ENCÍCLICA UBI ARCANO DEI CONSILIO

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ENCÍCLICA DE S.S. PIO XI

 A BUSCA DA PAZ DE CRISTO NO REINO DE CRISTO

Aos Veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros ordinários em paz e comunhão com a Sé Apostólica:

Veneráveis Irmãos: Saudação e Bênção Apostólica.

Desde o primeiro instante em que, pelos inescrutáveis desígnios de Deus, vimo-Nos elevados — sem merecê-lo — a esta cátedra da verdade e da caridade, desejamos vivamente dirigir-vos o quanto antes e com maior afeto nossa palavra, veneráveis irmãos; e por meio de vós nos dirigir a todos vossos amados filhos diretamente confiados a vosso cuidado. Julgamos haver dado uma prova desse vivo desejo quando, recém eleitos, desde o alto na basílica vaticana, demos a solene bênção Urbi et orbi na presença de uma imensa multidão; bênção essa que todos vós, desde todas as partes do mundo, unindo-se ao Sacro Colégio Cardinalício, recebestes com manifestações de agradecida alegria. Essas manifestações foram para Nós o mais doce consolo, que foi acrescentado à confiança no auxílio de Deus que havia à ocasião em que foi lançado inesperadamente sobre nossos ombros o peso tão inesperado deste gravíssimo cargo. Hoje, por fim, na antevéspera do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, e quase no começo de um novo ano, nossa boca está aberta para vós [2Cor 6, 11] e desejamos que ela vos chegue como solenes votos que o Pai envia a todos seus filhos.

Várias causas nos impediram até agora de realizar esse desejo. Foi necessário, em primeiro lugar, corresponder à filial atenção e delicadeza dos católicos de todo o mundo, que por meio de inumeráveis cartas saudavam e ofereciam as primeiras expressões de sua ardorosa devoção ao novo sucessor de São Pedro. Em seguida, começamos a sentir imediatamente as primeiras experiências pessoais daquilo que o Apóstolo chamava minha preocupação quotidiana, o cuidado de todas as igrejas [2Cor 11, 28]. E às preocupações ordinárias do nosso ofício acrescentaram-se outras novas: a de concluir os gravíssimos assuntos que encontramos já iniciados no que diz respeito à Terra Santa e ao estado de sua cristandade e de suas igrejas, que são as mais veneráveis dentre todas; a defesa da justiça e da caridade, como é nosso dever, em ocasião das conferências internacionais das potências vencedoras, nas quais se julgava o destino dos povos, exortando especialmente a se ter em conta os bens espirituais, cujo valor não é inferior, mas sim superior aos bens materiais; os auxílios prestados a imensas multidões de povos longínquos consumidas pela fome e toda classe de calamidades — ajuda que levamos a cabo enviando os maiores socorros que permitiam nossos pobres recursos — e implorando ao mesmo tempo a generosidade do mundo inteiro; finalmente, o esforço para apaziguar no próprio povo em que nascemos, e em cujo centro Deus colocou a Sé petrina, as lutas violentas que frequentemente surgiam, e que pareciam pôr em iminente perigo a própria sorte da nação tão amada por nós.

Todavia, não faltaram neste tempo extraordinários acontecimentos que nos encheram de alegria. Porquanto, tanto nos dias do XXVI Congresso Eucarístico Internacional quanto nas solenidades do III Centenário da Sagrada Congregação da Propagação da Fé, nossa alma chegou a experimentar uma abundância tão grande de celestiais consolos, que superou facilmente todo o júbilo que Nós poderíamos esperar nas primícias do nosso pontificado. Tivemos então a ocasião de falar pessoalmente com cada um de todos os nossos veneráveis irmãos bispos, reunidos em tão grande número, que dificilmente poderemos vê-lo maior em muitos anos. Pudemos receber também grandes multidões de fiéis, insignes representantes da inumerável família que o Senhor nos havia confiado, de toda tribo, língua, povo e nação, como se disse no Apocalipse [Ap 5, 9], e dirigir-lhes, como era nosso desejo, nossa palavra paterna. — Na ocasião desses acontecimentos presenciamos espetáculos verdadeiramente divinos: vimos a Jesus Cristo, nosso Divino Redentor, oculto sob os véus eucarísticos, avançar triunfalmente pelas ruas de Roma, seguido de um importante cortejo de fiéis vindos de todas as partes, a fim de recuperar aos olhos de todos a honra que Lhe é devida como Rei dos homens e das nações; vimos sacerdotes e seculares manifestarem publicamente seu abrasado espírito de oração e apostolado, como se sobre eles houvesse descido um novo Pentecostes; vimos como a fé viva do povo romano se anunciava de novo, como no passado, para a glória de Deus e salvação das almas, perante todo o universo. Entretanto, a Virgem Maria, Mãe de Deus e benigníssima Mãe nossa, que já nos havia sorrido amorosamente nos santuários de Czenstochowa e de Ostrabama, na milagrosa gruta de Lourdes e, sobretudo em Milão desde fastígio do Domo e no santuário vizinho de Rho, pareceu dignar-se aceitar a homenagem de nossa piedade quando, após restaurado o santuário de Loreto que fora destroçado pelo incêndio, quisemos restituir a esse venerável santuário a sagrada imagem artisticamente reconstruída junto a Nós e por Nós mesmo consagrada e coroada. Este foi um esplêndido triunfo da Santíssima Virgem, no qual participaram com nobre emulação, desde o Vaticano até Loreto, as populações fiéis de todos os povos do itinerário e das proximidades, com uma espontânea e luminosa afirmação de sua fé religiosa, na qual sobressaía ao mesmo tempo sua profunda devoção a Maria e ao Vigário de Cristo.

O significado desses acontecimentos, tristes e alegres, cuja recordação queremos registrar aqui para a posteridade, foi-nos esclarecendo pouco a pouco o dever principal que nos era imposto no sumo pontificado e o que deveríamos escrever em nossa primeira encíclica.

Os males da época

Com efeito, é um fato evidente a todos que nem os indivíduos, nem a humanidade e nem os povos conseguiram ainda uma paz verdadeira depois do desastre da guerra.Ainda se espera a tranquilidade ativa e frutífera desejada por todos. Mas é necessário, em primeiro lugar, examinar cuidadosamente a magnitude e a gravidade desse mal, e em segundo lugar analisar suas causas e raízes se se quer, como Nós queremos, aplicar-lhe eficaz remédio. Este é o objeto que por dever de nosso ofício apostólico nos propomos a tratar nesta encíclica e o fim que nunca cessaremos de depois procurar com toda solicitude. O mundo continua nas mesmas circunstâncias que durante todo o tempo de seu pontificado encheram de angústia e preocupação o espírito de Bento XV, nosso predecessor. Consequentemente, portanto, fazemos nossos os mesmos pensamentos e propósitos que ele tinha nessa matéria. E é de se desejar que todos os homens de boa vontade se identifiquem com nossos sentimentos e nossos propósitos e colaborem conosco para impetrar de Deus, em favor dos homens, uma sincera e duradoura reconciliação.

a) Os conflitos internacionais

Parecem escritas para os nossos dias aquelas palavras dos grandes profetas: Esperávamos a paz e nenhum bem nos chegava; o tempo do remédio, e eis que só havia o temor [Jer 8, 15]; Esperávamos a paz, e não temos nenhum bem; o tempo da cura, e eis-nos todos em perturbação [Jer 14, 19]. Por esta causa se afastou de nós o juízo, e não nos alcança a justiça… Esperamos o juízo, e não aparece; a salvação, e ela está longe de nós [Is 59, 9.11].Com efeito, cessou na Europa a guerra entre os beligerantes de ontem, mas aparece o perigo de novas guerras no Oriente Próximo; a situação agravou-se terrivelmente em territórios imensos, conforme já dissemos, onde desgraçadas multidões inquietas, principalmente velhos, mulheres e crianças parecem diariamente estar sob o flagelo da fome, das epidemias e das devastações; nos próprios territórios que foram palco da guerra mundial não cessaram as velhas rivalidades, que continuam dissimuladas na política, encobertas nas flutuações financeiras e descaradas nos periódicos diários e nas revistas; e chegam a invadir os campos dos estudos, das ciências e da arte, cuja natureza não é própria das amargas contendas.Esta situação de troca recíproca de inimizades e ofensas entre Estados é o motivo que não deixa os povos respirarem; não são somente as inimizades entre os Estados vencidos e os Estados vencedores; são os próprios Estados vencedores que atuam entre si como inimigos: uns se queixam da opressão e exploração que sobre eles exercem os Estados poderosos; estes, por sua vez, protestam que são objeto dos ódios e das insídias daqueles. Todos os Estados, sem exceção, experimentam as tristes consequências da guerra passada; em maior medida, certamente, experimentam os Estados vencidos; mas agora inclusive os mesmos que se viram livres da guerra suportam agora seus efeitos. Esses males vão se agravando a cada dia, pois o remédio eficaz demora, sobretudo porque as diversas propostas e as repetidas tentativas dos homens de Estado para remediar a situação foram até agora inúteis e inclusive contraproducentes. Por isso, o temor crescente de novas guerras mais calamitosas obriga a todos os Estados a viverem preparados para a guerra; preparação essa que esgota o erário público, esgota o vigor da raça e perturba a vida intelectual, religiosa e moral dos povos.

b) As discórdias interiores

E o pior é que às inimizades internacionais são acrescidas as discórdias interiores, que põem em perigo a firmeza do Estado e a segurança da própria sociedade.

Em primeiro lugar a luta de classes, convertida já em mortal úlcera arraigada dentro das nações, que ameaça de morte a agricultura, a indústria e o comércio; em uma palavra: todos os instrumentos da prosperidade privada e do bem-estar público.E esse mal foi se agravando cada dia por conta da crescente cobiça de uns pelos bens materiais, e pela obstinação de outros em retê-los em suas mãos, e pela ânsia de riquezas e de poder comum a ambos. Daí nasceram as frequentes greves, voluntárias ou forçadas; os tumultos populares e as repressões coletivas, o descontentamento comum e o dano de todos.

No terreno político é preciso acrescentar a luta entre os partidos, dirigida frequentemente não já por uma serena diversidade de opiniões e pela busca sincera do bem comum, mas sim pelo desejo de fazer prevalecer os interesses próprios em detrimento dos demais. Por isso vemos multiplicarem-se as conjurações, sucederem-se atentados e os atos de bandidagem contra os próprios cidadãos; e contra os governantes as ameaças terroristas, as insurreições manifestas e outras desordens semelhantes. A gravidade desses fatos é tanto maior quanto mais participa o povo do Estado, tal como sucede nas modernas formas de governo. Formas que, embora não estejam em contradição com a doutrina católica, que é sempre conciliável com toda forma de governo justa e razoável, estão, todavia, muito mais expostas que às outras ao jogo desleal dos grupos subversivos.

c) A ruína da família

Com efeito, é ainda mais doloroso advertir que a enfermidade penetrou profundamente até às próprias raízes da sociedade humana, ou seja, até no santuário da família. A destruição da família, há muito tempo já iniciada, foi fomentada pelo imenso flagelo da guerra, que afastou pais e filhos do lar familiar e aumentou extraordinariamente a corrupção dos costumes. Já não se respeita a potestade do pai de família e nem se aprecia mais o parentesco sanguíneo; os senhores e os servos olham-se como inimigos; a própria fidelidade conjugal se vê frequentemente violada, e se desprezam os sagrados deveres dos esposos para com Deus e a sociedade.

E da mesma maneira que o mal-estar geral de um organismo ou a doença de uma de suas partes principais repercute sobre as partes menores, assim também as enfermidades da sociedade e da família redundam necessariamente em cada um dos seus indivíduos. Ninguém ignora a mórbida inquietação de espírito e a indisciplina social que se apoderaram dos homens de toda classe e idade; o desprezo da obediência e a impaciência do trabalho converteram-se em costume; a frivolidade da mulher e da jovem ultrapassaram o limite do pudor, sobretudo nas vestimentas e no baile, exacerbando com seu excessivo luxo o ódio daqueles que carecem de tudo; finalmente, o crescimento numérico daqueles reduzidos à miséria, que provê às hordas revolucionárias contribuição permanente de um ingente número de pessoas.

Também a confiança e a segurança deram lugar à perigosas preocupações e a perturbados temores; no lugar do trabalho e da prontidão, a inércia e a indolência; no lugar da ordenada tranquilidade, que mantém as coisas em paz, reina em todos os lugares a confusão e a perturbação.Essa situação explica a prostração da indústria, a crise do comércio internacional, a decadência da literatura e da arte e, o que é muito mais grave, o desaparecimento da vida cristã em muitos lugares, até ao ponto que a humanidade, longe de avançar indefinidamente rumo a um autêntico progresso, como pregam os homens, parece retroceder para uma nova barbárie.

d) Danos espirituais e sobrenaturais

A todos os males que enumeramos é preciso acrescentar por sobreposição aqueles outros que o homem animal não percebe [1Cor 2, 14] e que são os mais graves do nosso tempo. Estamos falando dos danos causados na esfera dos bens espirituais e sobrenaturais, que estão intimamente ligados à vida das almas. Esses danos são tanto mais lamentáveis que aqueles relativos aos bens materiais quanto maior é a superioridade do espírito sobre a matéria. Porquanto, ademais do esquecimento geral dos deveres cristãos que recordamos, é para Nós, assim como para vós, veneráveis irmãos, uma grandíssima dor ver que a maior parte das muitas igrejas destinadas a usos profanos em decorrência da guerra não foram devolvidas ao culto; que numerosos seminários, fechados pela mesma razão, e tão necessários para a formação dos mestres religiosos dos povos, continuam todavia fechados; a diminuição geral do clero em muitas nações, causada pela morte dos sacerdotes que sucumbiram na guerra exercitando seu sagrado ministério, e pela infidelidade daqueles outros que sob o peso dos perigos esqueceram-se das obrigações; por causa disso, em um número muito grande de lugares silenciou-se aquela pregação sagrada, tão importante para a edificação do corpo de Cristo [Ef 4, 12].

Desde os extremos confins da terra até o seio de países longínquos, muitos dos nossos missionários foram chamados à sua pátria para ajudar na guerra, abandonando assim os campos de seu apostolado, tão fecundos e tão úteis à humanidade e à religião. No entanto, foram poucos os que voltaram incólumes aos seus postos de trabalho.Embora seja certo que esses danos tenham sido compensados com excelentes frutos. Porquanto, por um lado ficou demonstrado – contra a calúnia generalizada dos inimigos – que os sacerdotes têm um amor extraordinário por sua pátria e uma profunda consciência de seus deveres, e por outro lado, muitos soldados, nos umbrais da morte, reconciliaram-se com o sacerdócio e com a Igreja, movidos pelo exemplo diário de abnegação e de valentia daqueles. Isso nos deve levar a admirar a bondade e a sabedoria de Deus, que é o único que de um mesmo mal pode tirar um bem.

Causas desses males

a) Causas secundárias

Até aqui expomos os males da nossa época. Analisemos agora suas causas, embora já tenhamos indicado algo delas.

Em primeiro lugar, veneráveis irmãos, parece-nos escutar o divino Consolador e Médico das enfermidades humanas repetindo aquelas palavras: Todos esses males procedem de dentro [do homem] [Mc 7, 23]. É certo que se firmou solenemente a paz entre os beligerantes, mas essa paz que ficou escrita nos documentos diplomáticos não ficou gravada nos corações; persevera todavia nos homens o espírito de guerra, que redunda no dano cada dia maior da sociedade civil. A lei da violência tem predominado em todos lugares por muito tempo, e foram se apagando pouco a pouco os sentimentos de bondade e de misericórdia, inatos ao homem e aperfeiçoados pela lei da caridade cristã; e esses sentimentos não foram minimamente restaurados nessa pretensa paz escrita nos papéis. O hálito prolongado do ódio criou em muitos, talvez em muitíssimos homens, como que uma segunda natureza; e reina aquela lei cega, contrária à lei do espírito, que o Apóstolo lamentava sentir em seus membros. Com demasiada frequência sucede que o homem não é para o homem um irmão, como manda Cristo, mas um estranho e um inimigo; não se tem em conta para nada a dignidade da pessoa humana; só vale a força do número; luta-se mutuamente com o único e comum fim de apoderar-se do maior número possível de bens desta vida. Nada está hoje tão estendido na humanidade como o desprezo dos bens eternos que Cristo oferece continuamente a todos por meio da Igreja, e [também, nada tão estendido quanto] o apetite insaciável dos bens efêmeros e caducáveis desta terra.

Ora, os bens externos têm uma característica: se são apetecidos desordenadamente, produzem todo gênero de males, sobretudo os ódios e a corrupção dos costumes. Porquanto, sendo em si mesmo vis e baixos, não podem saciar plenamente o coração humano que, criado por Deus e destinado a gozar de sua glória, há necessariamente de viver preocupado e inquieto enquanto não descansar em Deus.

Ademais, porque esses bens são radicalmente limitados, quanto maior é o número dos que participam deles, menor é a quantidade que cada um recebe. Os bens espirituais, por outro lado, ainda que sejam repartidos dentre muitos, o enriquecimento de todos não implica sua diminuição. É por isso que os bens terrenos, por sua insuficiência para satisfazer a todos por igual e por sua incapacidade para saciar plenamente cada um, convertam-se em fontes de discórdias e amarguras, vaidade das vaidades… e aflição do espírito [Ecl. 1: 2.14], como sabiamente os classificou Salomão, depois de havê-los experimentado em sua totalidade. Fato comprovável igualmente na sociedade humana e nos indivíduos. Donde vêm as guerras e as contendas entre vós? Não vêm elas das vossas concupiscências? [Tg 4, 1]

Porque não há peste social maior que a concupiscentia carnis [concupiscência da carne], ou seja, o apetite imoderado de prazeres, pelo influxo perturbador que ele exerce sobre as famílias e sobre os povos; da concupiscentia oculorum [concupiscência dos olhos], ou seja, a sede de riquezas, surgem amargas contendas na ordem civil, fazendo que cada um busque cada vez mais servir a si mesmo; e há a superbia vitae [soberba da vida], ou seja, a paixão que visa dominar a todos os demais, e que costuma conduzir os partidos políticos à lutas civis tão ásperas, que elas não retrocedem nem perante o crime de lesa majestade, nem perante a alta traição e nem perante o próprio parricídio da pátria.

A esta imoderada ambição, que se encobre com as mais altas razões de patriotismo e de bem público, é preciso atribuir os ódios e os conflitos que costumam se produzir entre as nações. Porque o amor à pátria e ao próprio povo, embora sejam poderosas fontes de virtudes e de atos heroicos quando regidos pela lei cristã, convertem-se em semente de inumeráveis injustiças e iniquidades quando, violando as regras da justiça e do direito, degeneram em um nacionalismo imoderado. Os que se deixam dominar por esse nacionalismo exacerbado esquecem-se não somente de que todos os povos, enquanto partes da universal família humana, estão unidos entre si pelas relações de fraternidade, e que também esses demais povos têm direito à vida e à prosperidade, mas também esquecem-se ademais que é ilícito e contraproducente separar a utilidade da bondade moral. Porquanto A justiça exalta as nações; o pecado torna miseráveis os povos.[Prov. 14, 34]. A aquisição de vantagens para uma família, cidade ou Estado, em detrimento das demais, poderá parecer a certos homens um fato excelente e magnífico; mas, como adverte sabiamente Santo Agostinho, esses êxitos não são nem definitivos e nem estão isentos do perigo da ruína total: “É uma felicidade que tem o brilho mas também a fragilidade do vidro, no qual sempre se teme a desgraça de que se quebre de repente” [De Civitate Dei IV, 3].

b) Causas principais

Mas é preciso, com efeito, investigar mais a fundo as causas da ausência dessa paz; paz esta desejada por todos como remédio de tantos males. Muito antes da guerra europeia, por culpa dos homens e dos Estados, vinha preparando-se a principal causa de tantos desastres: causa que deveria haver sido suprimida pelas urgentes proporções do conflito armado, se todos houvessem entendido o profundo significado de tão tremendos acontecimentos. Porquanto, quem ignora que na Escritura se diz que aqueles que abandonam o Senhor perecerão [Is 1, 28]? Nem é menos conhecida aquela sentença tão grave de Jesus Cristo, Redentor e Senhor dos homens: Sem mim, nada podereis fazer [Jo 15, 5]; e aquela outra: Quem não colhe comigo, desperdiça [Lc, 11, 23].

Sentenças divinas verificadas em todos os tempos, mas realizadas agora com maior evidência aos olhos de todos. A humanidade afastou-se, por desgraça, de Deus e de Jesus Cristo. Por isso veio a cair desde o estado anterior de felicidade nesse abismo de males, e por isso fracassam com frequência todos os intentos realizados para reparar os males e salvar os restos de tantas ruínas. Excluiu-se Deus e Jesus Cristo da legislação e do governo e foi colocado no homem, e não em Deus, a origem de toda autoridade; por isso as leis perderam a garantia das verdadeiras e imperecíveis sanções e ficaram desligadas dos princípios soberanos do direito, cuja única fonte, segundo os próprios filósofos pagãos, como por exemplo Cícero, era a lei eterna de Deus. Os fundamentos da autoridade desapareceram ao suprimir-se a razão fundamental do direito do governante a mandar e a obrigação dos governados de obedecer. A consequência inevitável foi o cataclismo de toda a sociedade humana, carente de toda base e defesa sólida, e convertida assim em presa das facções políticas que lutam pelo poder, e que buscam seus próprios interesses e não os interesses da pátria.

Rejeitou-se igualmente o direito de Deus, o direito de Jesus Cristo de presidir a origem da família, reduzindo o matrimônio a um mero contrato civil, que Jesus Cristo havia feito sacramentum magnum [Ef. 5, 32] e que havia querido que ele fosse figura, santa e santificante, do vínculo indissolúvel que Lhe une com sua Igreja. E assim presenciamos o obscurecimento crescente e a debilitação progressiva no povo da ideia e do significado que a Igreja havia infundido no gérmen primeiro da sociedade, que é a família; a desaparição da hierarquia e da paz domésticas; a perda cada dia maior da união e estabilidade familiares; a frequente violação da santidade do matrimônio, causada pelo fervor dos baixos apetites e pelo anseio mortal de vis interesses, que trazem consigo o envenenamento das fontes mesmas da vida familiar e nacional.

Enfim, excluiu-se Deus e Cristo da educação da juventude, e a consequência inevitável foi não já a mera ausência da religião nas escolas, mas a guerra, aberta ou velada, contra a religião no ensino e a convicção das crianças da nula ou escassa importância daqueles princípios que se deve ter para viver retamente, guardando sobre eles um absoluto silêncio ou fazendo deles objeto de explicações saturadas de desprezo. E assim, com o desterro de Deus, da sua lei e de seu ensinamento, já não há possibilidade de educar as almas infantis para evitarem o mal e levar uma vida virtuosa, nem de proporcionar à família e à sociedade homens sóbrios, retos, amantes da ordem e da paz, idôneos e capazes de contribuir para a prosperidade pública.

Desprezados, pois, os preceitos da sabedoria cristã, não nos admira que a semente da discórdia semeada por todas as partes, como em um terreno bem preparado, tenha terminado por produzir aquela espantosa guerra que, em lugar de apagar com o cansaço os ódios internacionais e sociais, não fez outra coisa senão alimentar esses ódios com violência e sangue.

Os remédios

a) A paz

Enumeramos brevemente, veneráveis irmãos, as causas dos males que abatem atualmente a sociedade. Analisemos agora os remédios que, dada a natureza desses males, sejam adequados na cura da sociedade.

É necessário, em primeiro lugar, que reine a paz nos espíritos. De muito pouco serviria uma aparente paz exterior que regesse e informasse como pura fórmula de cortesia as recíprocas relações dos homens; é necessária uma paz que invada e tranquilize os espíritos, inclinando-os e preparando-os para uma benevolência fraterna para com os demais. Essa paz é a paz de Cristo: que a paz de Cristo reine em vossos corações [Col 3, 15]; nem pode haver outra paz além daquela que Ele dá aos seus [cf. Jo 14, 27]; Ele, que, por ser Deus, vê as entranhas dos corações e reina nas almas [cf. 1Sam 16, 7]. Com razão pôde Jesus Cristo chamar sua esta paz, porque Ele foi o primeiro que disse aos homens: Vós sois todos irmãos [Mt 23, 8], e quem promulgou a lei da caridade e paciência mútua entre todos os homens, selando-a de certo modo com seu próprio sangue: O meu preceito é este: Amai-vos uns aos outros,como eu vos amei.[Jo 15, 12]. Levai os fardos uns dos outros: desta maneira, cumprireis a lei de Cristo.[Gal 6, 2].

Segue-se claramente do que foi dito que a genuína paz de Cristo não pode apartar-se da norma da justiça, porque é Deus quem julga segundo a justiça [Sal 9, 5] e porque a paz é obra da justiça [Is. 32, 17]; mas essa paz não pode consistir somente em uma inflexível e dura justiça, senão que deve ser temperada por uma caridade que a supere, virtude esta essencialmente adequada para estabelecer a paz entre os homens. É Jesus Cristo quem conquistou essa paz para o gênero humano; mais ainda, segundo a enérgica frase de São Paulo, Ele mesmo é nossa paz; porque, ao mesmo que satisfazia em sua carne sobre a cruz a justiça divina, destruindo em si mesmo à inimizade…, fazendo a paz [Ef. 2, 14], e reconciliou em si mesmo todos os homens e todas as coisas com Deus. Na mesma redenção de Cristo, São Paulo considera e reconhece não tanto a obra da justiça, embora certamente o seja, mas a obra divina da reconciliação e da caridade: porque era Deus que reconciliava consigo o mundo em Cristo,[2Cor 5, 19]; Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu seu Filho unigênito[Jo. 3, 16]. O Doutor Angélico expressa esse pensamento dizendo, com sua costumeira exatidão, que a autêntica paz verdadeira pertence antes à virtude da caridade do que à virtude da justiça, pois a justiça tem por missão remover os obstáculos da paz, como são as injustiças e os danos; mas a paz, por sua própria essência e caráter, é um ato de caridade. [II-II, q. 29 art. 3, ad 3]

A essa paz de Cristo que, nascida da caridade, penetra e reside no mais íntimo da alma, aplica-se com razão a palavra de São Paulo sobre o reino de Deus, que se apossa das almas pela virtude da caridade: O reino de Deus não é comida e nem bebida[Rom 14, 17]; ou seja, a paz de Cristo não se alimenta de bens caducos, mas daquelas realidades espirituais e eternas cuja superior excelência Cristo em pessoa revelou ao mundo e não cessou de mostrar aos homens. Nesse sentido disse: Pois, que aproveitará a um homem ganhar todo o mundo, se vier a perder a sua alma? Ou que dará um homem em troca da sua alma? [Mt 16, 26]. E ensinou em seguida a constância e firmeza de alma que deve possuir o cristão: Não temais os que matam o corpo, e não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode lançar na geena a alma e o corpo [Mt, 10, 28; Lc 12, 14].

E não é que para gozar dessa paz seja necessário renunciar aos bens deste mundo; ao contrário, Cristo mesmo promete-lhes em abundância: Buscai, pois, em primeiro lugar,o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo [Mt 6, 33; Lc 12, 31]. Somente a paz de Deus […] está acima de todo entendimento (Fil 4, 7), e precisamente por isso domina as cegas paixões e evita as dissenções e discórdias, que são necessariamente provocadas pela ambição das riquezas.

b) Suas consequências

Se a virtude refreia as paixões, e as realidades do espírito recobram o posto de preferência que lhes é devido, logra-se espontaneamente a dupla vantagem da qual a paz cristã assegura ao mesmo tempo a integridade dos costumes e a dignidade da pessoa humana; dignidade que, resgatada pelo sangue de Cristo, foi consagrada pela adoção do Pai celestial e o parentesco fraterno com o mesmo Cristo; e que pelas orações e pelos sacramentos é feita participante da graça e da natureza divina até que, como recompensa de uma vida virtuosa na terra, goze eternamente da possessão da glória celestial.

E conforme anteriormente indicamos, uma das principais causas da confusão atual é a debilitação da autoridade do direito e do respeito à autoridade — certamente provocada por aqueles que negam que a origem do direito e do poder advêm de Deus,criador e governante do mundo. Esse mal encontrará também seu remédio na paz cristã, que é a própria paz divina, e por isso mesmo ela deseja o respeito à ordem, à lei e à autoridade. Com efeito, tal é confirmado pela Escritura: Conservai, filhos, em paz, a minha disciplina [Eclo. 41, 17]; Os que amam a tua Lei, gozam de muita paz [Sal. 118 (119), 165]; Quem teme o preceito viverá em paz [Prov. 13,13]. E nosso Senhor não contentou-se em mandar Dai a César o que é de César [Mt. 22, 21], senão que declarou publicamente seu respeito à autoridade que Pilatos havia recebido do alto [Cf. Jo. 19,11], cumprindo assim o preceito que havia dado a seus discípulos de respeitar aos escribas e fariseus, que haviam se sentado na cadeira de Moisés [Mt. 23,3]. E é admirável a alta honra que atribuiu à autoridade dos pais na vida de família, submetendo-se exemplarmente à Maria e a José. E sua é, finalmente, a lei promulgada pelos apóstolos: Toda a alma esteja sujeita às autoridades superiores, porque não há autoridade que não venha de Deus [Rom. 13, 1].

Se se considera, ademais, que a doutrina e os preceitos de Cristo referentes à dignidade da pessoa humana, à pureza moral da vida, à obrigação de obedecer, à ordenação divina da sociedade humana, ao sacramento do matrimônio e à santidade da família cristã; se se considera, dizemos, que essas e outras verdades que Ele trouxe do céu para a terra e entregou-as unicamente à sua Igreja, com a solene promessa de sua perpétua ajuda e presença, e encarregou a Igreja para que não deixasse de ensiná-las com o magistério infalível à todas as nações até o fim dos séculos, facilmente se compreenderá os grandes e eficazes remédios que a Igreja católica pode e deve oferecer para a pacificação do mundo.

c) Eficaz intervenção da Igreja

Porque, tendo sido a Igreja constituída por Deus como a única intérprete e depositária dessas verdades e preceitos, é ela a única que tem poder eficaz para em primeiro lugar libertar a vida doméstica e a civil da mácula do materialismo que já causou danos tão grandes nessas duas sociedades, e assim introduzir nelas a doutrina cristã acerca do espírito, ou seja, acerca da imortalidade da alma, que é uma doutrina muito superior à toda filosofia; para unir, ademais, entre si todas as classes sociais e todo o povo mediante sentimentos de uma mais profunda benevolência e o espírito de uma verdadeira fraternidade [Santo Agostinho, De moribus Ecclesiae catholicae I 3Q], e levantar a dignidade humana, defendida como corresponde, até às mesmas alturas de Deus; e para, finalmente, procurar que, com a reforma moral e a santificação da vida provada e pública, tudo fique submetido plenamente a Deus, que olha os corações [1Sam 16, 7], em conformidade com seus ensinamentos e preceitos, e desta maneira, persuadidos todos os homens, governados e governantes, de seus sagrados deveres de consciência, Cristo seja tudo em todos [Col 3, 11] nas próprias instituições públicas do Estado.

Por esta razão, sendo missão exclusiva da Igreja a reta formação da consciência humana, pela verdade e o poder que recebeu de Cristo, é ela a única que pode atualmente não só restabelecer a verdadeira paz de Cristo, mas também consolidá-la para o futuro, apartando todos os novos perigos de guerra que, conforme dissemos, nos ameaçam. A Igreja é a única que ensina, por um mandato e ordenação divina, a obrigação que têm os homens de ajustar à lei eterna de Deus toda sua conduta, tanto a privada como a pública, como indivíduos e como membros da sociedade. Mas é evidente que são mais transcendentais os deveres relativos ao bem-estar da coletividade.

Desta maneira, quando os Estados e governos considerarem como um dever sagrado e solene a submissão aos ensinamentos e preceitos de Jesus Cristo em sua vida política interior e exterior, então, e somente então, gozarão de paz interna, manterão relações de mútua confiança e resolverão pacificamente os conflitos que possam surgir.

Todos os intentos realizados até agora nessa direção, ou foram nulos ou foram escassos em resultados, sobretudo nos problemas que são objeto de estridentes controvérsias entre os povos.

A razão é que não há nenhuma instituição que possa impor a todas as nações uma espécie de código legislativo comum adaptado aos nossos tempos; um código desse gênero é o que teve na Idade Média aquela autêntica sociedade de nações que era a comunidade cristã dos povos. Porque, embora nela se cometiam com muita frequência verdadeiras injustiças, permanecia todavia sempre vigente a santidade do direito, como norma segura segundo a qual eram julgadas as próprias nações.

Mas existe uma instituição divina que pode conservar a santidade do direito dos povos; uma instituição que pertence a todas as nações mas é supereminente a todas elas;é dotada da máxima autoridade e venerada pela plenitude de seu magistério: a Igreja de Cristo. Ela é a única que se mostra preparada para uma missão tão extraordinária, por causa de sua instituição divina, por sua própria natureza e constituição e, finalmente, pela grande majestade que lhe conferiram os séculos, e que, longes de ficarem oprimidas pelas tormentas da guerra, saiu delas com admirável crescimento.

A consequência, portanto, é que a paz verdadeira, ou seja, a tão desejada paz de Cristo, não pode existir enquanto todos os homens não sigam fielmente os ensinamentos, preceitos e os exemplos de Cristo, tanto na vida pública como na vida privada; de forma que, estabelecida retamente a comunidade humana, possa a Igreja por fim, cumprindo sua divina missão, defender os direitos que Deus tem sobre a sociedade e sobre os indivíduos.

d) O reinado de Jesus Cristo

Está contido no que brevemente expusemos aqui o Reino de Cristo. Reina Jesus Cristo no intelecto de cada um dos homens com sua doutrina; reina nos corações com a caridade; reina em toda a vida humana com a observância de sua lei e a imitação de seus exemplos. Reina Jesus Cristo na família quando esta, constituída pelo matrimônio cristão, conserva-se inviolavelmente como coisa sagrada na qual a autoridade paterna reflete a paternidade divina, que está na fonte e origem do seu nome [Cf. Ef 3, 15], e na qual os filhos imitam a obediência do menino Jesus, e assim toda a vida respira a santidade da Família de Nazaré. Reina, finalmente, Jesus cristo na sociedade quando, reconhecidos nesta as máximas honras devidas a Deus, atribui-se a Deus a origem da autoridade e de todos os direitos, para que não falte a norma reguladora do governo nem o dever e a dignidade da obediência; e também quando, ademais, se ela reconhece à Igreja a dignidade e o posto no qual foi colocada por seu Fundador, como sociedade perfeita, mestra e guia das demais sociedades eque Ela não míngua a autoridade dessas outras sociedades — pois cada uma delas é legítima em sua própria esfera —, senão que as completa harmonicamente, como a graça completa e aperfeiçoa a natureza; donde evidentemente far-se-á com que essas sociedades prestem um poderoso auxílio aos homens para alcançar seu fim supremo, que é a felicidade eterna, e lhes assegure uma felicidade maior ainda nesta vida presente.

A conclusão evidente de tudo o que foi dito é que não há paz de Cristo senão no reino de Cristo, e que não há meio mais eficaz para consolidar a paz que a restauração do reino de Cristo.

Portanto, quando Pio X se esforçava para instaurar todas as coisas em Cristo, preparava, como que movido por uma inspiração divina, a grande obra do restabelecimento da paz, que havia de ser mais tarde o programa de Bento XV. Nós, prosseguindo a dupla finalidade de nossos predecessores, concentraremos todos os nossos esforços para realizar a paz de Cristo no reino de Cristo, confiados totalmente na graça de Deus, que, ao nos chamar ao supremo pontificado, prometeu-nos sua permanente assistência.

Trabalho do episcopado

e) A aplicação dos remédios

Para realizar esse programa confiamos na colaboração de todos os bons; mas nós nos dirigimos especialmente a vós, veneráveis irmãos, a quem Cristo, nosso Guia e Cabeça, que nos confiou o cuidado de toda sua grei, chamou a tomar parte tão importante em nossa universal solicitude; a vós, com efeito, a quem o Espírito Santo colocou para governar a Igreja de Deus [Atos 20, 28]; a vós, honrados particularmente com o ministério da reconciliação, cumprindo a missão de embaixadores por Cristo [2Cor. 5, 18-20], feitos partícipes desta embaixada e do magistério divino, e despenseiros de seus mistérios [1 Cor. 4, 1], e por essa razão sal da terra e luz do mundo [Mt. 5, 13-14], doutores e padres dos povos cristãos, exemplares do rebanho [1Pe. 5, 3] destinados a serem chamados grandes no reino dos céus [Mt 5, 19]; vós, finalmente, em quem como em membros principais e com laços de ouro se mantém coordenado e unido todo o corpo de Cristo [Ef 4, 15-16], que é a Igreja, estabelecida sobre a solidez da Pedra.

Tivemos uma nova e recente prova de vossa insigne e ativa diligência quando, por motivo do Congresso Eucarístico celebrado em Roma e por ocasião do centenário da Sagrada Congregação de Propaganda Fide, recordamos no princípio desta encíclica, viestes em tão grande número de todas as partes do mundo para se reunir na Cidade Eterna junto ao sepulcro dos Santos Apóstolos. E aquela reunião de pastores, tão solene por seu número como por sua autoridade, sugeriu-nos a ideia de convocar oportunamente em Roma, cabeça do mundo católico, uma solene assembleia de mesmo caráter, que buscasse um remédio oportuno à atual decadência provocada pelas grandes perturbações da humanidade; a proximidade do Ano Santo nos oferece uma esperançosa perspectiva para a realização desse projeto.

No entanto, não nos atreveremos por agora a empreender a continuação daquele concílio ecumênico iniciado durante nossa juventude pelo Romano Pontífice Pio IX, e que só em parte, embora certamente muito importante, pôde ser realizado. A causa dessa atitude é que Nós, como o célebre chefe de Israel, estamos esperando em oração que a bondade misericordiosa do Senhor nos manifeste com maior certeza os desígnios de sua vontade [Cf. Jz 6, 17].

Entretanto, embora saibamos que não seja necessário estimular vosso ativo zelo, digno antes dos maiores elogios, a consciência do ofício apostólico e de nosso dever de Padre para todos nós adverte, no entanto, e quase nos obriga a inflamar com novos ardores o já abrasado zelo de todos vós; desta forma, todos porão cada dia maior afã e empenho em cultivar a parte do rebanho do Senhor que lhes corresponde.

Por notícias que vós e outros muitos não haveis comunicado e pela fama pública espalhada pela imprensa e os livros e confirmada por outros muitos documentos, conhecemos muito bem os inumeráveis e oportunos projetos, as felizes iniciativas, as obras realizadas e concluídas na medida em que as circunstâncias permitem, pelo clero e pelo povo fiel sob vosso impulso e a aprovação de nossos predecessores. Por tudo isso damos a Deus as maiores graças. Entre essas obras, admiramos especialmente as muitas e providenciais instituições dedicadas à difusão da sã doutrina e à santificação das almas; igualmente, as associações de clérigos e seculares chamas Pias Uniões, cujo objetivo é o cuidado e o desenvolvimento das missões entre os infiéis, para propagar o reino de Cristo e levar aos infiéis a salvação temporal e eterna; igualmente também as numerosas congregações de jovens que juntam a uma devoção singular à Santíssima Virgem, e especialmente à Sagrada Eucaristia, uma conduta exemplar de fé, de pureza e de fraterna caridade recíproca; acrescentamos as associações eucarísticas, consagradas a honrar o augusto Sacramento, seja com cultos mais frequentes ou mais solenes e até com grandiosas procissões pelas ruas da cidade, seja também com a organização de imponentes congressos regionais, nacionais e até mesmo internacionais em que assistem representantes de quase todos os povos, e cujos membros encontram-se sem exceção admiravelmente unidos na mesma fé, na mesma adoração, na mesma oração e na mesma participação dos bens celestiais.

A essa corrente de piedade atribuímos o grande desenvolvimento atual do espírito de apostolado, ou seja, o zelo ardente que, primeiro com a oração frequente e o bom exemplo, em seguida com a propaganda falada e escrita, finalmente com as obras e socorros da caridade, procura que de novo se tributem ao Coração de Cristo, tanto no coração de cada um dos homens como na família e na sociedade, o amor, o culto e o império que são devidos à sua Divina Realeza. É o mesmo fim ao qual tende o bonum certamen — a santa batalha — pro aris et focis — pelo altar e pelo lar — que é preciso empreender, a luta que é preciso iniciar em múltiplas frentes em prol dos diretos que a sociedade religiosa — a Igreja — e a doméstica — a família— receberam de Deus e da natureza para a educação dos filhos. A este mesmo apostolado tende, finalmente, todo esse conjunto de organizações, programas e obras que levam o nome de Ação Católica, que nos é particularmente caríssima.

Todas essas obras e outras muitas instituições, que seria demasiado longo enumerá-las, hão de ser conservadas com firmeza; mais ainda, é preciso continuamente desenvolvê-las com fervor sempre crescente, enriquecendo-as com os novos aperfeiçoamentos que exigem as circunstâncias das coisas e das pessoas. Essa tarefa pode parecer árdua e difícil aos pastores e aos fiéis; mas não por isso é menos necessária, e é preciso colocá-la entre os principais deveres do ministério pastoral e da vida cristã. Todos estes motivos demonstram — com demasiada evidência para que seja necessário insistir — a íntima relação existente entre todas essas obras apostólicas e a estreita conexão que têm com a restauração tão desejada do reino de Cristo e com o retorno da paz cristã, impossível de lograr à margem desse reino: a paz de Cristo no reino de Cristo.

A colaboração do clero

E queremos, veneráveis irmãos, que digais a vossos sacerdotes que Nós, que somos testemunha e fomos até pouco tempo companheiros e colaboradores de tantos trabalhos energicamente empreendidos em prol do rebanho de Cristo, apreciamos sempre, e seguimos apreciando, em seu alto valor, o zelo admirável que desdobram no cumprimento de suas obrigações, assim como seu gênio para descobrir métodos novos, acomodados às novas exigências criadas pela evolução dos tempos. Dizei-lhes que estarão tanto mais unidos a Nós, e que Nós, por nossa parte, teremos para com eles um afeto tanto mais particular, quanto com a santidade de sua vida e a integridade de sua obediência estejam mais cordialmente e mais estreitamente unidos a vós, chefes e senhores, como ao próprio Cristo.

Não é necessário, veneráveis irmãos, que vos digamos a confiança especial que temos posta no clero regular para a realização de nossos desígnios e projetos; sabeis muito bem a importância que tem a contribuição desse clero na extensão e na consolidação do reinado de Cristo, tanto em nossos países como fora deles. Consagrados à observância e à prática não somente dos preceitos, mas também dos conselhos evangélicos, os membros das famílias religiosas, seja se se entregam à contemplação das coisas divinas na sombra dos claustros, seja se se consagrarem no mundo ao apostolado da vida ativa, demonstram vivamente com sua própria vida o ideal das virtudes cristãs, e, consagrando-se por completo ao bem comum, renunciam a todos os bens e comodidades da terra para gozar mais abundantemente dos bens espirituais; dessa maneira incitam nos fiéis, testemunhas permanentes de tais exemplos, o desejo e aspiração pelos bens superiores, e conseguem esse feliz resultado com sua consagração àquelas admiráveis obras com as quais a beneficência cristã procura aliviar todos os sofrimentos da alma e do corpo. Nessa entrega, conforme atesta a história eclesiástica, os pregadores do Evangelho chegaram em muitas ocasiões, impulsionados pelo amor de Deus, a sacrificar sua própria vida pela salvação das almas, e com sua morte contribuíram para estender o reino de Cristo, ampliando as fronteiras da verdadeira fé e da fraternidade cristã.

Colaboração dos leigos

Recordai também aos leigos quando, sob vossa direção e a do vosso clero, trabalham em público e em privado para que Jesus Cristo seja conhecido e amado, é que merecem sobretudo serem chamados uma geração escolhida, um sacerdócio real, uma gente santa, um povo adquirido [1Pe 2, 9]. É então quando, estreitamente unidos a Nós e a Cristo, propagando com seu zelo diligente o reino de Cristo, trabalham com maior eficácia para estabelecer a paz geral entre os homens. Porque é o reino de Cristo que estabelece e desenvolve uma certa igualdade de direitos e de dignidade entre os homens, enobrecidos todos com o precioso sangue de Cristo; e os que presidem aos demais, seguindo o exemplo dado pelo próprio Cristo Nosso Senhor, devem, de fato e de direito, ser os administradores dos bens comuns e, portanto, servos de todos os servos de Deus, principalmente dos mais humildes e dos mais pobres.

No entanto, as transformações sociais, que motivaram ou aumentaram a necessidade de recorrer à colaboração dos leigos nas obras do apostolado, criaram aos poucos experimentados perigos novos, tão graves quanto numerosos. Mal acabou a tremenda guerra e a agitação dos partidos políticos veio perturbar a vida das sociedades: apoderou-se do coração e do espírito dos homens um desdobramento de paixões e uma perversão de ideias tão desordenadas, que muito há de se temer que ainda alguns excelentes leigos, e inclusive sacerdotes, enganados por uma falsa aparência de verdade e de bem, fiquem tocados com o funesto contágio do erro.

Porque quantos são os que admitem a doutrina católica acerca da autoridade civil e o dever de obedecê-la, o direito de propriedade, os direitos e deveres dos trabalhadores agrícolas e industriais, as relações do poder religioso com o civil, os direitos da Santa Sé e do Romano Pontífice, os privilégios dos bispos; finalmente, os direitos de Cristo, Criador, Redentor e Senhor sobre todos os homens e sobre todos os povos? No entanto, esses mesmos católicos falam, escrevem e obram como se os ensinamentos e as ordens dadas em tantas ocasiões pelos Sumos Pontífices, especialmente por Leão XIII, Pio X e Bento XV, houvessem perdido seu vigor nativo ou estivessem já completamente obsoletas.

Essa maneira de agir constitui uma espécie de modernismo moral, jurídico e social. Nós o condenamos com a mesma solenidade com que condenamos o modernismo dogmático.

Resumo

É preciso renovar, portanto, os ensinamentos e as ordens as quais nos referimos; é necessário despertar em todas as almas a chama da fé e da caridade divina, que são os únicos meios indispensáveis para a inteligência plena destes ensinamentos e para o cumprimento exato daquelas ordens. Essa renovação há de realizar-se principalmente em tudo que diz respeito à educação da juventude, sobretudo daquela que terá a felicidade de se formar para o sacerdócio, de modo que nesse cataclismo social e nessa perturbação ideológica, não andem flutuando, como disse o Apóstolo: para que não mais sejamos meninos flutuantes e levados ao sabor de todo o vento de doutrina, pela malignidade dos homens,pela astúcia com que induzem ao erro [Ef 4, 14].

Outros problemas

Quando desde esta Sede Apostólica, como desde um alto observatório ou como desde uma elevada cidadela, abarcamos com nosso olhar o horizonte, vemos todavia, veneráveis irmãos, um número demasiado grande de homens que, por ignorância total de Cristo ou por infidelidade à sua doutrina íntegra e autêntica, oupor infidelidade à unidade por Ele querida, não fazem parte todavia deste aprisco [Jo 10, 16], ao qual, no entanto, Deus os destinou. Por isso, participando dos desejos do Pastor eterno, do qual é vigário, o Papa não pode deixar de repetir aquelas mesmas palavras tão breves, mas atualmente cheias de amor e de indulgente ternura: Importa também que eu traga aquelas ovelhas, e de recordar, com o coração transbordado de alegria, aquela predição de Cristo: E ouvirão minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor [ibid.]. Queira Deus, como Lhe suplicamos em nossas orações, unidas às vossas e as de vossos fiéis, que possamos ver realizada quanto antes essa consoladora e infalível profecia do divino Coração.

Um feliz augúrio dessa unidade religiosa foi oferecido nos últimos tempos por aquele extraordinário acontecimento que todos conheceis muito bem; acontecimento inesperado para todos, desagradável para alguns, mas para Nós e para vós gratíssimo: a maioria dos príncipes e os chefes de Estado de quase todas as nações, movidos como que instintivamente por um idêntico desejo de paz, quiseram genuinamente renovar a antiga amizade ou entrar pela primeira vez em relações com a Sé Apostólica. Nós temos o direito de rejubilar com esse fato. Não somente porque realça o prestígio da Igreja, mas também porque constitui a homenagem mais luminosa rendida a seus serviços e põe perante os olhos de todos a virtude maravilhosa que a Igreja possui exclusivamente para assegurar toda a prosperidade, inclusive a material própria, da sociedade humana.

Porquanto, embora a Igreja, em virtude do mandato de Deus, tenha como objeto direto os bens espirituais e eternos, no entanto, pela relação e o encadeamento mútuo de todas as coisas, não é menor sua cooperação com a prosperidade, inclusive a temporal, dos indivíduos e da sociedade, e isso com uma eficácia tão assinalada que não poderia superá-la se a Igreja tivesse como fim exclusivo o desenvolvimento dessa propriedade temporal.

A Igreja não se atribui o direito de intervir sem razão na direção dos assuntos temporais e puramente políticos, mas Ela tem o direito de intervir quando procura evitar que o poder político use a política como pretexto, seja para restringirde qualquer maneira os bens superiores, dos quais depende a salvação eterna das almas; seja para prejudicar os interesses espirituais por meio de leis e decretos injustos, seja para atentar gravemente contra a constituição divina da Igreja, e seja, finalmente, para aviltar os direitos de Deus sobre o Estado.

Portanto, veneráveis irmãos, nós fazemos nossos os pontos de vista e as palavras que nosso predecessor Bento XV, várias vezes por Nós lembrado, pronunciou em sua última alocução de 21 de novembro do ano passado acerca do estabelecimento de mútuas relações entre a Igreja e o Estado [Bento XV, alocução consistorial In hac quidem]; De Nossa parte repetimo-la e confirmamo-la: «Nós não toleramos de modo algum que nos acordos dessegênero se deslize cláusula alguma contrária à dignidade e à liberdade da Igreja, porque em nosso tempo é de primordial importância para a própria prosperidade da vida pública a incolumidade e a integridade da Igreja».

Nesse estado de coisas não é necessário dizer-vos quão profunda é nossa dor por não poder contar a Itália entre as numerosas nações que mantêm relações amistosas com a Sé Apostólica; esta Itália, nossa amada pátria, escolhida por Deus, governador providente do curso da história e da harmonia universal, para colocar em seu seio a sede de seu Vigário na terra e fazer desta augusta cidade, centro em outro tempo de um império imenso, mas limitado dentro de certas fronteiras, a capital do mundo inteiro; Roma, com efeito, sede do supremo Pontificado, que por sua própria natureza transcende as fronteiras de todas as raças e nações, abraça em si mesma todas as nações e todos os povos. Ora, a origem e a natureza divina deste principado, por uma parte, e por outra o direito imprescindível de todos os fiéis, espalhados pelo mundo inteiro, exigem que esse sagrado principado não dependa de potência humana alguma nem de lei alguma (embora esta prometa a liberdade, com certas garantias, do Romano Pontífice), senão que seja e apareça totalmente independente em seus direitos e em sua soberania.

Mas as garantias de liberdade com as quais a divina Providência, dona e árbitra das contingências humanas, havia fortalecido a autoridade do Romano Pontífice, não só sem causar-lhe dano, mas em vez disso, com sumo proveito da própria Itália; as garantias que durante tantos séculos haviam respondido perfeitamente ao desígnio divino de salvaguardar tal liberdade, e as quais até agora nem a divina Providência indicou nem os projetos dos homens encontraram compensação conveniente; essas garantias, aniquiladas por uma hostilidade violenta e violadas até agora, colocaram o Romano Pontífice em uma indigna situação que enche continuamente de tristeza as almas de todos os fiéis do mundo inteiro. Portanto, Nós, herdeiros das ideias e dos deveres de nossos predecessores, investidos com a mesma autoridade, a única que é competente para resolver uma questão tão transcendental; movidos não por uma vã ambição terrena, cujo menor influxo nos faria ruborescer, senão pelo pensamento de nossa morte e pela recordação da severa conta que teremos de prestar ao Juiz divino, de acordo com a santidade de nosso dever, renovamos aqui as reivindicações que nossos predecessores formularam para defender os direitos e a dignidade da Sé Apostólica.

Nada tem a temer a Itália da parte da Sé Apostólica, porque todo Romano Pontífice obrará sempre de tal maneira que possa dizer sinceramente com o profeta: Meus pensamentos são de paz, e não de aflição [Jer. 29, 11]; pensamentos de paz verdadeira e, portanto, unida sempre à justiça, de modo que com razão se possa afirmar que a justiça e a paz se beijarão [Sal. 84(85), 11]. À onipotência e misericórdia de Deus corresponde fazer que amanheça esse dia tão fecundo em todo tipo de bens tanto para a instauração do reino de Cristo como para a pacificação da Itália e do mundo. Mas, para que não sejam frustrados esses bens, é necessária a diligente cooperação de todos os homens de boa vontade.

Para que essa universal pacificação seja concedida quanto antes aos homens, exortamos a todos os cristãos para que incessantemente unam suas ferventes orações com as nossas, especialmente nestes dias do Natal do Senhor, Rei pacífico, cuja entrada no mundo foi saudada pelas milícias angélicas com aquele cântico novo: Gloria a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens de boa vontade [Lc. 2, 14].

Queremos, enfim, que seja como penhor desta paz, veneráveis irmãos, nossa bênção apostólica que, levando todo tipo de felicidade a cada um dos membros do vosso clero e de vossa grei, às nações e às famílias cristãs, produza todo tipo de prosperidade aos vivos e o repouso na eternidade feliz aos defuntos; bênção que a vós, a vosso clero e a vossos fiéis, como testemunho de nossa benevolência, damos de todo coração.

Dado em Roma, junto a São Pedro, em 23 de dezembro de 1922, ano primeiro do nosso pontificado.