 1438), que representa as ideias do clero francês sob o rei Carlos VII.

Os princípios expressos na “Pragmática Sanção” são os seguintes:

1) a superioridade do Concílio universal sobre o Papa;

2) o Papa na França só tem um poder limitado pelos cânones antigos e aceitos pelos Concílios franceses. Portanto, durante o Concílio de Trento, os bispos franceses, referindo-se à “Pragmática Sanção”, opuseram-se à definição do primado pontifício, com o argumento de que a Igreja galicana ou a Igreja da França só estaria sujeita aos cânones antigos e aceitos do reino francês e, portanto, isenta da autoridade do mais recente Concílio tridentino.

Dessas polêmicas nasceu o “código do galicanismo” de Pierre Pithou, Les libertés de l’Eglise gallicane (1594), mais tarde apoiado pelo Cardeal Richelieu (†1642), segundo o qual a Igreja galicana é “livre” ou melhor, “isenta” de toda a obediência à Santa Sé, porque o papa não tem qualquer poder, nem mesmo indiretamente ratione peccati in temporalibus no Reino da França, sendo unicamente soberano em matéria espiritual. A obra de Pithou é, sobretudo, política (“galicanismo político”: poder absoluto do rei, que tem também autoridade indireta sobre o papa, ou monarquia de direito diretamente divino) e serve para exaltar a autoridade do rei da França também no campo eclesiástico, chegando a formular a teoria do poder indireto in spiritualibus do Estado sobre a Igreja.

O clero francês não aderiu imediatamente ao galicanismo político de Pithou, mas com Richelieu (†1642) e Luís XIV (1638-1715) isso também prevaleceu nos círculos eclesiásticos franceses. Bossuet (†1704) fez a distinção entre o “galicanismo político” ou dos magistrados e o “galicanismo teológico” ou dos bispos (superioridade do Concílio sobre o papa e jurisdição que vem aos bispos diretamente de Deus e não através do papa), tentando contrastar o seu galicanismo e o dos bispos franceses com o dos magistrados e do Pithou. “Mas a diferença é mais aparente do que real” (Michele Maccarrone, verbete “Gallicanesimo”, in “Encyclopaedia Cattolica”, Cidade do Vaticano, 1950, vol. V, col. 1899): o galicanismo de Bossuet é uma espécie de galicanismo político moderado ou mitigado.

Em 1682, surge a “Declaração do clero galicano”, que é a formulação definitiva do galicanismo teológico ou religioso e que foi causada pelo rei, que havia convocado uma assembleia de bispos franceses durante uma disputa que teve com o Papa Inocêncio XI sobre os direitos reais. O redator foi Bossuet, que “tentou atenuar as exigências dos galicanos e mantê-las dentro da doutrina comum. Entretanto, não conseguiu salvar a ortodoxia da declaração (DB 1322-1325); o primeiro artigo rejeita, contra a doutrina teológica comum, a intervenção do papa, mesmo indireta, no temporal. […]. O segundo defende a superioridade do Concílio […]. O quarto é o mais grave, porque nega a infalibilidade papal, concebida como ‘dependente do consentimento da Igreja’” (M. Maccarrone, ibid.).

Em 1690, o Papa Alexandre VIII condenou os “Quatro Artigos” (DB 1326). Os últimos sinais de vida do galicanismo ocorreram durante o Concílio Vaticano I sobre a definição da infalibilidade do Papa, que foi rejeitada pelos galicanos. (Cf. D. T. C., VI, I, col. 1093-1137; D. F. C., II, col. 125- 273; Pio Paschini, Lezioni di storia ecclesiastica, Turim, 1931, vol. III, p. 61 e segs. III, p. 61 e seguintes).

O galicanismo político “de direita” ressurgiu com Charles Maurras (†1952), que influenciou e influencia muitos dos atuais “tradicionalistas”. O pensamento de Maurras é o renascimento do galicanismo político[1].

A própria história refuta esse erro e “contra fatos não há argumentos”. O Papa S. Zacarias (741-752) respondeu ao Superior dos reis merovíngios Pepino, o Breve: “é bom para a França que seja um rei que exerça um governo de fato” e não Quilderico III, um rei “mandrião” deposto em 751 por Pepino com o consentimento do Papa, embora fosse descendente de Clóvis, que se converteu ao catolicismo do arianismo em 489 com todos os francos e de quem se diz (falsamente) que foi ungido com óleo trazido diretamente do céu numa ampola por uma pomba e não consagrado por um bispo ou pelo papa e, portanto, não dependente do Papa como os outros reis, mas direta e unicamente de Deus. Ora, se o Papa São Zacarias deu o consentimento que lhe foi solicitado por Pepino, de quem nasceram depois Carlos Magno e a dinastia carolíngia, para poder depor Quilderico III, descendente de Clóvis, isso significa que até os reis da França dependem de Deus através do Papa e assim eles não são monarcas absolutos ou por direito divino imediatamente dependentes de Deus.

(continua…)

Petrus

Notas

  1. Como agnóstico, Maurras desliza em direção ao laicismo prático ou modernismo social. A mola mestra desse laicismo nele é o ateísmo ou o agnosticismo; a sua concepção naturalista da Igreja como uma sociedade de ordem e não o Reino dos Céus na terra leva-o necessariamente ao laicismo, embora, como conservador e monárquista, ele seja um “clericalista”, mas não um cristão. É preciso compreender bem que, em Maurras, a concepção da monarquia não é tradicional, mas de direito diretamente divino, portanto absoluta e independente do Papa, mesmo ratione peccati (galicanismo político). O maurrassismo é como “o anjo caído que tenta sob a aparência do bem” (S. Inácio de Loiola, “Regras para o discernimento dos espíritos”, in “Exercícios Espirituais”). De fato, a aparência do maurrasianismo parece boa (monarquia, ordem, pátria), mas a realidade é má: separação entre Estado e Igreja, entre política e moral, entre príncipe e Papa. Esse erro eclesiológico conduz Maurras a uma concepção liberal ou socialmente modernista da relação entre o Estado e a Igreja, mesmo se defendida à luz do “super monarquismo”, que, nesse caso, não é incompatível com o liberalismo político. Outra consequência infeliz da sua doutrina agnóstica é o fato de tornar a política “amoral”, ou seja, separada da ética: Maurras não reconhece a lei de Deus e, por isso, a política, segundo ele, deve ser independente da moral. A conclusão é que a política de Maurras contradiz os princípios da política cristã. O próprio Maurras escreveu: “A política não é a moral”. Ora, essa não é a doutrina tradicional aristotélico-tomista, mas a doutrina moderna do Príncipe de Maquiavel. S. Tomás, seguindo Aristóteles, ensina que “a virtude moral da prudência aplicada à vida social chama-se política” (Comentário à Política de Aristóteles), ao passo que Maquiavel separou claramente a política da ética ou da moral, para torná-la o instrumento da razão de Estado e não um meio útil (ou virtude moral) para alcançar o bem-estar social comum temporal, subordinado ao bem-essar sobrenatural (fim último do homem). O catolicismo é, portanto, tão estranho à concepção política de Maurras quanto à de Maquiavel; de fato, ambos estavam mais do lado do “Principe” do que do Papa e queriam que este último fosse subserviente ao primeiro. Pio XI (†1939) julgou inaceitável uma redução da filosofia política a uma mera empiriologia com relações apenas extrínsecas com a fé, a teologia, a moral católica e em plena autonomia intrínseca. A religião e a política não são separáveis segundo a doutrina católica, que nisto se distingue claramente do liberalismo, que defende a plena separação da Igreja e do Estado (“Igreja livre no Estado livre”), da religião e da política. Assim, a doutrina maurrasiana, paradoxalmente, peca por um certo naturalismo ou liberalismo social e político, apesar de ser monárquica, antidemocrática e autoritária, mas de uma forma “teológica e politicamente galicana”. Perante essa tendência em Maurras, mais do que em toda a Action Française, uma vez que a elite católica da Action Française, nascida por volta de 1890, tinha sido dizimada pela primeira grande guerra de 1915-18, o Papa Pio XI, em 1926 (ano seguinte à Quas primas, encíclica sobre a realeza social de Cristo) quis unificar a ação social dos leigos católicos franceses sob a direção doutrinal do episcopado, para evitar um desvio naturalista e liberalista, ou seja, a separação do temporal do espiritual, da moral social. Pio XI – tal como Leão XIII, Pio X e depois Pio XII – queria a reconquista cristã da sociedade e não podia deixá-la nas mãos do agnosticismo teológico professado por Maurras, que conduzia invariavelmente à separação entre religião e política, Igreja e Estado, caraterística do galicanismo e do liberalismo ou modernismo social. O Papa Ratti queria “todo o Evangelho em toda a vida individual e social”. Por outro lado, a legislação laicista e o pensamento maurrasiano tinham um vício em comum: o princípio de separação entre religião e política, enquanto a doutrina católica se baseia no princípio da união e subordinação do temporal ao espiritual. Maurras queria separar claramente a religião da política, fazendo da primeira uma coisa privada e da segunda uma ciência pública. Em vez disso, já com os primeiros Padres da Igreja e os Pontífices da era constantiniana, e depois, de forma completa e sistematizada, com a filosofia perene, prevalece a tendência para subordinar a política à religião, porque o bem viver em comum (política ou ética social) deve ter como princípios os mesmos que regulam o bem viver do indivíduo (ética individual). O fim último do homem não é a polis, a civitas terrena ou o Príncipe, mas Deus e a Cidade celestial. Com S. Tomás (De regimine principum; Comentário à Política de Aristóteles) temos uma verdadeira filosofia política em seu estado perfeito: a pólis tem um valor subordinado e relativo ao Bem absoluto, que é Deus e o Reino dos Céus. Essa doutrina foi adotada e canonizada pelas grandes encíclicas de filosofia social e política de Leão XIII e Pio XI.