Prof. Paolo Pasqualucci (Courrier de Rome nº 387) – Tradução: Dominus Est
5. Justiça do juízo
Após ter explicado a origem de seu poder de julgar, Nosso Senhor esclarece seu vínculo com a justiça. Por que seu juízo é justo por definição; por que é, podemos dizer, a justiça em si mesma que se realiza? Ainda em seu primeiro ensinamento aos fariseus, Ele nos explica de maneira mais detalhada porquê o Pai Lhe dá o poder de julgar.
«Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora, e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem, viverão. Com efeito assim como o Pai tem a vida em si mesmo, assim deu ao Filho ter vida em si mesmo; e deu-lhe o poder de julgar, porque é Filho do homem. Não vos admireis disso, porque virá tempo em que todos os que se encontram nos sepulcros ouvirão a sua voz, e os que tiverem feito obras boas sairão para a ressurreição da vida, mas os que tiverem feito obras más, sairão ressuscitados para a condenação. Não posso de mim mesmo fazer coisa alguma. Julgo segundo o que ouço [akoúo, audio] (de meu Pai), e o meu juízo é justo, porque não busco a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou» (Jo. 5, 25-30).
O Senhor repete o conceito de renascimento espiritual concedido àqueles que escutam sua palavra e que se tornam seus discípulos, colocando-as em prática. Todos aqueles que estão espiritualmente «mortos» por causa de seus pecados «ouvirão» a partir de então («vem a hora, e já chegou») a Palavra de Cristo. E aqueles que a tiverem ouvido, no sentido de tê-la compreendido e seguido, terão a vida eterna. E eles a terão, porque o Pai concedeu ao Filho ter «em si mesmo» a vida (eterna) que Ele mesmo (o Pai) possui: e essa vida eterna é dada pelo Filho pelo exercício do poder de julgar. Com efeito, Ele «deu-lhe o poder de julgar, porque é Filho do homem», ou seja, o Messias esperado que se revelou no Verbo Encarnado (Dn. 7, 13; Ez. 2, 1). Um poder de julgar que, coincidindo perfeitamente com o do Pai, estende sua competência até o dia do Juízo. Nesse dia, todos aqueles que estão «nos sepulcros» ouvirão a voz do Senhor e ressuscitarão para ir ao Juízo: os justos para a «vida» eterna, os maus para o «juízo», ou seja, para a condenação. No segundo ensinamento dado aos fariseus, Jesus repete esses conceitos: «Ora a vontade daquele que me enviou, é que eu não perca nada do que me deu, mas que o ressuscite no último dia. A vontade de meu Pai, que me enviou, é que todo o que vê o Filho e crê nele tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia» (Jo. 6, 39-40).
E o fato de que o juízo do Filho não seja de maneira alguma fruto de qualquer autonomia do Filho em relação ao Pai é reafirmado pelo próprio Senhor posteriormente. Ele repete: «Não posso de mim mesmo fazer coisa alguma». Por conseguinte, Ele julga o que «ouve». O que «ouve» de quem? Do Pai. Ele julga segundo a intenção do Pai. Isso significa que seu juízo é em seu conteúdo o mesmo julgamento que aquele do Pai. E por isso ele é justo. Não é um julgamento de um juiz que busca fazer sua vontade pessoal, a se tornar testemunha de si mesmo. É o julgamento de um juiz que aplica constantemente como norma a vontade do Pai. A vontade do Pai é a norma.
Isso porque, conforme se recordou, o Filho e o Pai são um (Jo. 10, 30). O Senhor não pode de si mesmo fazer coisa alguma; Ele pode fazer somente o que faz o Pai, o que vê o Pai fazer, por “visão” sobrenatural. O juízo, a mens do Pai, é a mesmo que o do Filho. Há sempre a distinção de pessoas (o julgamento é o da pessoa do Filho e não do Pai), mas há ao mesmo tempo a unidade da substância divina, que se manifesta em um amor, uma vontade, um juízo. É o mistério da unidade-distinção sobrenatural da Monotríade divina, cuja ilustração estende-se ao longo de todo o Evangelho de São João.
5.1. O Sagrado Coração de Jesus não julga segundo a carne
Mas por que, após ter perdoado a mulher adúltera (exortando-a porém a se arrepender e mudar de vida), e replicando aos fariseus que O acusavam de dar testemunho de si mesmo, ou seja, de não ser o Filho de Deus apesar das obras que havia feito para demonstrar-lhes, Nosso Senhor diz-lhes: «Vós julgais segundo a carne, eu a ninguém julgo; e, se julgo alguém, o meu juízo é verdadeiro, porque eu não sou só, mas eu e o Pai, que me enviou. Na vossa lei está escrito que o testemunho de duas pessoas é digno de fé» (Jo. 8, 15-17)?
Aqui Nosso Senhor opõe o «verdadeiro» juízo ao juízo «segundo a carne». Este último é o juízo viciado pelas paixões da carne e portanto jamais pode ser «verdadeiro»: juízo de condenação a respeito do próximo, desprovido de misericórdia e cheio de malignidade e de crueldade. É o juízo do mundo, reino do Príncipe deste mundo. Juízo hipócrita, portanto, porque ele não leva em conta o fato de que aquele que julga é tão pecador como o próximo que ele condena. «Por isso, quem quer que sejas, ó homem que julgas, és inexcusável, porque, naquilo mesmo em que julgas a outro, a ti mesmo te condenas, visto que fazes as mesmas coisas que julgas» (Rom. 2, 1). É o juízo «segundo a carne». É o tipo de juízo que Nosso Senhor condena ao censurar severamente Tiago e João por terem perguntado se não era preciso destruir com fogo do céu uma vila de samaritanos que não haviam querido recebê-los (porque, Ele diz, «O Filho do homem não veio para perder as vidas dos homens, mas para as salvar», Lc. 9, 51-55); ou quando ele nos exorta a não julgar o próximo. «Não julgueis, para que não sejais julgados. Pois, segundo o juízo com que julgardes, sereis julgados; e com a medida com que medirdes vos medirão também a vós. Porque olhas tu para a aresta que está do olho de teu irmão, e não notas a trave no teu olho?» (Mt. 7, 1-4). Esta famosa admoestação não significa um convite ao laxismo moral. É um convite à misericórdia, não quanto ao pecado (sempre e implacavelmente condenado pelo Senhor) mas quanto ao pecador, que devemos ajudá-lo a se converter. Especialmente porque cada um de nós, sendo sempre pecadores de uma maneira ou de outra, precisamos também de misericórdia.
Ora, o juízo dos fariseus, que era «segunda a carne», não vinha de Deus; ele não era segundo a vontade de Deus, como era, por outro lado, o juízo de Nosso Senhor. Com efeito, aquele que julga segundo a vontade de Deus não julga segundo a carne. E de fato Nosso Senhor «não julgava ninguém». Esta afirmação pode surpreender à primeira vista. Mas ela se torna clara se a entendermos no sentido em que Ele não julga ninguém segundo a carne, à maneira dos fariseus, ou seja, segundo os critérios de juízo do mundo. Portanto, Ele não condena ninguém; Ele não submetia ninguém, neste mundo, a um juízo de condenação. Ele condenava o pecado, não o pecador, que a misericórdia de seu Sagrado Coração queria, ao contrário, converter e salvar: «Mc. 2, 17 «eu não vim chamar os justos mas os pecadores»; parábola do filho pródigo [Lc. 15, 11-32]; e o episódio já lembrado do perdão à adúltera arrependida [Jo. 8, 1-11], que não significa de maneira alguma a tolerância ao pecado do adultério, condenado no Sermão da Montanha de maneira ainda mais ampla que na antiga Lei [Mt. 5, 27-30]).
Isso não se opõe à exortação a repreender os pecadores: «Se teu irmão pecar, repreende-o [increpa illum]; e, se ele se arrepender, perdoa-lhe» (Lc. 17, 3; amplius: Mt. 18, 15-22). «Repreender» não é condenar. Dirige-se à própria pessoa, mas no que diz respeito ao seu erro, na esperança de que ela mude de opinião e se arrependa. O fundamento da «correção» reside no fato de que é sempre necessário condenar o pecado, quem quer que seja que o tenha cometido. Essa «correção» é inclusive um dever moral para o cristão, e ela se manifesta sob sua forma mais elevada na necessária condenação pelo Pontífice romano dessa forma grave de pecado contra a fé que constituem os «erros» corruptores das almas, munus fundamental de seu altíssimo cargo.
5.2. Verdade e presciência do juízo
Mas por que, imediatamente após, Nosso senhor acrescentou, sempre segundo o texto joanino: «e, se julgo alguém, o meu juízo é verdadeiro, porque eu não sou só, mas eu e o Pai, que me enviou»? A frase pode parecer obscura e contraditória, mas, ao contrário, ela é claríssima. Se eu também julgo, ou seja, condeno explicitamente as más obras de alguém, meu juízo não é segundo a carne, ou seja, falso e hipócrita. Ao contrário, ele é «verdadeiro» porque não é somente o meu juízo pessoal, mas é sempre o juízo do Pai. Ele é verdadeiro e portanto justo, pois o juízo de condenação é segundo a vontade do Pai com o qual em sou sempre um.
Aqui está também enunciado o critério da verdade do juízo. Fundamentalmente, ele não difere do critério que mostra sua justiça. O juízo é verdadeiro, ou seja, capta de modo exemplar a natureza da coisa, quando ele exprime a vontade do Pai, e portanto ele vem sempre do Pai, daquilo que o Senhor viu e ouviu junto ao Pai (e continuamente vê e escuta junto ao Pai, ab aeterno, na espiração do Espírito Santo, Trinitatis nexus).
Guardando sempre esses conceitos, compreende-se o exato significado de uma outra declaração posterior do Senhor. Depois de ter retornado a visão ao cego de nascença e de ter sido, como de costume, contestado pelos fariseus (que também atacaram o cego curado) porque o milagre havia sido feito no Sábado, Ele lhes disse: «Eu vim a este mundo para exercer um justo juízo, a fim de que os que não veem vejam, e que veem se tornem cegos». Ouviram isto alguns dos fariseus, que estavam com ele, e disseram-lhe: «Porventura também nós somos cegos?» Jesus disse-lhes: «Se vós fosseis cegos, não teríeis culpa; mas, pelo contrário, vós dizeis: Nós vemos. Fica, pois subsistindo o vosso pecado» (Jo. 9, 39-41).
Depois de ter dito que “não julgava ninguém”, Nosso Senhor afirma agora que havia vindo ao mundo “para exercer um justo juízo”? De qual “juízo” se tratava? O latim traduz sempre com iudicium, mas o texto grego emprega aqui um termo diferente de krísis, embora extraído da mesma raiz: o verbo kríno, julgo. E a palavra kríma, que traz sempre a ideia de juízo, mas no sentido de dispositio (divina) exequenda (M. Zerwick S.I., Analysis philologica Novi Testamenti Graeci). O termo é posterior e aparece pela primeira vez na Septuaginta para indicar a palavra hebraica correspondente a consilium, decretum (Zorell). Nosso Senhor, diante do cego que curou, que O adora como Filho de Deus, afirma então ter vindo para executar um decreto «a fim de que os que não veem vejam, e que veem se tornem cegos».
A frase, voluntariamente enigmática na forma, sempre foi claramente compreendida pelos Padres (Santo Agostinho principalmente) e pela tradição da Igreja. Aqueles que «não veem» a luz da verdade são os pagãos, aos quais a Palavra de Cristo traz a luz da Revelação; aqueles que «veem» são, por outro lado, os judeus, pois receberam a luz da Revelação com o Antigo Testamento, e todavia fecharam os olhos para ela ao terem recusado Cristo, que se revelou como «pedra de tropeço» (Is. 8, 14; Lc. 2, 35). E o fato de que «aquele homem, que se chama Jesus» dirige-se precisamente a eles, alguns fariseus presentes haviam compreendido imediatamente, visto que disseram com indignação: «Porventura também nós somos cegos?». Recebendo a resposta em seguida: se vós fosseis cegos, como os pagãos, «não teríeis culpa», ou seja, não teriam pecado contra a vontade de Deus ao se recusar a crer em mim. Mas como vós afirmais «nós vemos», estais convencidos de estar na verdade ao me recusar, portanto continua «subsistindo vosso pecado».
O fato de que Nosso Senhor declara que a obra da salvação corresponde à realização de um decreto divino (a eleição dos gentios diante da reprovação da Israel incrédula) torna-nos conscientes da presciência inerente ao juízo do Pai, o qual havia predestinado as nações à Glória, conhecendo já a tendência ao endurecimento de Israel, no qual Ele a deixou, ainda que não em definitivo (Lc. 21, 24; Rom. 9, 18; 11, 25 ss). Este “decreto” ou “juízo” não contradiz, portanto, o critério de verdade que se manifesta em Cristo juiz, visto que tal decreto vem confirmar que Ele sempre julga segundo a vontade e a ciência do Pai.