CRISTO JUIZ (PARTE 6/FINAL): NÃO HÁ NENHUMA CONTRADIÇÃO ENTRE CRISTO JUIZ E CRISTO MISERICORDIOSO

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Prof. Paolo Pasqualucci (Courrier de Rome nº 387) – Tradução: Dominus Est

6. Não há nenhuma contradição entre Cristo juiz e Cristo misericordioso

Mas pode o Cristo juiz ser o mesmo que nos atrai com sua bondade e doçura, que não replica às ofensas, que está pronto para perdoar, que nos incita a também amar a nossos inimigos e a rezar pelos nossos perseguidores, que nos conta a parábola do filho pródigo, que derrama um bálsamo sobrenatural sobre as feridas do nosso coração ao nos chamar para Ele dizendo: «Vinde a mim todos os que estais fatigados e carregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave, e o meu peso leve» (Mt. 11, 28-30)?

Os filhos do século amam contrapor um Cristo ao outro, querendo assim apontar de modo completamente arbitrário uma contradição insanável. Os semeadores da discórdia presentes entre nós, conforme se disse, esqueceram e colocaram de lado o Cristo juiz para fabricar um que seja agradável ao paladar dos mundanos: bom e misericordioso porque Ele participaria dos assuntos humanos com um ânimo comovido e solidário, tolerando e perdoando tudo, inclusive o pecado; um Cristo postiço, de tal modo «bom» e «misericordioso» que Ele já teria salvo todos os homens por sua Encarnação, segundo o ensinamento perverso da heresia difundida entre cristãos inconscientes e anônimos! Um Cristo, portanto, que não julga ninguém, mas num sentido bem diferente daquele explicado por Nosso Senhor em pessoa e que acabamos de lembrar.

Dado que o Cristo juiz e o Cristo misericordioso são o mesmo indivíduo humano-divino, que historicamente existiu neste mundo no israelita Jesus de Nazaré, a justiça e a bondade misericordiosas que Ele prega e mostra em seus atos não se contradizem de maneira alguma. Elas são pregadas por Ele e realizadas por Ele tal como se encontram no Pai, do qual constituem seus atributos. A vontade de Deus, além de ser santa, é intrinsecamente justa, e ela é boa e misericordiosa. Tudo o que Nosso Senhor disse e fez, Ele ouviu e viu no Pai. Ele faz as obras do Pai, que não cessa jamais de agir, ab aeterno (Jo. 5, 17).

A reta teologia católica sempre enfatizou que Jesus Cristo, «manso e humilde de coração», sempre deu forte destaque à justiça que vem do Pai, definido por Ele como Pai justo. «Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu conheci-te, e estes [os apóstolos] conheceram que me enviaste» (Jo. 17, 25). Está claro que Nosso Senhor não se via de maneira alguma em contradição consigo mesmo ao chamar de «justo» seu Pai, que tinha o poder de enviar as almas dos pecadores impenitentes ao fogo eterno, e as enviava. Dito de outra maneira: o exercício da justiça e a prática da caridade misericordiosa não são de maneira alguma sentidas por Nosso Senhor como se elas estivessem em contradição entre si. Por que então elas deveriam ser para nós fiéis? Em vez de separar falsamente um Cristo do outro, é preciso compreender de que maneira justiça e caridade se colocam num ponto de visto superior, do ponto de vista de Deus, que nós reconstruímos (na medida do possível) sobre a base da Verdade revelada, tal como ensinada pela Tradição e pela Doutrina da Santa Igreja.

E não se deve esquecer que o Verbo encarnado no homem Jesus de Nazaré jamais cessou por um só momento de ser o Verbo que habita com o Pai, e é por isso que não pôde jamais deixar de exercer a justiça segundo a vontade do Pai a respeito das almas de todos aqueles que morreram durante o tempo da sua Encarnação. Ascendido ao Pai, Ele continuou a cumprir sua obra de «mediador» e «advogado» em nosso favor junto ao Pai (Heb. 8-9; 1Jo 2, 1, obra na qual Ele usa da ajuda de Maria Mediadora de todas as Graças e de todos os santos (de toda a Igreja invisível no céu). Mas, evidentemente, Ele também continuou a exercer sem interrupção suas prerrogativas sacerdotais e reais de justo Juiz, nos juízos particulares das almas de todos aqueles que morreram, desde o dia da Ascensão até hoje.

6.1. A misericórdia não contradiz a justiça

Segundo sua noção, a misericórdia não exclui de maneira alguma a justiça. De um pai de família atencioso e afetuoso, que às vezes castiga seus filhos por causa de algo que fizeram errado, diríamos que ele está em contradição consigo mesmo quando ele os pune? Não. Diríamos que ele estaria se não os punisse, porque nesse caso ele faltaria aos seus deveres de educador e príncipe da justiça, que impõe punição ao que cometeu uma falta, em proporção com a gravidade da falta. Diríamos as mesmas coisas de um bom governante, se ele evitasse aplicar a lei ou punir os criminosos conforme eles merecessem.

A misericórdia pressupõe a justiça porque só o justo pode ser misericordioso. A misericórdia de um juiz desonesto ou fraco deve ser chamada de cumplicidade moral com o mal ou fraqueza de caráter. A misericórdia é exercida por Nosso Senhor quanto ao pecador arrependido, e não quanto ao pecado; portanto, ela não é exercida em relação ao pecador impenitente, que, ao contrário, é abandonado aos rigores da justiça divina, dado que ele quer se manter no pecado até o fim. «Considerai como, se é infinita a justiça de Deus contra os pecadores obstinados, infinita também é sua misericórdia para com os pecadores arrependidos […] Se todos os pecadores recorressem a Deus com um coração humilde e contrito, todos se salvariam» (Santo Afonso Maria de Ligório, Preparação para a morte). E a bondade divina sempre age, antes mesmo do nosso arrependimento, porque é por misericórdia divina que nos são oferecidas ocasiões propícias para sairmos dos nossos pecados, se soubermos compreendê-las.

Mas, dando uma resposta aos filhos do século, o Cristo que nos diz «Vinde a mim todos os que estais fatigados e carregados» é Aquele mesmo que diz «Não julgueis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada. Porque vim separar o filho de seu pai, e a filha de sua mãe, e a nora da sua sogra. E os inimigos do homem serão os seus próprios domésticos» (Mt. 10, 34-36)? Ele, que é o Cordeiro imaculado, manso e doce, que não julga ninguém neste mundo, veio nos trazer a «espada» da «discórdia»? Não há aqui, porém, nenhuma contradição. A «espada» é uma espada espiritual, e é aquela da «discórdia» (oichásein, separar), ou seja, da perseguição que sempre atacará aquele que quiser seguir os ensinamentos do Senhor até o fim. O mundo, que está sob o reino de Satanás, sempre quererá lhes rejeitar e as sociedades se dividirão, começando pelas famílias. O mundo rejeitará a moral pregada por Jesus: linear, austera, viril e ao mesmo tempo plena de um espírito sobrenatural de caridade. E o mundo rejeitará particularmente o sopro misericordioso da pregação: amar ao seu próximo como a si mesmo por amor de Deus; perdoar as ofensas; não julgar os outros; amar seus inimigos; rezar por seus perseguidores; pedir a ajuda da Graça para tornar-se bom, simples e humilde de coração. Os convites a se abandonar totalmente a Ele e a uma caridade sobrenatural para com o próximo incitam o ódio e o escárnio do mundo ainda mais que as enunciações da justiça divina, que, no entanto, sempre suscitam uma furiosa cólera entre os filhos do século. Esses convites e essas exortações da divina misericórdia constituem já a espada que provocará a discórdia no mundo e sua divisão entre eleitos e reprovados.

O juízo do mundo é um juízo sem misericórdia. Por que então o mundo não deveria ser julgado da mesma maneira e tratado de acordo? A justiça exige que seja assim. Não há, portanto, nenhuma contradição entre o Coração misericordioso de Jesus e o Cristo juiz infalível das nossas almas. Ao contrário, a misericórdia divina excede de maneira superabundante a proporção formal (fundado sobre o princípio da retaliação) entre falta e pena, quando consente com o arrependimento, mesmo que somente final, de muitos corações que pareciam endurecidos no pecado. «Tremendo mistério, e nunca assaz meditado: Que a salvação de muitos depende das orações e dos sacrifícios voluntários, feitos com esta intenção, pelos membros do corpo místico de Jesus Cristo, e da colaboração que pastores e féis, sobretudo os pais e mães de família, devem prestar ao divino Salvador» (Pio XII, Mystici Corporis, AAS 35(1943) p. 200ss).

Excede-a, porém, sem contradizê-la. A misericórdia divina não pode contradizer a justiça divina, senão Deus estaria em contradição consigo mesmo. É por isso que São Paulo nos lembra que Deus «tem misericórdia de quem quer e endurece a quem quer». Deus só conhece verdadeiramente o que está no coração do homem, e portanto Ele «tem misericórdia» e Ele «endurece», ou seja, deixa na situação pecaminosa, «quem Ele quer»: aquele que, segundo seu juízo inapelável, merece ser deixado, unicamente sobre a base desse conhecimento que é o seu, mais profundo que os abismos da nossa alma; conhecimento que, para nós, é evidentemente impenetrável. Assim, vários juízos seus nos parecem incompreensíveis e, às vezes, injustos. Mas não cabe a nós penetrar os juízos divinos (Rom. 9, 20). Como o poderíamos, com nossas forças intelectuais limitadas? Nós, enquanto simples criaturas, não dispomos dos elementos de juízo que possui a Divindade, nem sua capacidade de compreensão e juízo, que superam incomparavelmente a nossa. Por que tal criança morreu, batizada há pouco, enquanto outra pessoa morreu velha e talvez cheia de pecados? Por que o homem bom sofre (quando ele sofre) enquanto o mau prospera (quando ele prospera)? E assim por diante, com considerações parecidas por numerosas injustiças e males que afligem quotidianamente a humanidade. Em uma célebre passagem da Cidade de Deus, Santo Agostinho nos diz que no Dia do Juízo «nós veremos claramente a justiça de Deus, visto que a fraqueza da nossa razão nos impede de ver um grande número e a quase totalidade de seus juízo, embora as almas piedosas tenham plena confiança em sua justiça divina» (XX, II).

6.2. Significado consolador e salutar do juízo divino

Nosso Senhor nos diz que devemos antes de tudo temer o juízo Daquele que tem o poder de nos enviar para sempre para a Geena, e nós atribuímos a esse julgamento um significado consolador? Compreendemos que esse significado seja salutar, visto que ele nos inspira um temor saudável, mas não da morte, e sim do Juízo de Deus. Salutar é esse temor, porque ele contribui poderosamente para a nossa santificação quotidiana. Sabendo o que nos espera, deveríamos estar propensos a observar os mandamentos com maior diligência. O temor do Juízo está incluso no temor de Deus, um dos sete Dons do Espírito Santo.

Mas um significado consolador?

Reflitamos atentamente. Em um Estado bem governado, os cidadãos estão contentes por saber que existem juízes que aplicam conscienciosamente a lei punindo os maus como convém, respeitando os procedimentos estabelecidos por lei, e dando satisfação às legítimas pretensões dos bons. Os bons podem sentir um certo temor desses juízes, pois é justo temer o juízo enquanto tal, e um desses motivos é porque cada um de nós pode cair nas mãos da justiça e ser obrigado a passar por um julgamento. Todavia, esses cidadãos se sentirão tranquilizados pela existência desses juízes e pela eficácia de seus juízos, pois sem eles, cada um de nós faria justiça por si mesmos tanto quanto fosse possível, e a sociedade inteira cairia na pior das anarquias, com o resultado de que a justiça não seria mais aplicada e que a vida de todos seria triste sem o juízo de um juiz que fosse super partes, que fosse um justo juiz. Com efeito, ninguém pode atribuir a si mesmo seu próprio juízo sem violar o princípio de imparcialidade da justiça. Ninguém pode ser seu próprio juiz. Portanto, na vida civil a lembrança do tribunal e do juízo nos causa temor de um lado e nos consola do outro, sem que esses sentimentos opostos venham constituir a menor contradição do ponto de vista da recta ratio.

A similaridade com a nossa maneira de sentir o Juízo final deveria estar clara.

A ideia de que nossa vida acabará com o juízo de Deus nos aterroriza justamente, e de uma maneira que não se pode descrever; ela nos aterroriza em si por causa das sanções eternas que esse juízo tem o poder de infligir. Mais ainda que a atrocidade das penas, é a sua eternidade que nos causa terror.

«Considera que o inferno não tem fim; sofre-se todas as penas, e todas são eternas. Cem anos dessas penas se passarão, mil anos passarão e o inferno só está começando. Cem mil, um milhão de anos e de séculos passarão e vosso inferno sempre estará começando. Se um anjo dissesse a um condenado: Saireis do inferno, mas somente quando se esgotarem o tanto de séculos que existem em gotas de água no oceano, de folhas nas árvores e de grãos de areia na praia; o condenado teria mais alegria que um mendigo diante da notícia de que seria coroado rei. Sim, porque todos os séculos se passarão e se multiplicarão uma infinidade de vezes e o inferno estará sempre no começo. O condenado terá sempre diante de si escrita a sentença da sua condenação eterna e ele dirá: então todas essas penas que eu sofro, esse fogo, essa tristeza, esse grito, não acabarão nunca mais para mim? Não, ele lhe responderá: jamais, jamais, jamais. E quanto tempo durará? Sempre, sempre» (Santo Afonso Maria de Ligório, Preparação para a morte).

O condenado não sofre a destruição de seu ser, a anulação de sua alma, como se ele pudesse acabar com o problema desaparecendo no nada: ao contrário, ele está condenado a viver in aeterno nas terríveis penas espirituais e materiais do inferno. Tal é a verdade que nos foi revelada, e ninguém pude mudá-la. As penas espirituais são constituídas, além da mistura do sentimento de impotência, de vãos remorsos, de ódio e desespero que destroçam a alma dos reprovados, também pelo atroz sofrimento que causa a privação da visão beatífica da qual, ao contrário, gozam os eleitos. A falsa ideia (e de novo em circulação) da destruição do condenado vem de um equívoco sobre o significado do termo segunda morte, pelo qual designa justamente de maneira simbólica (morte definitiva para Deus, segunda, após a morte terrestre) a condenação eterna que segue-se ao Juízo. Seu significado é claramente explicado no Apocalipse: «[…] Mas desceu do céu um fogo que os devorou [Gog e Magog e os exércitos do Mal]. E o demônio, que os seduzia, foi metido no tanque de fogo e de enxofre, onde também a Besta e o falso profeta serão atormentados de dia e de noite pelos séculos dos séculos. […] O mar deu os mortos que estavam nele, a morte e o Hades deram (também) os mortos que estavam neles, e fez-se juízo de cada um segundo as suas obras. Depois, a morte e o Hades foram lançados no tanque de fogo (o tanque de fogo é a segunda morte [Haec est mors secunda]). E aquele que se não achou inscrito no livro da vida, foi lançado no tanque de fogo» (Ap. 20, 9-15).

Os filhos do século, e seus amigos os clérigos infiéis, recusam com horror a ideia de uma condenação a penas que duram por toda a eternidade, e eles blasfemam dizendo que só uma Divindade cruel poderia criar o inferno. Eles admitiriam no máximo um inferno provisório, esquecendo-se que tal tipo de inferno provisório já existe, é o Purgatório. Mas este está previsto somente para as almas santas, para aqueles que se salvaram, que devem ainda se purificar dos pecados veniais não ainda remidos, dos maus hábitos, da pena temporal pelos pecados mortais remidos quanto à falta (G. Casali, Somma di teologia dommatica, Lucca, 1964, p. 660).

Com efeito, podemos nos perguntar: o pecador impenitente, se pudesse, deixaria de pecar? Certamente não. Se ele pudesse, manter-se-ia pecador por toda a eternidade (São Gregório Magno). O fornicador, o verdadeiro libertino, não pararia jamais de seduzir e de enganar mulheres de todos os tipos e de todas as condições. E o ladrão e o assassino, não gostariam de roubar e matar pelos séculos dos séculos, se eles assim pudessem? Só a morte os detém. E a morte os detém na disposição de alma que lhes é habitual, que é aquela dos homens constantemente inclinados ao mal. Então por que a pena não deveria ser eterna para eles? E por que ela não deveria atormentar eternamente seus sentidos, dado que as «breves alegrias» desse pecado no qual eles gostariam de viver eternamente tocam sempre o sentido de uma maneira ou de outra? E não é também com seus sentidos, além da vontade e da inteligência, que os pecadores ofenderam a Deus ao violar sistematicamente seus mandamentos?

Ademais, se a pena não fosse eterna, toda diferença seria suprimida entre o quarto nupcial e o prostíbulo, porque no fim, entre a mulher que viveu, frequentemente numa luta heroica contra si mesma, como esposa fiel e virtuosa, e aquela que quis viver até o fim como uma prostituta, ou senão como lasciva e infiel, não haveria mais nenhuma diferença: a pecadora impenitente se salvaria no fim tanto quanto a corajosa mãe de família, e gozaria também da visão beatífica sem jamais ter se arrependido, se a pena não fosse eterna. Mas isso seria profundamente injusto e Deus não pode ser injusto. A própria santidade de sua natureza O impede. A justiça exige, portanto, que a pena seja eterna para o impenitente.

Mas é igualmente verdadeiro que, ao lado de um grande e legítimo termo, a existência do Juízo nos proporciona também uma consolação interior, pois sabemos que, graças ao Juízo, aqueles dentre nós que são dignos obterão a recompensa eterna, a visão do Deus Uno e Trino, face a face, uma beatitude que o homem não pode sequer imaginar (2Cor 12, 4). O justo Juiz nos recompensará segundo nossos méritos e inclusive, podemos dizer, de maneira superabundante e excessiva, se pensarmos na natureza incomensurável da recompensa: a contemplação eterna da Santíssima Trindade! Qual mérito humano, por grande que seja, seria digno de merecê-la? Mas é essa recompensa que estabeleceu gratuitamente a Divina Bondade, que ama se contemplar na perfeição de sua Glória, a qual quis que participassem os eleitos.

A existência do Juízo também nos consola de um outro ponto de vista, que é o da justiça que é finalmente realizada para todos. O Senhor colocará todas as coisas em seu lugar (Ap. 21, 4). Quem escapou, pagará. O nosso senso de justiça será assim satisfeito. Com efeito, o senso de justiça exige que todo culpado seja punido: unicuique suum.

Mas o senso de justiça, como insinuam os filhos do século e seus amigos na parte desviada do clero, contradiz a caridade cristã? Se nós devemos amar nossos inimigos pessoais por amor de Deus e rezar pela salvação dos pecadores, então como o pensamento de que a justiça divina envia esses mesmos pecadores para a condenação eterna pode nos consolar? Mas o que nos diz São Paulo quando ele nos exorta a jamais nos vingar de nossos inimigos pessoais? «[…] tende paz com todos os homens; não vos vingueis a vós mesmos, ó caríssimos, mas dai lugar à ira divina, porque está escrito: A mim pertence a vingança, eu, retribuirei, diz o Senhor (Dt. 32, 35). Antes, se o teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer, se tem sede, dá-lhe de beber; fazendo isto, amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça (Prov. 25, 21-22). 21 Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem» (Rom. 12, 19-21).

A exigência de justiça que constitui a reparação do mal sofrido por um mal dado em retorno (olho por olho) deve ser superada pela exigência mais elevada da misericórdia divina, que nos impõe a responder o mal com o bem em relação àquele que nos ofendeu. Rezar por sua alma faz parte dessa disposição espiritual, que é aquela da verdadeira caridade cristã, que se manifesta também no ato de «repreender» o pecador, mostrando-lhe a gravidade da ofensa feita a Deus, mais do que aos homens, por seu pecado. Mas a exigência da justiça não se manterá porém insatisfeita: a justa retribuição será dada por Deus no dia do Juízo. Assim, nosso senso de justiça não é ofendido, visto que nós sabemos que ninguém pode escapar do Juízo de Deus (Ap. 20, 13). Mas se aquele mesmo que nos ofendeu, graças, entre outras coisas, ao nosso exercício da misericórdia, inclusive as orações, se arrepende e enfim se salva, deveríamos nos entristecer do fato de que ele tenha conseguido escapar da nossa justiça e da justiça de Deus? Não, porque a instância da misericórdia prevalece sobre a da justiça em sentido estrito e salva o pecador arrependido, algo que todo coração cristão não pode senão alegrar-se sinceramente. O pensamento de que os pecadores possam se salvar graças às nossas orações e mortificações nos dá uma consolação bem mais elevada que a da realização da justiça. Mas tampouco neste caso a justiça seria ofendida: seria efetivamente injusto que o pecador que se arrependeu, mesmo que somente no fim da vida, seja condenado (Mt. 20, 1-16, parábola dos trabalhadores da videira).

A instância da justiça prevalece sobre a da misericórdia quando o pecador é endurecido, impenitente. Aquele que é condenado para sempre é o impenitente, o arrogante e o endurecido, graças ao juízo de Deus. A compaixão humana a qual temos com o destino do impenitente no além (apoiada pelo angustiante pensamento que poderíamos nós também, se não perseverássemos em Cristo, encontrar no número dos condenados) não impede que nosso senso de justiça seja consolado pelo Juízo divino que condenou o impenitente. Graças a ele nós nos sentimos garantidos por um juiz infalivelmente justo, que é Juiz na eternidade, porque o que Ele decidiu dura por toda a eternidade: Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, consubstancial ao Pai, segunda Pessoa da Santíssima Trindade. A Ele seja dada a glória pelos séculos dos séculos.

Fim.