Por ocasião do Concílio Vaticano II, a definição do dogma da Mediação Universal de Maria havia sido expressamente solicitada por 300 bispos. Mas durante a preparação deste Concílio, esta [definição] teve como implacável adversário o futuro Paulo VI. Foi o ecumenismo conciliar, com os protestantes em particular, que barrou o caminho a uma definição dogmática.
Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est
Este ano de 2021 é o ano do centenário da concessão da Missa de Maria Medianeira por Roma (12 de janeiro de 1921). Concedida pela primeira vez, em 31 de maio, à Bélgica e a todas as dioceses que assim a solicitassem, esta Missa, em alguns lugares, faz parte do Proprio do missal de 1962, no dia 8 de maio. Lex orandi, lex credendi: sendo a lei da oração a lei da fé, esta Missa é a expressão da fé da Igreja a respeito do privilégio da Virgem Santíssima.
Uma doutrina tradicional
Toda a tradição católica ensina que Maria é medianeira de todas as graças. Os Padres Apostólicos – herdeiros diretos dos Apóstolos, os Padres da Igreja, os doutores medievais, os autores da era moderna, os papas, especialmente desde a Revolução até Pio XII – o último papa do pré-Concilio, todos ensinam esse privilégio de Maria Medianeira.
A mediação de Maria é uma doutrina antiga, como evidencia esta citação de São Gregório de Nazianzo (+389) que se dirige à Mãe de Deus: “Porque sabemos que a graça divina chega a nós por vossa intermediação”. Este ensinamento é anterior ao Concílio de Éfeso, que definiu a Maternidade Divina em 431. Isso mostra sua antiguidade.
É também, desde muito cedo, uma doutrina universal na Igreja: “É encontrada pregada nos quatro cantos do mundo mediterrâneo nos séculos III e IV: em Jerusalem por São Cirilo, em Roma por Tertuliano, na Síria por Santo Efrém, em Constantinopla por São João Crisóstomo, no Chipre por São Epifânio, na Capadócia por Santo Anfilóquio, em Verona por São Zeno, em Alexandria por Santo Atanásio, em Milão por Santo Ambrósio, em Cartago por Santo Agostinho.” Todas as grandes sedes episcopais do Cristianismo a pregaram.
É também uma doutrina católica, no sentido mais forte da palavra, na medida de que a Igreja sempre a possuiu, como prova a história das heresias e cismas: “Foi no século IX que começaram as dissensões entre Bizâncio e Roma, que acabariam por levar ao cisma definitivo do século XIV. Do século IX ao XIV, vemos nossa doutrina pregada cada vez menos no Oriente e cada vez mais no Ocidente. Enquanto os bizantinos se separavam da Igreja romana, sustentáculo da verdade, a Santíssima Virgem confiava a esta última a prerrogativa de seu privilégio” [1] .
Uma doutrina definível
Em sua conclusão no Colóquio Mariano de Lyon em 2006, cujo tema foi a Mediação universal de todas as graças pela Virgem Maria, D. Tissier de Mallerais não hesitou em afirmar que “esta verdade que é ensinada até mesmo por papas recentes, que é objeto de um desejo geral de definição dogmática por parte dos bispos e dos fiéis, pode obviamente ser definida como um dogma de fé católica revelada”[2].
O Pe. Le Rohellec, espiritano e professor de Mons. Lefebvre, em um relatório sobre este tema ao Congresso Mariano de Notre-Dame du Folgoat (na Bretanha) em 1913, apresenta algumas considerações que podem servir de comentário à declaração do Bispo: “Assim, por um contínuo progresso, a doutrina de Maria Medianeira e dispensadora das graças divinas se desenvolve e se torna mais precisa. Desde os primeiros séculos, aparece envolta de uma forma confusa e implícita nos textos da Tradição. Gradualmente as afirmações se tornam mais claras, mais explícitas, e antes do final do século VIII encontramos esta verdade formalmente expressa. Os testemunhos estão constantemente se multiplicando, e logo nenhuma voz discordante é ouvida. Ao mesmo tempo, a piedosa doutrina é consagrada nas orações e nos monumentos da liturgia. Desde meados do século XIX, especialmente, não são mais apenas teólogos particulares que pronunciam. Os soberanos pontífices, doutores da Igreja universal, fizeram ouvir suas vozes, e esta solene palavra não deixa espaço para a obscuridade. Podemos dizer que a partir de agora, a Maternidade da graça faz parte do ensinamento oficial da Igreja. Este progresso ininterrupto não parece indicar que estamos avançando em direção à plena luz de uma definição dogmática?”[3] .
O mais célebre desses soberanos pontífices é São Pio X, com sua encíclica Ad diem illum de 2 de fevereiro de 1904, que tratava da Mediação universal de Maria. Nesta encíclica ele consagra a já clássica tese teológica: “porque Maria excede a todos em santidade e em união com Cristo, e por ter sido associada por Ele à obra redentora, ela nos merece de congruo, segundo a expressão dos teólogos, o que Jesus Cristo nos mereceu de condigno, sendo ela ministra suprema da dispensação das graças.”
Alguns teólogos
O Pe. Le Rohellec faz alusão aos teólogos que falam sobre o assunto desde meados do século XIX. Eis as conclusões de alguns teólogos.
O Pe. de La Broise, professor do Instituto Católico de Paris, num artigo de 15 de maio de 1896 publicado na revista Jesuíta Etudes, escreveu que as razões tradicionais, tiradas do testemunho dos Padres e da prática da Igreja pareciam suficientemente sérias (isto é, de peso) a vários teólogos para sustentar que “a intervenção da Santíssima Virgem em cada uma das graças não é apenas uma verdade, mas também uma verdade relevante do domínio da fé propriamente dito” e que “segundo eles, esta tese estaria contida, ao menos implicitamente, no que Deus nos revelou sobre o papel de Maria, e um dia, quando tiver sido melhor estudada e trazida à luz, poderá ser objeto de uma definição dogmática.”[4].
Pe. Bainvel, em um trabalho apresentado ao Congresso Mariano de Friburgo em agosto de 1902, escreveu por sua vez: “Esta dupla cooperação de Maria, na terra (aquisição das graças através da co-redenção) e no céu (distribuição de cada uma das graças) é certamente parte do ensinamento católico: os dois são inseparáveis, e os cristãos dificilmente pensam em distingui-los; vêem que ambos têm seu centro na Maternidade divina, pois são de uma forma ou de outra o exercício normal da mediação e a maternidade espiritual. Tudo isso é inquestionável e indiscutível. Tudo isso pode ser definido (dogmaticamente)”[5]. Esses dois autores eram discípulos do grande teólogo jesuíta, o Cardeal Billot.
O Pe. Merkelbach, dominicano, em sua Mariologia, escreveu em 1939: “É preciso dizer que a Mediação universal da Bem-aventurada Virgem Maria pode ser definida pela Igreja não apenas como certa, mas devido ao legítimo e orgânico progresso da antiga tradição e devido à pregação universal da Igreja, também pode ser definida como verdade dogmática e como um dogma de fé”[6].
O Pe. Garrigou-Lagrange, também dominicano, em seu belo livro intitulado A Mãe do Salvador e nossa vida interior, escreveu justificadamente em 1948: “Essa doutrina parece não só certa, mas definível como um dogma de fé… É uma verdade explicitamente e formalmente afirmada com consentimento unânime dos Padres, dos Doutores, da pregação universal, a liturgia”[7].
O Padre carmelita João de Jesus-Hóstia, em seu livro Nossa Senhora do Monte Carmelo, afirmava em 1951: “É uma daquelas verdades implicitamente contidas no tesouro da fé … Seria fácil colher a partir dos escritos de os Padres, um abundante maço de textos que, em termos próprios ou de forma poética, expressariam a crença comum da Igreja primitiva. Hoje a definição dogmática da Mediação universal de Maria está muito próxima e aguarda apenas uma oportunidade favorável. Uma prova eloquente das intenções da Santa Sé sobre este assunto, em virtude do conhecido adágio “lex orandi lex credendi”, é a festa litúrgica de Maria Medianeira concedida a muitas dioceses e ordens religiosas”[8].
Podemos vislumbrar, a partir desses poucos depoimentos, que em meados do século XX, a mediação universal tornou-se o que se denomina em teologia uma “tese comum”.
Uma oportunidade favorável
Já em 1925, o Pe. Le Rohellec escreveu: “Está próximo o dia em que a doutrina de Maria, Mãe da graça e dispensadora de todos os favores divinos, será instituída como um dogma de fé? Nós não sabemos. No entanto, podemos esperar que esta definição, junto com a da Assunção, chegue na hora marcada pelo Espírito Santo, para acrescentar uma jóia preciosa à coroa de glória que a Igreja oferece a Maria” [9].
Esse dia esteve, de fato, próximo. Por ocasião do Concílio Vaticano II, a definição foi expressamente solicitada por 300 bispos. Roberto de Mattei, em sua obra Vaticano II, uma história nunca escrita, explica: “No espaço de um século, os papas Pio IX e Pio XII definiram dois grandes dogmas marianos, a Imaculada Conceição (1854) e a Assunção ( 1950)… Um terceiro dogma era aguardado ansiosamente pelo mundo católico, o de Maria Medianeira de todas as graças. O Concílio Vaticano II seria uma oportunidade extraordinária para o Papa, em união com todos os bispos do mundo, proclamá-la solenemente” [10].
Vaticano II
Mas o Vaticano II mudou o curso das coisas. Durante a preparação desse Concílio, a Mediação universal teve como adversário implacável o futuro Paulo VI. Em 20 de junho de 1962, o Cardeal Montini fez a seguinte declaração: “A proposta de um novo título, especialmente o de Medianeira, a ser concedido a Maria Santíssima, me pareceu inoportuna e até condenável.” O futuro Papa continuou: ” É melhor falar de maternidade espiritual universal de Maria Santíssima, sua realeza e sua maravilhosa, benigníssima intercessão, mas não de mediação “. Após tornar-se Papa, Paulo VI afirmou, em seu discurso de 29 de setembro de 1963: “Não queremos fazer de nossa fé motivo de polêmica com nossos irmãos separados.” Foi, portanto, o ecumenismo conciliar, com os protestantes em particular, que barrou o caminho a uma definição dogmática.
O Pe. Rahner, que foi um dos principais pensadores da ala progressista no Concílio, desempenhou um papel deplorável. Ralph Wiltgen, em seu livro intitulado O Reno se lança no Tibre [11], relata: “O ponto que eles atacaram, em particular, foi o ensino do esquema sobre a mediação da Santíssima Virgem Maria, e mais precisamente o título de Medianeira de todas as graças.“ O Padre Rahner alimentou toda a reflexão teológica da Aliança Européia que fez chover e fazer sol na aula conciliar. Segundo o Pe. Congar, que era astuto como uma serpente, o Vaticano II manteve o termo medianeira apenas por razões diplomáticas: “Não podíamos evitar o “medianeira”. A forma como falamos ainda foi a mais discreta. Eu realmente acredito que desaceleramos, se não interrompemos, o movimento frenético que Pio XII havia encorajado.” A palavra figura no capítulo 8 da Lumen Gentium se dirigindo à Santíssima Virgem, mas não foi ocasião para qualquer desenvolvimento.
Depois do Concílio
Após o Concílio, uma Nota da Pontifícia Academia Mariana, publicada em 1997, confirma que o Concílio continua sendo a norma: “Não convém abandonar o caminho traçado pelo Concílio Vaticano II e prosseguir com a definição de um novo dogma. O movimento, que postula uma definição dogmática relativa aos títulos marianos de Corredentora, Medianeira e Advogada, não está de acordo com as orientações do grande texto mariológico do Vaticano II”[12] Deve-se notar aqui que os Padres, que haviam preparado o Concílio, haviam planejado todo um esquema sobre a Santíssima Virgem e que os progressistas conseguiram reduzi-lo a um simples capítulo conclusivo do esquema sobre a Igreja. Falar sobre “Grande texto mariológico do Vaticano II” é uma fórmula retórica absolutamente contrária aos acontecimentos.
Conseqüência final
A linha traçada pelo Concílio Vaticano II atingiu os extremos. Eis aqui um exemplo. Durante a homilia da festa de Nossa Senhora de Guadalupe na Basílica de São Pedro em 12 de dezembro de 2019, o Papa Francisco rejeitou resolutamente o título de “Corredentora”: “Ela nunca se apresentou como Corredentora”. No final desta homilia, acrescentou: “Quando alguém chega com histórias que é preciso declará-la isto ou aquilo, é preciso dar-lhes novos dogmas – disse o Papa – não vamos perder tempo com essas bobagens”[13]. Outro site em inglês traduz: “Não vamos nos perder em tolices”. O original, em espanhol – “No nos perdamos en tonteras” – traduz-se exatamente: “Não nos percamos com bobagens, tolices“[14].
Essas poucas considerações não são irrelevantes. De fato, tradicionalmente, para expor a Mediação universal de Maria, costuma-se abordar dois temas: Maria na aquisição das graças e Maria na dispensação das graças. O primeiro ponto diz respeito precisamente à questão da corredenção, que é um dos fundamentos da mediação.
Fazer o que está em nosso alcance
Em 12 de janeiro de 1921, graças à ação perseverante do Cardeal Mercier, Roma concedeu a Missa de Maria Medianeira para a Bélgica (31 de maio, atualmente 8 de maio) e para qualquer diocese que a solicitasse. Ao mesmo tempo, o Pe. Bainvel escreveu: “Com isso temos o principal. Não é necessária uma definição formal: Lex orandi, lex credendi. Basta que a festa concedida à Bélgica se torne uma festa universal[15]. De fato, no missal de 1962, a Missa tem seu Proprio em alguns lugares, mas pode ser celebrada por todos. E ele especificou: “Com a festa, a devoção não pode deixar de se desenvolver. Por quais meios e em que formas, é o segredo de Deus. É provável que a consagração a Maria, entendida à maneira do Bem Aventurado Grignion de Montfort, tenha muito a ver com isso” [16].
Exortação
Em sua conclusão, do Colóquio Mariano de Lyon, D. Tissier de Mallerais fez esta exortação que reproduzimos aqui: “A história das recentes vicissitudes da Mediação Mariana mostra-nos como o demônio, que havia conseguido fazer desaparecer o Tratado da Verdadeira Devoção durante um século, se esforçou, antes do Concílio Vaticano II, para impedir (por um século?…) a definição do dogma mariano que, justamente, funda esta verdadeira devoção. A melhor forma de apressar a definição do dogma combatido por Satanás e seus asseclas será praticá-lo. Pois trata-se de um “dogma de ação”. Pratiquemo-lo recitando nosso rosário todos os dias e consagrando-nos à Santíssima Virgem, segundo a sagrada escravidão promovida por São Luís Maria Grignion de Montfort. Exercitemos assim a mediação de Maria. Este dogma reservado, ao que parece, para os últimos tempos, será o tão esperado triunfo da Imaculada, esmagando com o seu pé virginal a heresia modernista. Este dogma será a tábua de salvação depois do naufrágio e, além disso, trará o Reinado de Jesus pelo Reinado de Maria” [17] .
Pe. Guy Castelain, FSSPX
Notas:
- Marie Médiatrice, cap. II, Clovis, 2007
- op.cit., pág. 279
- Marie, Dispensatrice des grâces divines, Paris, 1925, pág. 79
- Marie, Mère de Grâce, Beauchesne, 1921, pág. 45
- Marie, Mère de Grâce, Beauchesne, 1921, pág. 45
- DDB, 1939, n ° 201, pág. 380
- Cerf, Paris, pág. 249
- Éditions du Carmel, Tarascon, págs. 19-20
- op. cit., pág. 87
- pág. 233
- Éditions du Cèdre, Paris, 1973
- Marie Médiatrice, Clovis, 2007, cap. IX
- Tradução da Zenit, agência de notícias próxima da Santa Sé
- Fontes: Royo Marin/Dubois/Vatican.va – FSSPX.News, 15 de dezembro de 2019
- op. cit., pág. 139
- op. cit. pág. 140
- op. cit. pág. 281. Errata: A conclusão é de fato de D. Tissier de Mallerais e não do Pe. Castelain