EIS QUE VOS DEIXO

Deus, ao fazer-se homem, veio para nos fornecer uma admirável soma de benefícios e tesouros. Os homens estão muito mais ricos desde que Cristo ressuscitou e ascendeu ao céu.

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

A Encarnação do Filho de Deus consistiu em um depósito sagrado de formas variadas. Deus, ao tornar-se homem, veio nos dar uma soma admirável de benefícios e tesouros, de modo que os homens estão muito mais ricos desde que sua presença aqui na Terra findou com a Ascensão. Além disso, não será possível elencar perfeitamente nestas linhas todos os benefícios com os quais o Senhor Jesus nos agraciou antes de ascender ao Pai. Antes de entrar em alguns detalhes de sua vida em si, que nos é conhecida por meio da pregação dos apóstolos, e do que relataram os evangelistas, traz-nos um conhecimento maior de Deus que, nas palavras de São João “revelou-se por meio do Filho.”

Um legado vivo

“Deixo-vos a minha paz”

“Deixo-vos a minha paz”, disse Nosso Senhor aos Seus discípulos na Última Ceia. A humanidade havia perdido este tesouro de paz interior quando o pecado entrou no mundo. O Salvador veio para restaurar essa verdadeira paz, a paz do coração, a paz do homem com Deus. Consciente de nossa fragilidade, Jesus também deixa claro que não nos dá a paz “como o mundo a dá.” Ele não quer que as nossas almas se iludam e esqueçam o antagonismo que permanece, apesar da Redenção, apesar da sua morte pelos pecadores: por meio da sua morte Ele veio para mudar os corações, e o mundo (incluindo a sociedade) só mudará se as almas se beneficiarem dos frutos de sua morte. Jesus veio a este mundo “para resgatar o que estava perdido” e, como diz em Zaqueu, “a salvação entrou nesta casa” porque Ele levou a uma conversão do coração: o Salvador disse essas palavras somente depois que Zaqueu anunciou sua resolução de pagar suas dívidas e dar grandes somas de esmolas. Nosso Senhor, confrontado com contradições antes da sua Paixão, recorda as suas obras e exorta seus interlocutores a reconhecerem que “o Reino de Deus chegou” entre eles.

“Deixo-vos um exemplo”

Deixei-vos um exemplo, para que, assim como eu fiz, vós também possais fazer.” Depois de lavar os pés dos seus apóstolos, Nosso Senhor encoraja-os a imitá-lo. Teve também o cuidado de os recordar que, como “o servo não é maior que o Mestre”, os apóstolos e todos os que o seguirem serão tratados como Ele.  Qualquer pessoa que pregue Jesus deve se assemelhar a Ele! Não se trata simplesmente de um apego admirador que se contenta em colecionar imagens ou máximas do divino crucificado para contemplação ociosa. O nosso apego à sua Pessoa deve produzir uma genuína renovação interior e moldar-nos segundo o seu exemplo. Quando Jesus comeu com Simão, o fariseu, este contentou-se em ouvi-lo, o Salvador apontou isso para ele em contraste com a mulher pecadora que, tendo sido perdoada, mostrou seu amor grato por ele lavando seus pés. Quando Judas interveio contra Maria Madalena em episódio semelhante pouco antes da Paixão, dizendo que o perfume derramado poderia ter sido vendido e dado seu valor aos pobres, Jesus diz que sempre teremos pobres e que, em breve, Ele não estará mais com eles. É em relação a esses pobres, ao nosso próximo, aos menores por quem Ele veio dar a vida, que Nosso Senhor quer que ajamos como Ele e para Ele: “tudo o que fizerdes ao menor destes meus irmãos, a mim o fareis”. Com este exemplo do lava-pés veio o novo mandamento de “amar uns aos outros como Ele mesmo nos amou.”

“Em memória de mim”

Farão isso em memória de mim.” Com estas palavras, Nosso Senhor transmitiu aos seus apóstolos o poder sacerdotal por excelência: o de celebrar a Santa Missa, o de renovar o Sacrifício da Redenção de forma incruenta. Por meio da Cruz, o Salvador veio restaurar a paz entre Deus e os homens. Essa paz decorre da restauração da ordem nas almas por meio da redenção dos pecados aplicada a elas. Ora, a Missa é deixada por Jesus à sua Igreja para realizar essa aplicação dos frutos da Redenção às almas. Ela é, portanto, o meio mais precioso para a restauração da ordem entre Deus e as almas: a Missa é o Calvário estendido em vista da distribuição de seus benefícios. Cristo, então, ressuscitou para assinalar a sua vitória com um inegável selo divino e, desde então, todos os domingos, prolongamos essa vitória obtendo graças através da nossa participação na Missa. Da Missa flui, então, nossa capacidade de nos assemelharmos a Ele, de viver essa nova vida iniciada no batismo. “Eis que permaneço convosco sempre até o fim dos tempos.” Através da Santa Missa, a Cruz se prolonga e espalha seus benefícios ininterruptamente por todo o mundo.

“Em espírito e em verdade”

Não vos deixarei órfãos”, adverte o Salvador antes de regressar ao Pai. Para nos santificar, o Filho envia o Espírito Santo à sua Igreja. A obra da Redenção é fortalecida e confirmada nas almas pela ação do Consolador divino. Nossa sensibilidade, sem dúvida, teria gostado de desfrutar da presença visível de Jesus, como ele a concedeu a seus contemporâneos durante sua vida terrena. E, no entanto, como disse aos seus apóstolos: “É bom que eu vá”, precisamente porque a realização do desígnio divino se torna mais perfeita pelo acréscimo da ação do Espírito Santo à do Filho. Basta ver a metamorfose dos discípulos no dia de Pentecostes para perceber o grau de completude interior dessa ação da terceira Pessoa da Santíssima Trindade. Nosso desejo de felicidade, muitas vezes reduzido ao prazer imediato e sensível, frequentemente impede que a alma se eleve ao nível das realidades espirituais. Isto pode ser visto até mesmo nos apóstolos que, até certo ponto, permanecem muito realistas, apesar da presença de Jesus com eles, e – ousamos dizer – por causa desta presença, apreendida com demasiada sensibilidade. “Adoradores em espírito e em verdade”, é isso que o Salvador quer ver nas nossas almas, como anunciou à mulher samaritana junto ao poço de Jacó, falando dos rios de água viva da graça. Pela ação do Espírito Santo, voltados para o Céu onde o Salvador nos espera, devemos viver da verdadeira santidade, aquela vida eterna iniciada em nós pela vida da graça que faz a Santíssima Trindade habitar em nossas almas.

Eis a sua mãe.” Sim, o bom Jesus nos deu Sua Mãe. Ele veio a esta vida por meio dela e lhe deu o papel de Medianeira para que, por meio dela, pudéssemos chegar à vida divina. Ela é esta escada de Jacó, dando as suas ordens aos anjos dos quais ela é a Rainha, por meio dos quais Jesus nos é dado e por meio dos quais nós somos dados a Jesus. Primogênita das criaturas, redimida ainda mais pelo privilégio da sua Imaculada Conceição, Nossa Senhora é a primeira a receber a visita do seu Filho ressuscitado. Essa mesma visita do Salvador vitorioso deve estender-se então a todas as almas nas quais Ele deseja estabelecer o Seu reinado. Que Mãe não gostaria de ver um Filho amado viver por meio de tantos outros filhos? Assim é a missão de Maria: continuar a formar em nós seu Filho ressuscitado.

Feliz e santa Páscoa!

Pe. Grégoire Chauvet, FSSPX