ESTUDO SOBRE O NATURALISMO DOS “MISTÉRIOS LUMINOSOS” DO PAPA JOÃO PAULO II – PARTE 2/4

Fonte: SSPX Asia – Tradução: Dominus Est

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Naturalismo, o defeito primordial da carta

Há um espírito que não se menciona explicitamente na carta, mas toda ela é permeada por ele: é o naturalismo. Embora lá se diga que o Rosário é uma “contemplação salutar” (§13), não há qualquer menção sobre como ele ajuda na salvação, isto é, como ele pode dar a graça divina, inspirar mortificação e sacrifício, elevar as almas à verdade sobrenatural e eterna e ao amor sobrenatural a Deus. Eliminar essa clara distinção entre as ordens natural e sobrenatural — e eliminar a menção de qualquer coisa especificamente sobrenatural — é o erro modernista de Henri de Lubac que o Papa Pio XII condenou em sua encíclica Humani generis.

A evidência de que o erro naturalista permeia a carta Rosarium Virgnis Mariae reside no fato de que toda afirmação lá feita acerca de meditação e Rosário poderiam ser tanto interpretada facilmente em termos de meditação natural (isto é, de uma experiência psicológica) quanto em termos de meditação sobrenatural. Citemos alguns exemplos disso a seguir.

Afirma-se que “O contemplar de Maria é, antes de mais, um recordar” (§13); e que o “Rosário” de Maria consistia nas lembranças que tinha de seu Filho (§11); e que essa “oração marcadamente contemplativa” “por sua natureza (…) requer um ritmo tranquilo e uma certa demora a pensar” (§12).

A meditação sobrenatural vai muito além da pura lembrança, pois ela preenche a alma com a convicção e o desejo de amar e se sacrificar pelo amado. Ademais, meditação sobrenatural não é produto de um mantra ou produto da maneira em que alguma oração particular é dita — como são as meditações naturais da yoga e de religiões orientais.

Afirma-se logo adiante que “O Rosário é também um itinerário de anúncio e aprofundamento, no qual o mistério de Cristo é continuamente oferecido aos diversos níveis da experiência cristã” (§17).

Essa noção de diversificação de níveis de experiência é certamente uma expressão da noção modernista de imanência condenada por São Pio X, ou seja, trata-se da noção de que a religião e o conhecimento da verdade religiosa são uma experiência interior e subjetiva que pode existir em vários níveis. Para o católico [verdadeiro], porém, há simplesmente a verdade objetiva, e a meditação permite que disponhamos nossas almas, nossos atos diários e nossas vidas à essa verdade objetiva.

Outras afirmações heterodoxas e aparentemente confusas têm uma explicação modernista, como no caso dos eventos do Rosário — reduzidos evidentemente aos eventos relatados na Bíblia — como “o ‘hoje’ da salvação” (§13), que é (na concepção da carta) uma re-presentação da mesma maneira que o é a Missa. O símbolo lembrado é simplesmente a realidade de hoje, pois a realidade é, doravante, uma coisa subjetiva ali. Da mesma forma, a estranha expressão “[Maria é] o perfeito ícone da maternidade da Igreja”, significando que ela é o símbolo ou imagem pelo qual a maternidade da Igreja nos é apresentada subjetivamente. Entretanto, abordagens sobre como Maria participa objetivamente na obra da nossa redenção, e como ela é verdadeiramente a Mãe da Divina Graça e medianeira de todas as graças estão totalmente fora da perspectiva subjetivista e naturalista do autor dessa carta apostólica.

O humanismo é também uma das principais manifestações desse naturalismo. Ele está especialmente manifesto no parágrafo 25, onde se aborda a “implicação antropológica do Rosário”. Nisso o Papa quer dizer que o Rosário proporciona um grande entendimento da natureza do homem — e esse é também o propósito da antropologia. E ele afirma isso explicitamente ao dizer que o Rosário “marca o ritmo da vida humana” revelando em Cristo “a verdade sobre o homem”, e assim “o mistério do homem (…) esclarece verdadeiramente” (§25). A citação do famoso parágrafo 22 da constituição Gaudium et spes, sobre a Igreja no mundo moderno, escrita por Paulo VI, nos dá a chave para interpretar essa passagem. Eis o trecho da constituição do Concílio Vaticano II ao qual a carta alude: “Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. (…) Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo (…) Porque, pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. (…) Tal é, e tão grande, o mistério do homem”.

Esse texto verdadeiramente horripilante é a base da tese de Redenção Universal do Papa, tão bem demonstrada pelo Padre Dormann na série de livros sobre a jornada teológica do Papa João Paulo II, desde o Concílio Vaticano II até ao encontro inter-religioso de Assis. Ao unir a natureza humana a Si mesmo, Cristo teria santificado toda natureza humana, ou seja, todo homem (saiba ele ou não, queira ele ou não). Cristo eleva a natureza humana a Si mesmo, e então segue-se nessa tese que o homem só pode conhecer sua natureza humana (a manifestação do amor do Pai) através de Cristo. A distinção entre natureza e graça é totalmente obscurecida, e é por isso que aí todos os homens podem ser salvos. Sendo assim, toda a questão da graça é irrelevante em tal perspectiva. E é essa perspectiva que permite o Papa concluir: “Pode-se dizer, portanto, que cada mistério do Rosário, bem meditado, ilumina o mistério do homem” (§25). Nessa perspectiva, Cristo não eleva a natureza pela graça, Ele simplesmente manifesta essa natureza ao homem ao unir-se a ela. Essa é a razão pela qual as meditações sobre a vida de Cristo marcam “o ritmo da vida humana”, ou seja, como elas nos ajudam a entender o significado e a natureza da vida humana (e não mais a participação na vida divina que Cristo concedeu a nós). A distorção do ensinamento católico é sutil mas radical, e destrói toda a realidade da vida interior da graça.

Os três parágrafos seguintes da Carta Apostólica descrevem as consequências de tão profundo naturalismo. A primeira consequência é que se passa a considerar o Rosário como um procedimento ou processo psicológico, isto é, uma técnica natural que entra em contato com a “experiência universal do amor humano” (§26). Observe a universalidade. Ela indica que está se falando sobre o amor natural que é comum a todo homem. É por essa razão que o Papa não hesita em afirmar que “para compreender o Rosário, é preciso entrar na dinâmica psicológica típica do amor” (§26). Isso significa que se o Rosário não for entendido como um processo da mente humana ou psique, então ele não foi entendido de maneira alguma. Ademais, isso também significa que todos aqueles que consideram o Rosário absolutamente sobrenatural (pelas graças que dele se obtém tanto para nós quanto para o próximo) não conseguem entendê-lo! Uma pena para São Domingos e São Pio V.

A segunda consequência é que o Rosário passa a ser apenas um dentre muitos métodos de meditação, um método não diferente daqueles que usam o ritmo da respiração para estimular a meditação (§27); um método que, como a liturgia, “normalmente passa pelo envolvimento total da pessoa, na sua complexa realidade psico-física e relacional” (§27). Novamente encontramos outra expressão completamente naturalista, pois o Rosário tornou-se aí um método que pode ser reduzido à experiência psicológica da mente, à experiência física do corpo, e à experiência das relações com outras pessoas. Assim, o papel de Deus fica relegado à ordem natural, pois enquanto autor da natureza, é por Ele que somos levados às experiências humanas.

Entretanto, a mais chocante das consequências é a terceira, pois ela não apenas afirma que o Rosário “trata-se simplesmente de um método para contemplar”, mas que o Rosário é apenas mais um método de meditação, assim como aqueles outros das religiões não-cristãs; e assim como esses outros métodos, ajuda a pessoa a atingir um alto nível de concentração espiritual por meio do uso de meras técnicas naturais. Permita-me citar a passagem. Após afirmar novamente que a carta é uma resposta à “renovada exigência de meditação” feita nos nossos dias pelas religiões não-cristãs, ele afirma que “Apesar de (as formas não cristãs de oração) possuírem elementos positivos (outra falsidade do Vaticano II) e às vezes compatíveis com a experiência cristã, todavia escondem frequentemente um fundo ideológico inaceitável. Em tais experiências, é muito comum aparecer uma metodologia que, tendo por objectivo uma alta concentração espiritual, recorre a técnicas repetitivas e simbólicas de carácter psico-físico. O Rosário coloca-se neste quadro universal da fenomenologia religiosa…” (§28; ênfase nossa).

O fundo ideológico da experiência religiosa não-cristã pode ser inaceitável, mas a prática dela certamente não é inaceitável para o Papa. Sendo assim, o Rosário passa a ser apenas um desses fenômenos religiosos, pois ele foi adaptado aos católicos por ter premissas católicas, embora não seja essencialmente ou fundamentalmente diferente das experiências religiosas místico-meditativas dos pagãos orientais. Nesse parágrafo reside todo o empreendimento de destruição do Rosário como fonte de graça e bênçãos de Deus. Todas as boas coisas ditas sobre Nossa Senhora e o Rosário nessa carta são destruídas por esse parágrafo que reduz Nossa Senhora e o Rosário ao “quadro universal da fenomenologia religiosa”. Esse é o completo indiferentismo e relativismo em relação à religião, e uma implícita negação da doutrina católica que enuncia que “Fora da Igreja não há salvação”.

O Papa segue e afirma que, como o Rosário é apenas mais um método, não há razão para que ele não possa ser de fato “melhorado” ou mudado, e é precisamente o que ele pretende fazer na segunda parte da carta apostólica. Os novos “mistérios luminosos” são uma parte do melhoramento do método. A segunda conclusão é que as contas do Rosário são úteis na medida em que elas nos levam a tal “método de contemplação”, e que se a pessoa recitar o Rosário sem essa experiência, então as contas devem acabar por serem vistas “quase como um amuleto ou objecto mágico”. Isso relega a recitação do Rosário feita por um homem comum a um nível de superstição inútil, além de desvalorizar o proveito espiritual que é obtido do uso piedoso dos artigos religiosos abençoados ou sacramentais. Novamente, em nome da promoção do Rosário, tudo é feito para destruir o Rosário tal como os católicos sempre o conheceram.

Continua….