Apresentamos um Comentário do Padre Peter R. Scott – FSSPX, que dividimos em 4 partes para publicação, sobre o Naturalismo da Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae de João Paulo II, publicada em 16 de outubro de 2002.
Fonte: SSPX Asia – Tradução: Dominus Est
Naturalismo e o Rosário
Não deve existir nada que possa alegrar tanto o coração de um católico tradicional como uma carta apostólica de um papa sobre o Rosário. O que poderia ser mais propício para a renovação da devoção à Nossa Senhora? O que de mais poderoso poderia superar a impiedade dos nossos tempos? O que, em última análise, poderia estar mais de acordo com os pedidos de Nossa Senhora de Fátima sobre a consagração e o triunfo do Imaculado Coração? O que de fato poderia ser mais efetivo como resposta ao ecumenismo, à liberdade religiosa e aos outros erros do Concílio Vaticano II, incompatíveis como são com a verdadeira devoção à Nossa Senhora?
Entretanto, nosso entusiasmo inicial acerca de um pronunciamento papal sobre o Rosário se esvaece tão logo estudamos a carta e percebemos que ela é uma tentativa velada de promover o naturalismo da revolução pós-conciliar, e isso vem disfarçado no tratamento dado à mais tradicional devoção que os católicos conhecem. Como isso poderia ser possível? Como poderia um papa errar recomendando o Rosário? Como poderia Nossa Senhora abandonar aqueles que continuam a recitar suas Ave-Maria? Como poderia um católico criticar um papa que diz que o Rosário é “sua oração predileta”, “Oração maravilhosa! Maravilhosa na simplicidade e na profundidade” (§2)?
A resposta torna-se clara através da análise daquilo que o papa diz e daquilo que ele NÃO diz, e isso comparado às várias encíclicas do Papa Leão XIII sobre o Rosário. Como João Paulo II evocou e louvou a primeira encíclica de Leão XIII sobre o Rosário de 1 de setembro de 1883, a qual admitiu que seu predecessor indicou o Rosário “como instrumento espiritual eficaz contra os males da sociedade” (§2), conclui-se que ele está evidentemente ciente dos ensinamentos do seu predecessor. Consequentemente, qualquer persistente omissão em reiterar o mesmo ensinamento deve ser considerada um ato deliberado que demonstra com exatidão as intenções de João Paulo II a respeito do Rosário e de Nossa Senhora.
O propósito da Carta Apostólica
É verdade que o Papa propõe essa carta como uma resposta à debilitação de valor que o Rosário sofre no mundo moderno (§ 4), pois o mundo moderno avilta o Rosário ao considerá-lo oposto à liturgia e não-ecumênico. Entretanto, um olhar passageiro na carta basta para demonstrar que há uma outra razão mais profunda para sua existência — e consequentemente uma razão mais profunda para a recitação do próprio Rosário. A carta é para ser, conforme se explica (§3), um complemento mariano à Carta Apostólica de 2001 sobre o novo milênio (Novo Millennio Ineunte); e isso significa que é para ser um complemento do novo espírito de compreensão, diálogo, entendimento e paz que se introduziu junto com o advento do novo milênio. Outra evidência disso está quando se apresenta o documento como uma celebração do 40º aniversário de abertura da “grande graça” do Vaticano II em 11 de outubro de 1962.
Assim como o próprio Vaticano II, esse documento tem o propósito de mostrar como, através do Rosário, a Igreja pode viver sua unidade com o mundo e reconhecer os valores positivos dele. Com efeito, não há nesse documento qualquer menção do lamentável estado espiritual do mundo e de maneira alguma essa carta tem intenção de responder ao mal, à decadência e à escassez de espiritualidade do nosso tempo. Nesse ponto, a carta contrasta diretamente com as encíclicas anuais do Papa Leão XIII sobre o Rosário, pois todas elas insistem na necessidade do Rosário em vista das calamidades que assolam o mundo, em particular as calamidades espirituais que são os ataques contra a Igreja, a perda da Fé, além da impiedade e da imoralidade na vida pública. Para João Paulo II é efetivamente o contrário: a carta não foi escrita por causa do óbvio abandono moderno da espiritualidade, mas sim como uma resposta ao surgimento de “uma nova exigência de espiritualidade, solicitada inclusive pela influência de outras religiões” (§5). Essa carta considera a si mesma e ao próprio Rosário como uma resposta positiva ao pluralismo religioso moderno, e de maneira alguma ela se apresenta como uma resposta ao mal, ou uma defesa da Igreja contra a falsidade herética ou contra a imoralidade.
Algumas citações do Papa Leão XIII ilustram o quão radicalmente oposta essa visão é do ensino tradicional da Igreja. Com efeito, Leão XIII afirma que escreveu a Carta Encíclica Supremi apostolatus officio impelido pelo dever de proteger a Igreja — um dever tão mais urgente conforme a Igreja sofre maiores calamidades —, pois é dessas calamidades que surge a necessidade de existir um remédio poderoso: “Para este fim, nada consideramos mais eficaz e mais poderoso do que tornar-nos propícia, pela devoção e pela piedade, a grande Mãe de Deus, a Virgem Maria. De fato, mediadora, junto a Deus, da nossa paz, e dispensadora das graças celestes, ela está sentada no Céu no mais alto trono de poder e de glória, para conceder o auxílio do seu patrocínio aos homens, que, entre tantas penas e tantas lutas, fadigosamente caminham para a eterna pátria”. Invocando as vitórias do Rosário contra os hereges albigenses, turcos e muçulmanos, Leão XIII assinala: “Mas esta ardente e confiante piedade para com a augusta Rainha do Céu foi posta em mais clara luz quando a violência dos erros largamente difundidos, ou a transbordante corrupção dos costumes, ou o assalto de inimigos poderosos, pareceram pôr em perigo a Igreja militante de Deus”. Ademais, após falar do exemplo de São Domingos, e assinalar que estamos de igual maneira necessitados da ajuda divina, ele afirmou: “Iluminado do alto, ele viu claramente que para os males do seu tempo não havia remédio mais eficaz do que reconduzir os homens a Cristo, que é “caminho, verdade e vida”, mediante a freqüente meditação da Redenção por Ele operada; e interpor junto a Deus a intercessão dessa Virgem a quem foi concedido “aniquilar todas as heresias”. Aqui vemos razões católicas, razões sobrenaturais e razões de fé para a promoção do Santo Rosário.
O erro cristocêntrico e evangélico
Desde o começo da sua carta, João Paulo II descreve as duas características da “Oração evangélica” do Rosário, ou seja, que ela é cristológica e evangélica (ver §1, 2 e 18). Com efeito, toda essa discussão sobre o Rosário tem como fim trazer Cristo à tona: “para dele extrair algumas dimensões do Rosário que definem melhor o seu carácter próprio de contemplação cristológica” (§12). Num primeiro momento pode haver o ensejo de acreditar que isso é perfeitamente ortodoxo. Porquanto, claramente não pode haver nada em Maria que seja oposto a Cristo, nem pode haver qualquer coisa nela que não seja realmente cristológico ou que não leve ao seu divino Filho. Da mesma forma, não pode haver nada nela que não esteja em harmonia com o Evangelho, cujo espírito Maria entendeu mais do que qualquer um.
Entretanto, a deliberada redução da devoção mariana à essas duas considerações (cristológica e evangélica) tem como fim eliminar de maneira consistente da devoção mariana tudo aquilo que seja mariano e especificamente católico. Mesmo porque, considerar somente e obsessivamente em Maria apenas o aspecto de encaminhamento para Cristo é, em última análise, tirar dela todas suas virtudes, prerrogativas e honra, e deixar praticamente nada dela própria que possa ser encaminhado para Cristo. Além disso, limitar o mistério do Rosário às afirmações contidas no Evangelho é eliminar completamente o papel da Tradição na transmissão da Fé Católica e da piedade. Exclui-se a Tradição apostólica que nos ensina as grandezas, virtudes e prerrogativas de Nossa Senhora e exclui-se também a Tradição eclesiástica viva da Igreja, da qual antes de tudo nos transmitiu o Rosário, e que tão claramente demonstra sua eficácia e poder. Não obstante esses tesouros da Tradição, a carta apostólica deliberadamente limita ao Evangelho o mistério do Rosário.
O único papel de Maria descrito nessa carta é contemplar a face de Cristo (cf. §1 e 10), e a escola de Maria, na qual desejamos aprender, existe apenas na medida em que ela nos mostra a beleza da contemplação (cf. §1 e 12). Essa carta não atribui a Maria qualquer dignidade especial, nem direitos, nem prerrogativas, nem virtudes, nem poder ou autoridade própria; com efeito, nada nessa carta manifesta o fato de que ela é a Rainha do Céu e da Terra. A única referência ao seu poder é a relutante admissão do seu poder de suplicação (§16), e isso é apenas uma sombra da autoridade e grandeza da Santíssima Virgem se comparado ao que foi descrito pelos papas pré-conciliares. O resultado final é reduzir Nossa Senhora à sua contemplação de Cristo, uma visão débil que é completamente diferente daquela da mulher que esmaga todas heresias sob seus pés. A confiança total em Nossa Senhora não é mais possível sob tal óptica, dado que toda atenção está agora direcionada à Cristo.
Atitude totalmente diferente é a de São Luís Maria Grignon de Montfort, que entendeu melhor que ninguém como tudo em Maria é encaminhado ao seu Divino Filho e Sabedoria Eterna, mas não obstante, assim como São Bernardo, ele jamais cessava de louvar Nossa Senhora, e continuamente exaltava as virtudes da Fé, humildade, mortificação e caridade da Virgem. O “cristocentrismo” dele não afastou Nossa Senhora para fora do destaque. Ao contrário: ele disse que quanto mais ela é honrada, mais Cristo é honrado. Numa de suas várias afirmações no Tratado da Verdadeira Devoção diz: “Deus quer, finalmente, que sua Mãe Santíssima seja agora mais conhecida, mais amada, mais honrada, como jamais o foi”.
É verdade que a Carta Apostólica menciona a consagração a Jesus por meio de Maria conforme o método de São Luís Maria Grignon de Montfort, e cita do Tratado que quanto mais uma alma é consagrada à Maria, mais ela será consagrada a Jesus Cristo (§15). Entretanto, isso é claramente um palavreado se considerarmos o fato de que na carta não se atribui à Nossa Senhora qualquer papel, função, poder, virtude, honra ou graça própria, mas somente a simples contemplação. Sob o pressuposto (ademais perfeitamente verdadeiro) de que tudo em Nossa Senhora é subordinado a Cristo, tudo que diz respeito à ela foi silenciado. Consequentemente, nessa carta não sobra efetivamente nada em Nossa Senhora que nos leve ou atraia a Cristo senão seu exemplo de contemplação.
É por essa razão que o Papa prontamente responde à acusação de que o Rosário não é ecumênico. Mas ele não responde da maneira que deveria se imaginar, que seria admitindo que de fato o Rosário não é ecumênico, pois nele estão contidos todos ensinamentos e práticas que os protestantes se opõem mais implacavelmente. Muito pelo contrário, ele afirma que, entendendo no sentido cristológico ao qual ele fala tão frequentemente, o Rosário pode ser revitalizado de modo a tronar-se aceitável aos acatólicos: “Se adequadamente compreendido, o Rosário é certamente uma ajuda, não um obstáculo, para o ecumenismo!” (§4). Afirmação assaz espantosa que revela que a primeiríssima intenção dele é empreender uma transformação radical no Rosário e depois remover dele tudo que seja especificamente mariano e transmitido pela tradição eclesiástica — as duas coisas que os protestantes detestam fervorosamente.
São Luís Maria Grignon de Montfort faz uma afirmação muito pertinente em seu Tratado: “O sinal mais infalível e indubitável para distinguir um herege, um cismático, um réprobo, de um predestinado, é que o herege e o réprobo ostentam desprezo e indiferença pela Santíssima Virgem e buscam por suas palavras e exemplos, abertamente e às escondidas, às vezes sob belos pretextos, diminuir e amesquinhar o culto e o amor a Maria”. A carta apostólica certamente não trata Nossa Senhora com desprezo e indiferença, todavia ela faz o que está ao seu alcance (não de maneira franca, mas sorrateira) para levar toda veneração e amor para longe da Santíssima Virgem Maria e para mais perto do seu Filho; e isso sob os especiosos pretextos da cristologia e de estar seguindo o Evangelho.
O resultado final da carta sobre o Rosário será a indiferença à Nossa Senhora e eventualmente ao próprio Rosário, pois a carta rejeita efetivamente tanto a Tradição apostólica (ou seja, é somente Escritura ou sola scriptura) como a tradição eclesiástica (ou seja, especificamente a devoção mariana).
Continua…..