FRANCISCO E O MAGISTÉRIO “NÃO-NORMATIVO”

Reveja a bênção especial do Papa em meio à pandemia do coronavírus

Por Dardo Juan Calderón

Fonte: Adelante la Fe – Tradução: Dominus Est

Há poucos dias, no encerramento do Sínodo sobre a “sandice”dade, Francisco declarou que as suas conclusões constituem o Magistério Ordinário do Bispo de Roma. Esperava-se que, após esta declaração formal, se dissesse: e deve ser aceito e aplicado por todos, urbi et orbi”. Não, de modo algum. Foi imediatamente declarado como um magistério (com letra minúscula) NÃO-NORMATIVO. Ou seja, que ninguém se sinta obrigado a nada, são opiniões, teses propostas à formulação de antíteses e à espera de sínteses, tudo dentro do caminho da Evolução do Dogma, do “Povo Peregrino” a que Bento XVI aludiu (ele o cita) que se renova permanentemente, mas na “continuidade” proporcionada pela manutenção do método da filosofia alemã (ainda há quem acredite que a “continuidade” de Ratzinger se refere ao conteúdo da tradição. Longe disso!) 

Muitos salientaram que isto expressa, sem mais delongas, que a origem desse magistério já não é aquela que foi expressa dogmaticamente pelo Concílio Vaticano I e, antes ainda, da tradição de 2000 anos da Igreja, do Espírito Santo ao Papa (“Pedro, tu o dizes porque o Espírito te revelou“), mas passa pelo Povo e é expresso no Sínodo (uma espécie de Parlamento), sendo a função do Bispo de Roma representar essa Vontade Popular. Isto é mais antigo que urinar nos portões, não vamos nos alongar, e já foi dito, não tão claramente, na linguagem confusa do modernismo que conquistou os documentos do Concílio Vaticano II e as mentes dos Papas conciliares. Uma questão que muitos não quiseram ou não puderam ver e que faz com que Francisco pareça um total inovador face aos anteriores “mais conservadores”; quando ele apenas evidencia em linguagem clara o que a “nouvelle theologie” camuflou para evitar a condenação quando ainda havia alguns Cardeais com Fé.

Mas destaquemos a grande diferença: o pensamento tradicional afirmava com precisão, que o poder vinha de Deus para o Rei e que o Magistério era ditado pelo Espírito Santo ao Papa.  E essa nova doutrina não é pronunciada de forma concisa, não se obriga a ser admitida, ela é NÃO-NORMATIVA.

Creio que Francisco traz com ousadia o que os outros escondiam por trás da ambiguidade. Simplesmente o trabalho de desbaste dos anteriores fez com que a expressão das teorias mais modernas deixasse de ser escandalosa para os ouvidos dos fiéis e pudesse ser expressa descaradamente. Por outro lado, os cristãos comuns, após anos de deformação, desconhecem completamente a ortodoxia católica. O escândalo moral nos aposentos do Vaticano faz com que tudo isto uma discussão bizantina, quando outrora era uma grande heresia.

Mas, o mais engraçado deste assunto é a expressão do NÃO NORMATIVO, pois com ela Francisco nos faz um bem enorme. O que ele nos diz é: “senhores, isto é magistério, mas não é o que antes se considerava magistério, porque na realidade nunca houve magistério “infalível”, somos seres que vivem a aventura do pensamento, agarrados a conclusões provisórias a que, para evitar o caos na imaturidade, damos-lhes um verniz de certeza no ponto da história que o exige. Mas ninguém está em condições de declarar a Verdade Absoluta sobre qualquer assunto. Quando Cristo disse “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”, o que ele quis dizer foi que a verdade está no fim do caminho da vida”, ele na verdade estava concordando com Pilatos no “Qui est véritas?”

Da mesma forma, a sustentação de uma determinada ordem exige a nomeação de um moderador e disciplinador do diálogo (ou dialética), que na nossa organização é chamado de Papa, de quem se espera poder prescindir no estágio evolutivo apropriado, tal como o sacerdócio é quase totalmente dispensado no processo de libertação dos leigos.  Por exemplo, no caso do sacerdócio feminino, embora o Sínodo estivesse pronto para lançá-lo e os líderes tivessem maturidade suficiente para fazê-lo (e talvez também para se declararem abertamente homossexuais), o respeito pelo “método”, a “continuidade”, deve evitar que as vanguardas se tornem patrulhas perdidas e os retardatários, não vendo os guias no horizonte, voltem atrás. Uma espera prudente assegura a “continuidade” das tropas. Faltam muitas meditações esclarecedoras de Pasolini para que o rebanho não se ressinta do corte do que é progresso.

Mas voltemos ao problema que queremos destacar. A maior vitória que o modernismo poderia alcançar é ter gerado a sua crítica. O chamado “magistério conciliar” não se importa se as suas conclusões são criticadas, acolhidas de um ponto ou de outro do espectro parlamentar, de direita ou de esquerda, o seu objetivo era banir a ideia de que havia uma expressão infalível, absoluta e eterna que, sob a ameaça de terríveis anátemas, não pôde ser contestada. Ratzinger, enquanto Prefeito (da CDF), havia sancionado a indisciplina de D. Lefebvre, mas, enquanto Papa, tinha justificado a sua crítica à reforma (não se fala de reforma, mas de desenvolvimento, de evolução, essa “reforma” é nossa).

Muitos não compreendem por que razão se permite que as organizações tradicionalistas continuem a existir; não compreendem que, para todos os efeitos práticos, elas contribuem para a consolidação do estado contestado da discussão permanente.  Ratzinger foi muito claro ao afirmar que essas posições conservadoras serviam como um fardo necessário para conter a debandada do progressismo, e disse-o expressamente. Claro que haverá progressistas que querem ver cabeças a rolar, sempre haverá jacobinos, mas o perigoso é Napoleão.

Há um grande número de “tradicionalistas” que se tornaram funcionais ao “método”. Para atacar o magistério conciliar, ou apenas o magistério de Francisco, atacaram todo o magistério da Igreja. Eu poderia citar nomes, instituições e meios de opinião; colocar aspas em todas as opiniões que são colaboracionistas. Mas todos nós as conhecemos. Aqueles que criticam um ultramontanismo, um clericalismo, um agostinianismo; aqueles que são contra Trento, o Vaticano I, ou que se incomodam com este ou aquele documento de Pio IX, Pio X, Pio XI ou XII. Aqueles que, revendo a reforma litúrgica do Novus Ordo, vêem como criticáveis as reformas anteriores, mesmo as de Pio X, como se o Papa não pudesse fazer reformas sobre as quais não posso opinar, etc., etc., etc.

Para estes tradicionalistas, uma vez demonstrada a existência de um magistério criticável à “luz da tradição”, como o do Concílio ou o de Francisco, eles tomam consciência do fato de que todo o ensinamento pode ser revisto ou criticado à luz do que “eu” entendo por tradição. O pior do modernismo abateu-se sobre eles e o nefasto espírito protestante apoderou-se deles, para concluir contra Lutero, talvez, mas a partir do seu próprio juízo sobre o que é ortodoxia e já não a partir do princípio da autoridade do Magistério da Igreja. O que, na forma, é concordar com Lutero.

Os senhores poderão me dizer que alguns deles continuam a respeitar o que foi declarado dogmaticamente, que é um ensinamento infalível, mas assim que analisam suas considerações veem um enfraquecimento, um reducionismo impressionante, uma espécie de desconfiança metódica contra todo o magistério, curvando-se com relutância perante as declarações formais, mas não sentando-se docilmente e rendido diante do Magistério Eclesial no seu conjunto e no seu Espírito. Do mesmo modo, o homem moderno enfrenta toda a autoridade: política, religiosa, educativa e até familiar. Todos estão à espera de um pai para dar víboras e pedras, salvo que haja prova em contrário; e o critério para discernir essa ortodoxia ou essa heterodoxia é a TRADIÇÃO, mas O QUE DIGO QUE É TRADIÇÃO.  

Finalmente, todos eles, TAL como Francisco, concordam com um ensinamento não normativo e navegam confortavelmente nesse caos de opiniões, pegando aqui isto e ali aquilo, o que lhes apetece daquilo que consideram “tradição”.

Há um grande problema. Um tradicionalista acredita, defende e sustenta que a TRADIÇÃO, que o que é tradição, é definido pelo Magistério da Igreja e não por mim. E se vejo uma contradição entre a tradição e o magistério atual da Igreja, então, EM PRINCÍPIO, sou eu quem deve estar errado. Um tradicionalista acredita, acredita dogmaticamente, que o Magistério atual é a regra próxima da minha fé e que, por princípio, este Magistério define o que é ou não é tradição.

E aí o problema é muito mais delicado do que consideramos inicialmente. Porque o problema principal é confrontar um “magistério” sem romper com o conceito de magistério. Confrontar uma autoridade sem romper com o conceito de autoridade. Mais difícil ainda é confrontar um magistério e uma autoridade baseados no conceito de Magistério e Autoridade.

As soluções fáceis são: 1) em geral e como regra ordinária, os magistérios são falíveis e as autoridades são excepcionais e relativas, reduzindo a quase nada a eficácia de um ou de outro, “não me venham exagerar a assistência do Espírito Santo aos Papas, nem invocar doutrinas ultramontanistas que as transformam em absolutismos.” 2) Sedevacantismo; posso opor-me a um tal ensinamento e uma tal autoridade porque não o é, porque é um usurpador.

A segunda saída foi recentemente mencionada nesta revista por Monsenhor Schneider, não nos alongamos e remetemo-lo para ela. Mas a mais perigosa e a mais difundida é a primeira.

A maior parte de nós, que nos “auto proclamamos” como tradicionalistas, entendemos que nos opúnhamos às reformas conciliares porque eram contraditórias com o que tínhamos aprendido com o magistério dos Papas antes do Concílio, tínhamos a tradição de as pôr à prova, mas, como dissemos, uma vez que pusemos os pontífices conciliares (ou apenas Francisco) na peneira, começamos a colocar outros. Não me agrada a reforma litúrgica de 62; nem a de Pio X. Esse barroco espanhol! O de Loyola e a sua influência da Devotio Moderna… humm… o pomposo Pio IX com a sua Monarquia Absoluta e o seu Vaticano I… Trento e o excesso dogmático… e por fim… Santo Tomás e seu reducionista esquema que sufoca a criatividade mais medieval… Como uma construção de dominós caindo, uns atingidos pelos outros. Cataplum! Como Tolkien sabia dizer, “cortaram a árvore para procurar a semente”.

Tiroleses e troianos convergem para o desastre. Como resolver isso? Hum… Para começar, aceitando o problema, aceitando o problema e o desafio. Partindo da vontade de não ceder à tentação da rebelião e acentuando a confiança na Igreja. Mas paremos por aqui. Enquanto não verem a profundidade da encruzilhada em que nos encontramos, não poderão continuar. Porém, dou-vos uma pista, uma ponta do fio que Francisco nos traz hoje.

Devemos obedecer ao que nos dizem os Papas, ao que ensina o Magistério do Bispo de Roma, e a primeira e mais fácil de compreender é que há coisas que são ditas com total e absoluta certeza, e para as quais se impõem como norma de fé e de conduta. São NORMATIVAS.

E HÁ OUTRAS QUE NÃO O SÃO. SÃO NÃO-NORMATIVAS.

É pura audácia (e pecado grave) argumentar contra as conclusões de Trento ou do Vaticano I. É uma petulância inaceitável pensar que tenho mais juízo em matéria de liturgia do que Pio X ou Pio XII. Eles emitiram normas vinculativas. Comprometeram o seu Magistério.

Francisco nos diz que seu ensino é NÃO NORMATIVO, ou seja, que não obriga. E ouço o Francisco, ouço a “opinião” dele que não é obrigatória, e comparativamente a ela tenho outra opinião. Mas se eu voltar e encontrar um Papa que OBRIGA, então deixo de dar a minha opinião e de criticar. E se o próprio Francisco declarasse algo que comprometesse a sua Infalibilidade, com a certeza de que lhe vinha diretamente do Espírito Santo e não de uma discussão inacabada de um órgão representativo popular, então eu teria de me conformar com essa declaração.

Não tenho nenhum problema com Francisco. Mas não se confunda, os pré-conciliares são muito tolos e não te dão essa “liberdade”.

Todos os pós-conciliares foram NÃO NORMATIVOS, como Francisco; foram PASTORAIS como o Concílio Vaticano II? É verdade que não o disseram em todas as letras, mas… para quem sabe ler, diziam-no com mais do que suficiente clareza. Pelo menos eu penso assim. Podemos falar sobre o assunto e discuti-lo. Para já, estou bastante tranquilo com o Sínodo, uma vez que as suas conclusões NÃO SÃO OBRIGATÓRIAS.  É o Papa que o diz.