Fonte: La Porte Latine – Tradução : Dominus Est
Pelo Padre Jean-Michel Gleize, FSSPX
1. “É necessário guardar não somente o que nos foi transmitido nas Sagradas Escrituras, mas também as explicações dos santos doutores que as conservaram intactas para nós” Assim fala Santo Tomás de Aquino, ele mesmo qualificado, posteriormente, como “Doutor Comum da Igreja”[1]. Tal reflexão não é letra morta, se considerarmos que as obras do doutor angélico comportam cerca de 8000 citações dos “santos doutores”.
2. O termo “doutor” pode ser compreendido em sentido lato e impróprio, designando o teólogo tomado enquanto tal. O mesmo termo também pode ser entendido em sentido estrito e próprio e é um título dado “oficialmente pela hierarquia da Igreja[2] aos escritores eclesiásticos notáveis pela santidade de vida, pela pureza da ortodoxia e pela qualidade da ciência”[3]. Melchior Cano[4] mostra no que os doutores se distinguem dos Padres da Igreja, título este que é reservado a pessoas que viveram nos primeiros séculos[5]: os Padres dos primeiros séculos não são todos doutores, e nem os doutores são todos Padres do primeiro século. De fato, os doutores constituem, junto com os Padres, duas espécies diferentes de testemunho sobre os quais o Magistério da Igreja tem a possibilidade de se apoiar para indicar o sentido autêntico da doutrina divinamente relevada nas Escrituras. Tanto entre os Padres como entre os doutores (é o ponto comum que faz de ambos testemunhas autorizadas) é necessária a ortodoxia, ou seja, a conformidade perfeita de seus ensinamentos com o depósito revelado. A diferença é que nos Padres é necessária a antiguidade, enquanto nos doutores é necessária a erudição; ou seja, uma ciência eminente a qual pode ser apontada extensamente em razão da extensão de seus escritos, ou em razão da sua intensidade, ou em razão da profundidade de seu gênio. A auréola dos Doutores, diz Santo Tomás, é a recompensa de sua ciência, ou seja, o fruto da vitória que eles recebem ao expulsar o diabo das inteligências[6]. Outra diferença: o título de Doutor é objeto de uma atribuição oficial que se realiza por decreto solene do Soberano Pontífice e pelo preceito que lhe é dado de celebrar a missa e de recitar o ofício litúrgico correspondente; o título de Padre, ao contrário, é objeto de atribuição imemorial, baseado no costume.
3. É indubitável, contudo, que tanto os Padres quanto os Doutores podem misturar uma parte de pensamento pessoal à pura expressão da fé comum: nem toda palavra de um doutor da Igreja é palavra da Igreja. O historiador do dogma deve, então, distinguir com cuidado o que, nos seus escritos, têm verdadeiro valor católico e o que, ao contrário, não passa de opinião pessoal ou “infiltração de correntes ideológicas não tradicionais”[7]. Mas é evidente que a referida “infiltração” não poderia, em um santo doutor, assumir as proporções de um erro problemático, pois do contrário estaria em oposição, ou ao menos em dissonância demasiadamente sensível, não apenas em relação à doutrina divina e católica, mas também à doutrina comum dos teólogos.
4. Esse ponto é capital e queremos, aqui, salientar novamente os pressupostos[8]. A vida pessoal de um santo doutor, considerada do ponto de vista da virtude moral, não é a mesma coisa que sua reflexão pessoal, considerada desde o ponto de vista da virtude intelectual. A heresia, que se opõe à virtude de fé teologal, implica como tal os dois pontos de vista, o da vida intelectual inseparável da vida moral. Porque a heresia é o erro desejado com consciência de causa, e em oposição consciente à autoridade divina tornada manifesta por meio do juízo da Igreja. Mas enquanto a heresia é um erro (e um erro desejado), nem todo erro é uma heresia, porque há erros, e inclusive erros doutrinais, que não são desejados como tais, ou seja, que não são resultado de uma oposição consciente à autoridade de Deus e da Igreja, e que aliás podem andar juntos com uma vida pessoal irreprovável no plano da virtude moral. Mas o erro, contudo, permanece como ele é, e é por isso que, mesmo se por hipótese pura (dato non concesso) um escritor eclesiástico possa merecer as honras de uma beatificação ou de uma canonização, a Igreja poderá hesitar e até mesmo recusar a lhe dar o título de “Doutor da Igreja”. A canonização é merecida por aquele que deu exemplo de suas virtudes heroicas. O título de “Doutor” é merecido por aqueles cujos ensinamentos deram o duplo exemplo de ortodoxia e ciência eminente. Certamente, a santidade deve ser sempre acompanhada pela ortodoxia. Mas pode ser que nela não se encontre sempre a ortodoxia nem a ciência eminente, necessárias para o título de “Doutor”. Em que medida uma e outra devem mostrar-se exemplares? Cabe ao Papa julgar, mas ele deve para isso levar em conta tudo o que se exige, nas circunstâncias presentes, para a salvaguarda do bem comum de toda a Igreja, que é constituída por sua Tradição.
5. Beatificado por Bento XVI em 2010, o cardeal John Henry Newman (1801-1890) foi canonizado pelo Papa Francisco no dia 13 de outubro de 2019. E eis que, neste 31 de julho de 2025, um comunicado da sala de imprensa da Santa Sé reporta que depois da audiência dada ao Cardeal Marcello Semeraro, prefeito do Dicastério para as Causas dos Santos, o Papa Leão XIV “confirmou a posição favorável da sessão plenária dos cardeais e dos padres, membros do dicastério para as Causas dos Santos, concernente ao título de doutor da Igreja universal que será, em breve, dado a São John Henry Newman”[9].
6. Na espera pelos argumentos que o Papa não deixará de dar para justificar a atribuição desse título, já podemos repetir o que nós escrevemos há seis anos atrás, depois da canonização do cardeal: “mesmo que a fé pessoal de Newman tenha permanecido intacta, sua reflexão pessoal não poderia beneficiar-se de uma recomendação muito marcante por parte da Igreja”[10]. Isso se vê claramente em um dos principais escritos de seu período católico, An Essay in Aid of a Grammar of Assent, comumente abreviado como A Grammar of Assent, a “Gramática do assentimento”. Henri Bremond (1865-1933) fez um elogio que conhecemos “essa maravilhosa Grammar of Assent, que é para muitos de nós e será ainda mais para as gerações futuras o que a Suma de Santo Tomás e o Discurso do Método foram para as gerações anteriores”[11]. Mas esse elogio encontrou, no mesmo ano em que ele foi concedido a Newman, um contraditor formidável nas colunas da Revue de philosophie [12], que seria reproduzido no ano seguinte pela Revue Thomiste [13]. O Padre Emile Baudin (1875-1949), professor de filosofia no Colégio Stanislas, no Instituto Católico de Paris e na Faculdade de teologia católica de Estrasburgo, é o autor desse estudo magistral que faz um balanço sobre “A filosofia da fé em Newman”. Ele faz a seguinte crítica:
7. “Newman não parece ser apenas um psicólogo que se contenta em estudar o fato e a forma de sua fé, mas acima de tudo um filósofo buscando de tirar dela, de modo mais ou menos consciente e voluntário, uma teoria geral da crença. Qual é o fundamento dessa filosofia – se essa expressão acaso puder ser empregada para caracterizar um sistema tão ondulante? Newman parece muito convencido que o princípio, o ponto de partida e o fundamento de sua doutrina encontra-se nos dados da experiência. Pensa oferecer o que, se o chamássemos em termos comtianos[14], uma doutrina positiva da fé, baseada sobre os fatos, e em nada além dos fatos. Mas parece, acima de tudo, que ele busca um processo inverso ao método científico e que apela à experiência para estabelecer uma doutrina preconcebida. Desse modo, toda sua obra seria um vasto raciocínio por hipótese[15] com, por hipótese fundamental, o fideísmo[16] tomado como doutrina, e mais ainda como atitude. Não teria, pois, um fundamento objetivo. O fideísmo, em Newman, é antes de tudo um desejo e uma atitude, e em seguida uma doutrina, em seguida uma psicologia”[17]. Newman parte do fato de sua crença e pensa mostrar que ele se justifica (ou que o objeto da sua crença é confiável) porque ele aparece à experiência conforme às aspirações de sua vida profunda, conforme com sua busca pessoal da verdade. Newman coloca o acento sobre si, com o risco de negligenciar as outras razões sem as quais tal crença seria insuficiente: as razões de credibilidade externas, como os milagres e as profecias. Desse fato, no newmanismo, “todos os argumentos são subjetivos, toda fé se confunde com o desejo de crer e toda verdade com nossa verdade útil. O pragmatismo religioso, estabelecedor da utilidade, deve então oferecer uma justificação integral da fé integral, apesar das restrições e das distinções introduzidas pela razão raciocinante”[18].
8. Mons. Honoré, que continua sendo um dos especialistas reconhecidos sobre a vida e pensamento de Newman[19], não estava errado ao ver, na Gramática do Assentimento, o desenvolvimento magistral “das intuições que Blondel retomará posteriormente em seu Action”[20]. Blondel, o filósofo da ação, fazia a fé repousar nas necessidades vitais da ação humana. Newman, certamente, não chega diretamente até esse ponto, adotando o que será o princípio próprio do modernismo de Blondel. Mas ele deixa a porta aberta para tal princípio: “Deixemos as demonstrações”, diz Newman “para os que tem tal dom. Para mim, é mais conforme a meu temperamento tentar uma prova do cristianismo do mesmo modo não formal que me permite saber, certamente, que vim ao mundo e que dele sairei”. O argumento se conduz por “uma acumulação de probabilidades variadas”. Ele sustenta que “a partir de probabilidades, nós podemos construir uma prova legítima suficiente para ter a certeza”[21]. Essa última reflexão é capital, porque ela mostra que Newman tenciona chegar a uma certeza. É justamente porque seu argumento, retirado da tese das probabilidades convergentes, não cai de modo algum no golpe da condenação do decreto Lamentabili, que, em 1907, dezessete anos após a morte do Cardeal, sancionará como reprovada e proscrita a seguinte proposição: “O assentimento da fé, em última análise, baseia-se num acervo de probabilidades”[22]. Newman diz que o fato da revelação pode ser provado por um certo agrupamento de probabilidades e que a razão chega a obter deles uma certeza legítima, enquanto que aos olhos dos modernistas, mesmo para aqueles que aproveitam o melhor possível dos argumentos da apologética, não se pode elevar ninguém para além das probabilidades[23]. E não se deve esquecer que Newman se preocupava, antes de tudo, com a fé dos mais simples. Mas no fim, mesmo com isso, o fideísmo imanentista[24] subjacente à apologética de Newman, inconsciente que foi, tinha de um dia conduzir até a filosofia da ação de um Maurice Blondel.
9. É oportuno promover ao título de Doutor da Igreja o autor de tais reflexões? Reflexão tão oscilante, diz o padre Baudin, que o sistema de seu pensamento lhe é “quase invertebrado” e que “nada é mais perigoso do que o esforço de delinear ossatura equivalente a tal organismo”[25]. Para além da ortodoxia clara e nítida, encontraremos a eminência de uma ciência sabiamente construída? Cremos, infelizmente, que é possível ter razões para duvidar disso.
Notas:
1. Santo Tomás de Aquino, Comentário sobre o Tratado dos Nomes divinos de Dionísio Areopagita, capítulo II, lição 1. O doutor angélico explica, nesta parte, que o recurso à autoridade dos santos doutores é o meio de conservar intacta a regra da Escritura: “Quia nos, a sacra Scriptura recipientes manifestationem Dei, ea quae in sacra Scriptura sunt posita, oportet nos custodire sicut quamdam optimam regulam veritatis, ita quod neque multiplicemus, addentes ; neque minoremus, subtrahentes ; neque pervertamus, male exponentes ; quia dum nos custodimus sancta ab ipsis custodimur et ab ipsis confirmamur ad custodiendum eos qui custodiunt sancta. Oportet enim non solum conservare ea quae in sanctis Scripturis sunt tradita, sed et ea quae dicta sunt a sacris doctoribus, qui sacram Scripturam illibatam conservaverunt”
2. Outra essa consagração poderia ser feita pelo Magistério ordinário dos bispos: hoje, ela é reservada ao Papa somente, agindo sozinho ou como chefe de um concílio ecumênico.
3. Robert Lesage. “Doutores da Igreja”, na Enciclopédia publicada sob a direção de Gabriel Jacquemet, Catholicisme hier aujourd’hui et demain, t. III, 1952, Letouzey e Ané, col. 936.
4. Melchior Cano (1509-1560), O.P., é um dos principais teólogos da Escola de Salamanca, no século XVI. Sua obra principal é o Tratado dos lugares teológicos (De locis theologicis), que foi publicado depois de sua morte em 1563.
5. Melchior Cano, De locis theologicis, livro VII, capítulos 1 e 2.
6. Suma Teológica, supl., q. 96, a. 7 : “Perfectissima victoria contra diabolum obtinetur quando aliquis non solum diabolo impugnanti non cedit, sed etiam eum expellit, et non solum a se sed etiam ab aliis. Hoc autem fit per praedicationem et doctrinam”. É uma obra de misericórdia espiritual.
7. Lesage, ibidem.
8. Ver o artigo “Sobre a canonização do Cardeal Newman”: https://catolicosribeiraopreto.com/sobre-a-canonizacao-do-cardeal-john-henry-newman/
9. https://www.vaticannews.va/fr/pape/news/2025-07/cardinal-newman-proclame-docteur-eglise.html
10. Artigo “Newman”, Courrier de Rome, dezembro de 2019, § 9, p. 8
11. Henri Brémond, Newman. Essai de biographie psychologique. Paris, 1906, p. 8
12. Revue de philosophie de 1° de junho de 1906 (p. 571–598), 1° de julho de 1906 (p. 20–55), 1° setembro de 1906 (p. 253–286) e 1° de outubro de 1906 (p. 373–391).
13. Revue thomiste de 1906, p. 723-733 e de 1907, p. 222-231
14. Ou seja, segundo o estilo de Auguste Comte (1798-1857), autor do modo de pensamento positivista, que se compreende amparado unicamente sobre os fatos.
15. O raciocínio por hipótese é um raciocínio que pressupõe a verdade de uma interpretação dos fatos (chamada “hipótese”) e que dela deduz as consequências lógicas. Se as consequências dão conta dos fatos, a interpretação é tida provisoriamente como verdadeira.
16. O fideísmo é uma posição algo filosófica e algo teológica, segundo a qual a verdade só pode ser estabelecida por meio de um argumento de autoridade: a verdade é objeto de crença ou fé, não de ciência. O fideísmo reveste diferentes formas, tal como a que considera que deve ser objeto de crença toda verdade, ou somente algum tipo de verdade, como a verdade religiosa. O fideísmo que quer abandonar a demonstração da existência de Deus e as razões externas e objetivas de credibilidade racional (milagres e profecias) foi condenado pela Igreja.
17. Revue thomiste de 1906, p. 728
18. Revue thomiste de 1907, p. 226
19. Cf. Jean Honoré, “Newman”, em Catholicisme hier aujourd’hui et demain, t. IX, Letouzey et Ané, 1982, col. 1183-1188.
20. Honoré, ibidem, col. 1186
21. H. Tristram e F. Bacchus. “Newman”, no Dictionnaire de théologie catholique, t. IX, primeira parte. Letouzey ey Ané, 1931, col. 395.
22. Proposição condenada n° 25, DS 3425.
23. Cf. sobre esse assunto as reflexões de S. Harent no artigo “fé” do Dictionnaire de théologie catholique, t. VI, primera parte, Letouzey et Ané, 1947, col. 194-195
24. O fideísmo imanentista é uma concepção da apologética em que a verdade crua é verdadeira principalmente na medida em que ela é conforme às aspirações íntimas da consciência.
25. Revue thomiste de 1906, p. 723.