1) Incompreensão da verdadeira natureza do culto ao coração sacratíssimo de Jesus por parte de alguns cristãos
Conquanto a Igreja em tão grande estima tenha tido sempre e ainda tenha o culto do sacratíssimo coração de Jesus, a ponto de se empenhar em fomentá-lo e propagá-lo por toda parte entre o povo cristão, e conquanto se esforce diligentemente por defendê-lo contra o “naturalismo” e o “sentimentalismo”, todavia é muito doloroso verificar que, no passado e em nossos dias, alguns cristãos não têm este nobilíssimo culto na honra e estima devidas, e às vezes não o têm nem mesmo aqueles que se dizem animados de zelo sincero pela religião católica e pela própria perfeição.
“Se conhecesses o dom de Deus” (Jo 4, 10). Servimo-nos dessas palavras veneráveis irmãos, nós, que por disposição divina fomos constituídos guardas e dispensadores do tesouro da fé e da religião que o divino Redentor entregou à sua Igreja, para admoestar todos aqueles dos nossos filhos que, apesar de, vencendo a indiferença e os erros humanos, já haver o culto do sagrado coração de Jesus penetrado no seu corpo místico, ainda abrigam preconceitos para com ele, e chegam até a reputá-lo menos adaptado, para não dizer nocivo, às necessidades espirituais mais urgentes da Igreja e da humanidade na hora presente. Porque não falta quem, confundindo ou equiparando a índole primária deste culto com as diversas formas de devoção que a Igreja aprova e favorece, mas não prescreve, o tem como um acréscimo que cada um pode praticar à vontade, e alguns há também que consideram oneroso este culto, e mesmo de nenhuma ou pouca utilidade, especialmente para os militantes do reino de Deus, empenhados em consagrar o melhor das suas energias, dos seus recursos e do seu tempo à defesa da verdade católica, para ensiná-la e propagá-la, e para difundir a doutrina social católica, fomentando práticas religiosas e obras por eles julgadas mais necessárias nos nossos dias. Por último, há quem creia que este culto, longe de ser um poderoso meio para estabelecer e renovar os costumes cristãos na vida individual e familiar, é antes uma devoção sensível não enformada em altos pensamentos e afetos, e, portanto, mais própria para mulheres do que para pessoas cultas.
Outros, finalmente, ao considerarem que esta devoção pede penitência, expiação e outras virtudes, sobretudo as que se chamam “passivas”, por não produzirem frutos externos; não a julgam a propósito para reacender a piedade, a qual deve tender cada vez mais à ação intensa, encaminhada ao triunfo da fé católica e à valente defesa dos costumes cristãos, os quais hoje, como todos sabem, se vêm facilmente infectados pelo indiferentismo, que não reconhece nenhum critério para distinguir o verdadeiro do falso no modo de pensar e de agir, e, assim, se vêem lamentavelmente alheados pelos princípios do materialismo ateu e do laicismo.
2) Estima e bênção dos sumos pontífices ao culto do sagrado coração de Jesus
Quem não vê, veneráveis irmãos, quão alheias são essas opiniões do sentir dos nossos predecessores, que desta cátedra de verdade publicamente aprovaram o culto do sacratíssimo coração de Jesus? Quem ousará chamar inútil ou menos acomodada aos nossos tempos esta devoção que o nosso predecessor de imperecível memória Leão XIII chamou de “estimadíssima prática religiosa”, e na qual viu um poderoso remédio para os próprios males que, nos nossos dias de maneira mais aguda e com mais extensão, afligem os indivíduos e a sociedade? “Esta devoção – dizia ele – que a todos recomendamos, a todos será de proveito”. E acrescentava estes avisos e exortações que também se referem à devoção ao sagrado coração: “Daí a violência dos males que, há tempo, estão como que implantados entre nós, e que reclamam urgentemente busquemos a ajuda do único que tem poder para os afastar. E quem pode ser este senão Jesus Cristo, o unigênito de Deus? Pois nenhum outro nome foi dado aos homens sob o céu no qual devamos salvar-nos” (At4,12). “Cumpre recorrer a ele, que é caminho, verdade e vida”.(1)
Nem menos dignos de aprovação e adequado para fomentar a piedade cristã julgou-o o nosso imediato predecessor, de feliz memória, Pio XI, que, na sua encíclica “Miserentissimus Redemptor“, escrevia: “Acaso não está contido nessa forma de devoção o compêndio de toda a religião, e mesmo a norma de vida mais perfeita, como quer que ele guie mais suavemente as almas para o profundo conhecimento de Cristo Senhor nosso, e com maior eficácia as mova a amá-lo mais apaixonadamente e a imitá-lo mais de perto?”(2) Nós, por nossa parte, com não menor agrado do que os nossos predecessores, aprovamos e aceitamos essa sublime verdade; e, quando fomos elevado ao sumo pontificado, ao contemplarmos o feliz e triunfal progresso do culto ao sagrado coração de Jesus entre o povo cristão, sentimos o nosso ânimo cheio de alegria e regozijamo-nos com os inúmeros frutos de salvação que ele havia produzido em toda a Igreja, sentimentos que tivemos a satisfação de exprimir logo na nossa primeira encíclica.(3) Através dos anos do nosso pontificado – cheios não só de calamidades e angústias, como também de inefáveis consolações -, esses frutos não diminuíram nem em número, nem em eficácia, nem em beleza, antes aumentaram. Com efeito, iniciativas múltiplas e muito acomodadas às necessidades dos nossos tempos surgiram para reacender este culto: referimo-nos às associações destinadas à cultura intelectual e à promoção da religião e da beneficência; às publicações de caráter histórico, ascético e místico encaminhadas a este mesmo fim; às piedosas práticas de reparação e, de modo especial, às manifestações de ardentíssima piedade que têm promovido o Apostolado da oração, a cujo zelo e atividade se deve o se haverem famílias, colégios, instituições, e mesmo algumas nações, consagrado ao sacratíssimo coração de Jesus; e não raras vezes, por ocasião dessas manifestações de culto, mediante cartas, discursos e mesmo radiomensagens temos expressado a nossa paternal complacência.(4)
Portanto, ao vermos que tamanha abundância de águas, quer dizer, de dons celestiais do supremo amor, que têm brotado do sagrado coração do nosso Redentor, se derramam sobre incontáveis filhos da Igreja católica por obra e inspiração do Espírito Santo, não podemos, veneráveis irmãos, deixar de exortar-vos com ânimo paterno a que, juntamente conosco, tributeis louvores e profundas ações de graças ao dispensador de todos os bens, repetindo estas palavras do apóstolo das gentes: “Aquele que é poderoso para fazer, acima de toda medida, com incomparável excesso, mais do que pedimos ou pensamos, segundo o poder que desenvolve em nós a sua energia, a ele glória na Igreja e em Cristo Jesus por todas as gerações, nos séculos dos séculos. Amém” (Ef3,20-21). Mas, depois de tributarmos as devidas graças ao Deus eterno, queremos por meio desta encíclica exortar-vos, a vós e a todos os amadíssimos alhos da Igreja, a uma mais atenta consideração dos princípios doutrinais contidos na Bíblia, nos santos padres, e nos teólogos; princípios nos quais, como em sólidos fundamentos, se apóia o culto do sacratíssimo coração de Jesus. Porque nós estamos plenamente persuadidos de que só quando à luz da divina revelação houvermos penetrado a fundo a natureza e a essência íntima deste culto, é que poderemos apreciar devidamente a sua incomparável excelência e a sua inexaurível fecundidade em toda sorte de graças celestiais, e destarte, meditando e contemplando piedosamente os inúmeros bens que ela produz, poderemos celebrar dignamente o primeiro centenário da festa do sacratíssimo coração de Jesus na Igreja universal.
Com o fim, pois, de oferecer à mente dos féis o alimento de salutares reflexões, com as quais possam eles mais facilmente compreender a natureza deste culto, tirando dele frutos mais abundantes, deter-nos-erros antes de tudo nas páginas do Antigo e do Novo Testamento que contêm a revelação e descrição da caridade infinita de Deus para com o gênero humano, caridade cuja sublime grandeza jamais poderemos esquadrinhar suficientemente; depois aduziremos o comentário que sobre ela nos deixaram os padres e doutores da Igreja; e, finalmente, procuraremos esclarecer a íntima conexão que existe entre a forma de devoção que se deve tributar ao coração do divino Redentor e o culto que os homens estão obrigados a render ao amor, que ele e as outras pessoas da Santíssima Trindade têm a todo gênero humano. Pois achamos que, uma vez considerados à luz da Sagrada Escritura e da tradição os elementos constitutivos desta nobilíssima devoção, aos cristãos será mais fácil chegarem-se “com gáudio às águas das fontes do Salvador” (Is12, 3); quer dizer, poderão eles apreciar melhor a singular importância que o culto ao coração sacratíssimo de Jesus adquiriu na liturgia da Igreja, na sua vida interna e externa, e também nas suas obras; e assim cada um poderá obter frutos espirituais que assinalarão uma salutar renovação nos seus costumes, segundo os desejos dos pastores do rebanho de Cristo.
3) O amor de Deus, motivo dominante do culto ao santíssimo coração de Jesus, no Antigo Testamento
Para melhor poder compreender a força que com relação a esta devoção encerram alguns textos do Antigo e do Novo Testamento, é preciso entender bem o motivo pelo qual a Igreja tributa ao coração do divino Redentor o culto de latria. Duplo, veneráveis irmãos, como bem sabeis, é tal motivo: o primeiro, que é comum também aos demais membros adoráveis do corpo de Jesus Cristo, funda-se no fato de, sendo o seu coração parte nobilíssima da natureza humana, estar unido hipostaticamente à pessoa do Verbo de Deus, e, portanto, dever-se-lhe tributar o mesmo culto de adoração com que a Igreja honra a pessoa do próprio Filho de Deus encarnado. Trata-se, pois, de uma verdade de fé católica, solenemente definida no concílio ecumênico de Éfeso e no II de Constantinopla.(5) O outro motivo concerne de maneira especial ao coração do divino Redentor, e, pela mesma razão, confere-lhe um título inteiramente próprio para receber o culto de latria. Provém ele de que, mais do que qualquer outro membro do seu corpo, o seu coração é o índice natural ou o símbolo da sua imensa caridade para com o gênero humano. Como observava o nosso predecessor Leão XIII, de imortal memória, “é ínsita no sagrado coração a qualidade de ser símbolo e imagem expressiva da infinita caridade de Jesus Cristo que nos incita a retribuir-lhe o amor por amor”.(6)
Coisa indubitável é que nos livros sagrados nunca se faz menção certa de um culto de especial veneração e amor tributado ao coração físico do Verbo encarnado pela sua prerrogativa de símbolo da sua inflamadíssima caridade. Mas este fato, que cumpre reconhecer abertamente, não nos deve admirar, nem de modo algum fazer-nos duvidar de que a caridade divina para conosco – razão principal deste culto – é exaltada tanto pelo Antigo como pelo Novo Testamento com imagens sumamente comovedoras. E, por se encontrarem nos livros santos que prediziam a vinda do Filho de Deus feito homem, podem essas imagens considerar-se como um presságio daquilo que havia de ser o símbolo e índice mais nobre do amor divino, a saber: o coração sacratíssimo e adorável do Redentor divino.
Pelo que se refere ao nosso propósito, não julgamos necessário aduzir muitos textos do Antigo Testamento nos quais estão contidas as primeiras verdades reveladas por Deus, mas cremos bastará recordar o pacto estabelecido entre Deus e o povo eleito, pacto sancionado com vítimas pacíficas – e cujas leis fundamentais, esculpidas em duas tábuas, Moisés promulgou (cf. Ex34, 27-28) e os profetas interpretaram -, esse pacto não se baseava somente nos vínculos do supremo domínio de Deus e na devida obediência da parte do homem, mas consolidava-se e vivificava-se com os mais nobres motivos do amor. Porque também para o povo de Israel a razão suprema de obedecer a Deus, devia ser não tanto o temor das divinas vinganças suscitado nos ânimos pelos trovões e relâmpagos procedentes do ardente cume do Sinai, mas, antes, o amor devido a Deus: “Escuta, Israel: O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. E estas palavras que hoje te ordeno estarão sobre o teu coração” (Dt6, 4-6).
Não nos deve, pois, causar estranheza que Moisés e os profetas, aos quais o Doutor angélico chama com razão os “maiorais” do povo eleito,(7) compreendendo bem que o fundamento de toda a lei se baseava neste mandamento do amor, descrevessem as relações todas existentes entre Deus e a sua nação, recorrendo a semelhanças tiradas do amor recíproco entre pai e filhos, ou do amor dos esposos, em vez de representá-las com imagens severas inspiradas no supremo domínio de Deus ou na nossa devida servidão cheia de temor. Assim, por exemplo, no seu celebérrimo cântico pela libertação do seu povo da servidão do Egito, ao querer exprimir como essa libertação era devida à intervenção onipotente de Deus, o próprio Moisés recorre a estas comovedoras expressões e imagens: “Assim como a águia provoca seus filhotes a alçarem o vôo e acima deles revoluteia, assim também (Deus) estendeu as suas asas e acolheu (Israel) e carregou-o nos seus ombros” (Dt32, 11). Talvez, porém, entre os profetas, nenhum exprima e descubra melhor, tão clara e ardentemente, quanto Oséias, o amor constante de Deus para com seu povo. Com efeito, nos escritos deste profeta, que entre os profetas menores sobressai pela profundeza de conceitos e pela concisão da linguagem, Deus é descrito amando o seu povo escolhido com um amor justo e cheio de santa solicitude, qual é o amor de um pai cheio de misericórdia e de amor, ou de um esposo ferido na sua honra. É um amor que, longe de decair e de cessar à vista de monstruosas infidelidades e pérfidas traições, castiga-os, sim, como eles merecem, mas não para os repudiar e os abandonar a si mesmos, mas só com o fim de limpar, de purificar a esposa afastada e infiel e os filhos ingratos, para tornar a uni-los novamente consigo uma vez renovados e confirmados os vínculos de amor: “Quando Israel era criança amei-o; e do Egito chamei meu filho… Ensinei Efraim a andar, tomei-o nos meus braços, mas eles não reconheceram que eu cuidava deles. Com vínculos humanos atraí-los-ei, com laços de amor… Sanar-lhes-ei as rebeldias, amá-los-ei generosamente, pois minha ira não se afastou deles. Serei como o orvalho para Israel, ele florescerá como o lírio e lançará suas raízes qual o Líbano” (Os11, 1.3-4; 14, 5-6).
Expressões semelhantes tem o profeta Isaías quando apresenta o próprio Deus e o povo escolhido como que dialogando entre si com estas palavras: “Mas Sião disse: O Senhor abandonou-me e esqueceu-se de mim. Pode, acaso, uma mulher esquecer o seu pequenino de sorte que não se apiede do filho de suas entranhas? Ainda que esta se esquecesse, eu não me esquecerei de ti” (Is49, 14-15). Nem menos comovedoras são as palavras com que, servindo-se do simbolismo do amor conjugal, o autor do Cântico dos cânticos descreve com vivas cores os laços de amor mútuo que unem entre si, Deus e a nação predileta: “Como lírio entre os espinhos, assim é minha amada entre as donzelas… Eu sou de meu amado e meu amado é meu: o que se apascenta entre os lírios… Põe-me como selo sobre teu coração, como selo sobre teu braço, pois forte como a morte é o amor, duros como o inferno os ciúmes: seus ardores são ardores de fogo e de chamas” (Ct2, 2; 6, 2; 8, 6).
Com todo esse amor, terníssimo, indulgente e longânime mesmo quando se indigna pelas repetidas infidelidades do povo de Israel, Deus nunca chega a repudiá-lo definitivamente; mostra-se, sim, veemente e sublime; mas, contudo, em substância isso não passa do prelúdio daquela inflamadíssima caridade que o Redentor prometido havia de mostrar a todos com o seu amantíssimo coração, e que ia ser o modelo do nosso amor e a pedra angular da nova aliança. Porque, em verdade, só aquele que é o Unigênita do Pai e o Verbo feito carne “cheio de graça e de verdade” (Jo1, 14), tendo descido até os homens oprimidos de inúmeros pecados e misérias, podia fazer brotar da sua natureza humana, unida hipostaticamente à sua pessoa divina, “um manancial de água viva” que regasse copiosamente a terra árida da humanidade, transformando-a em florido e fértil jardim. E essa obra admirável que o amor misericordioso e eterno de Deus devia realizar, de certo modo já parece prenunciá-la o profeta Jeremias com estas palavras: “Amei-te com amor eterno; por isso atrai-te a mim cheio de misericórdia… Eis vêm dias, afirma o Senhor, em que pactuarei com a casa de Israel e com a casa de Judá uma aliança nova: este será o pacto que eu concertarei com a casa de Israel depois daqueles dias, declara o Senhor: Porei minha lei no interior dele e escrevê-la-ei no seu coração, e serei o seu Deus e eles serão o meu povo…; porque perdoarei a sua culpa e não mais me lembrarei dos seus pecados” (Jr 31, 3.31. 33-4).
Trecho da Carta Encíclica Haurietis Aquas do Sumo Pontífice Papa Pio XII
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(1) Enc. Annum Sacrum., de 25 de maio de 1899; Acta Leonis, 19(1900), pp. 71, 77-78.
(2) Enc. Miserentissimus Redemptor, de 8 de maio de 1928; AAS 20(1928), p.167.
(3) Cf. Enc. Summi Pontificatus, de 20 de outubro de 1939; AAS 31(1939), p. 415.
(4) Cf.AAS 32(1940), p. 276; 35(1943), p.170; 37(1945), pp. 263-264; 40(1948), p. 501; 41(1949), p. 331.
(5) Conc. Ephes., cân. 8; cf. Mansi, Sacrorum Conciliorum amplissima collectio, IV,1083, C.; Conc. Const. II, cân. 9; cf. ibid., IX, 382 E.
(6) Cf. Enc. Annum Sacrum: Acta Leonis, 19 (1900), p. 76.
(7) Summa Theol., I-II, q. 2, a. 7; ed. Leon. t. 8,1895, p. 34.