ESTUDO SOBRE O NATURALISMO DOS “MISTÉRIOS LUMINOSOS” DO PAPA JOÃO PAULO II – PARTE 4/4

Fonte: SSPX Asia – Tradução: Dominus Est 

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Frutos do Rosário

Se for necessária uma última prova sobre todo esse espírito naturalista da carta apostólica, ele encontra-se na discussão sobre os frutos do Rosário. Há, antes de tudo, uma reinterpretação humanista das graças a serem recebidas pela meditação dos mistérios, especialmente nos mistérios dolorosos e gloriosos. Tradicionalmente, meditamos os mistérios dolorosos em reparação aos nossos pecados e aos pecados do mundo, para que assim cresçamos em contrição e, ao sermos purificados das desordens da nossa sensualidade e orgulho, possamos carregar nossa cruz. Todavia, de acordo com a Carta Apostólica de João Paulo II, os mistérios dolorosos são simplesmente “o ápice da revelação do amor e a fonte da nossa salvação” que revela “o mesmo sentido do homem” através da “força regeneradora” do “amor de Deus” (§22). Essa é uma consequência direta da nova teologia naturalista do Mistério Pascal, que diz que não há necessidade de penitência, sacrifício e satisfação dos pecados. O sofrimento humano de Cristo simplesmente nos dá um maior conhecimento da humanidade em comum (isto é, do próprio “sentido do homem”). Visto assim, esse humanismo é em si mesmo uma revelação do amor de Deus, pois Cristo é a melhor manifestação humana desse amor. Pode-se facilmente ver que nenhum fruto sobrenatural pode vir dessa nebulosa experiência, pois ela não nos atrai ao paraíso, nem nos inspira a desprezar as coisas da terra e abraçar nossa cruz.

A mesma coisa pode se dizer das graças que se obtêm dos mistérios gloriosos. Tradicionalmente, eles nos dão as virtudes teologais (Fé, Esperança e Caridade) e nos dão um fervente desejo pelo Paraíso, além da humilde devoção e confiança na Santíssima Virgem Maria. Já na Carta Apostólica é dito que nos mistérios gloriosos “o cristão descobre novamente as razões da própria fé” (§23) — algo que não faz sentido algum para aqueles que acreditam que a Fé é um dom gratuito de Deus aceito por causa da autoridade D’Ele e porque Ele não pode enganar nem ser enganado. Apenas uma fé [puramente] humana procuraria confirmações desse tipo. Ademais, o Papa João Paulo II resume os frutos dos mistérios gloriosos dizendo que eles “alimentam nos crentes a esperança da meta escatológica, para onde caminham como membros do Povo de Deus peregrino na história” (§23). Essa estranha expressão indica que o propósito desses mistérios é ajudar crentes de todos os tipos (pois a ambígua expressão “o povo de Deus” é deliberadamente estendida aos que não são católicos), e ajudá-los na “história” — ou seja, nesta terra — em que a própria Igreja é uma peregrina que não sabe para onde os tempos modernos e as mudanças a levam, embora Ela sempre tenha uma mente aberta. A escatologia é o estudo do destino final, mas aqui o termo “meta escatológica” é usado em sentido ambíguo, de modo que ele muito bem poderia se referir ao destino final do povo de Deus na busca da paz e justiça terrenas, assim como na busca de uma vida perene. Novamente a perspectiva naturalista torna a verdadeira graça ausente.

Os frutos do Rosário são expressamente discutidos no quadragésimo parágrafo da Carta Apostólica. Lá afirma-se que “o Rosário é, por natureza, uma oração orientada para a paz”, o que caracteriza uma expressão ambígua. Essa paz é a paz da reta espada que pode tanto ferir como defender ou é a paz do indiferentismo (chamada por Pio XII de “irenismo”, ou paz a qualquer custo)? A resposta encontra-se ao ler a respeito dos efeitos que João Paulo II afirma advirem dessa paz: “Como seria possível fixar nos mistérios gozosos (…) sem sentir o desejo de acolher, defender e promover a vida, preocupando-se com o sofrimento das crianças nas diversas partes do mundo? (…) sem se empenhar a testemunhar as suas “bem-aventuranças” (de Cristo) na vida diária? (…) sem sentir a necessidade de se fazer seu “cireneu” em cada irmão abatido pela dor ou esmagado pelo desespero (…) sem desejar tornar este mundo mais belo, mais justo, mais conforme ao desígnio de Deus?” (Supostamente, esta última parte do trecho é para ser o fruto dos mistérios gloriosos!). Está óbvio que a paz que se fala é a paz terrena, um mundo justo, e que ela nada tem a ver com a paz sobrenatural que serve de preparação para a eternidade. Esse naturalismo é também expresso pelo novo simbolismo que o Papa propõe para as contas do Rosário: “É bom alargar o significado simbólico do terço também à nossa relação recíproca, recordando através dele o vínculo de comunhão e fraternidade que a todos nos une em Cristo” (§36), e o fato de que as indulgências agora são alegadamente concedidas “para encorajar esta perspectiva eclesial do Rosário” (§37), e não mais para obter, antes de tudo, a remissão da punição temporal por conta do pecado — remissão essa que faz abrir as portas do paraíso.

Mas alguém pode dizer que nessa carta o papa recomenda o Rosário em família e repete o adágio “A família que reza unida, permanece unida” (§41). Estará segura essa pessoa de que isso não é liberalismo? Leia então quando o Papa fala dos frutos que garante a família que reza o Rosário: “os seus diversos membros (…) recuperam também a capacidade de se olharem sempre de novo olhos nos olhos para comunicarem, solidarizarem-se, perdoarem-se mutuamente, recomeçarem com um pacto de amor renovado pelo Espírito de Deus” (§41), assim como o “crescimento dos filhos” (§42) e para vencer “a distância cultural entre as gerações” (§42). Todas essas expressões poderiam ser facilmente usadas por acatólicos em suas experiências comunais de família. Não que em si essas coisas sejam más, mas estão num plano puramente natural. Assim, para fazer as crianças gostarem do Rosário, o Papa não nos propõe disciplina e mortificação, mas as novidades que servem de “atrativos simbólicos e práticos” (§42).

Quão diferente é a concepção de frutos do Rosário defendida pelo Papa Leão XII em sua encíclica Jucunda semper de 8 de setembro de 1894: “A virtude que o Rosário tem de inspirar a confiança em quem o reza, possui-a também em mover à piedade para conosco o coração da Virgem” (§10). Eis um fruto completamente sobrenatural: bênçãos do Céu por meio de Nossa Senhora. Leão XII também nos diz que podemos esperar ver dos nossos Rosários o duplo aspecto do fruto do Rosário tão comumente visto na história da Igreja: “a defesa da santa fé contra os nefastos ataques dos hereges, quer no repor em honra aquelas virtudes que haviam sido sufocadas pela corrupção do mundo. Experimentou-a por uma série ininterrupta de benefícios, privados e públicos, cuja lembrança por toda parte foi imortalizada até mesmo com insignes instituições e monumentos” (§1). Novamente, é a Fé sobrenatural e a virtude em oposição ao espírito do mundo.

Obrigação do Rosário

Como João Paulo II considera o Rosário apenas mais um método de oração, ele obviamente não pode torná-lo obrigatório. Com efeito, ele reconhece claramente que não tem intenção de impor qualquer coisa aos indivíduos ou igrejas particulares (§3). Qual então é a consequência prática dessa carta? Será o aumento da frequência na recitação do Rosário? Claramente não, e se a carta for de fato lida e entendida, ela diminuirá o que resta de fervor ao rosário na igreja pós-conciliar.

Quão diferente foi a conclusão dada pelo Papa Leão XIII no final da sua primeira encíclica sobre o Rosário, Supremi apostolatus officio em 1883: “Estabelecemos, pois, e ordenamos que, em todo o mundo católico, a solenidade de Nossa Senhora do Rosário seja este ano celebrada com particular devoção e com esplendor de culto”; e ele efetivamente tornou obrigatório que se recitasse todos os dias no mês de outubro cinco dezenas do Rosário e a Ladainha de Nossa Senhora antes que fosse exposto o Santíssimo Sacramento. Ele continua: “pelo zelo que tendes da honra de Maria e da salvação da sociedade humana, esforçai-vos por alimentar a devoção e por aumentar a confiança do povo para com a grande Virgem”.

Então não podemos deixar de concluir que a Carta Apostólica de João Paulo II foi promulgada mais para promover o ecumenismo, a solidariedade religiosa e comunal, o diálogo com os não-cristãos, a aceitação de métodos de meditação não-cristãos, e o novo conceito de Mistério Pascal, do que para verdadeiramente promover a recitação do Rosário tal como o conhecemos. O idealismo das meditações naturalistas, a introdução de novos mistérios luminosos que nada têm a ver com a Redenção, a confusão deliberada acarretada pelas mudanças propostas, e a recusa de qualquer medida concreta para de fato promover a recitação do Rosário, garantiram que essa carta se torne um triste — porém importante — passo na direção da diminuição da devoção mariana e do Rosário na igreja pós-conciliar.