Introdução
As seguintes anotações são, em sua maioria, resumos de diferentes livros de música que, por interesse pessoal, fui fazendo ao longo dos anos. Têm valor de resumo somente. São poucas as apreciações pessoais. É que me parece interessante primeiro conhecer o aspecto histórico do desenvolvimento da música, especialmente da música sacra, através dos séculos, para só depois estudar mais a fundo a sua essência mesma, a sua linguagem.
Para a parte histórica, os resumos foram feitos sobretudo com base em História da Música, de Franco Abbiati (Edições Uteha, em cinco tomos). São poucas as citações entre aspas desta obra. Em geral, resumi a ideia com minhas próprias palavras. Mas a substância vem toda dela [N. do T.: da obra].
São Pio X, em seu Motu Proprio Codex musicae sacrae juridicus, diz que: “(…) o canto gregoriano considera-se, de certo modo, como o mais elevado ideal da música sacra, de maneira que, com razão, se pode assentar como geralmente válida a seguinte regra: uma obra musical que seja apropriada para o uso religioso será tanto mais sagrada e litúrgica, quanto mais, por sua posição, espírito e irradiação, aproximar-se do ‘melos’ gregoriano. Pelo contrário, será menos adequada ao serviço divino quanto mais afastar-se desse modelo”.
Segundo São João da Cruz, a realização artística deve ser simples, pura, evocadora e despojada – para ser pura e simples – para conduzir a alma a Deus sem retê-la no gozo estético1. A arte na liturgia, como acessório que é do culto, deve subordinar-se estritamente a seu fim, a sua função. Será, pois, mais própria para a liturgia, a música que, ao ser escutada nas funções religiosas, não inclinar o ouvinte a deter-se nela, a estancar-se no gozo estético que produz; senão a levar sua alma, através desse gozo, ao recolhimento, à oração e a dispor-se para melhor receber as graças de Deus.
Tendo isso em conta, vejamos agora, pois, essa música que nasceu junto do templo sagrado, para dar mais esplendor e beleza às suas cerimônias, ajudando a piedade e a elevação das almas. Neste aspecto, a “economia de meios” é muitas vezes bastante útil para transmitir a “mensagem” inerente a toda arte. Ela faz com que a parte material, não sendo tão grande, permita expressão mais pura do elemento formal, cuja natureza é intelectual. Em outras palavras: os aspectos materiais da música são a melodia, a harmonia e o ritmo; estes elementos, se demasiado abundantes, sufocam a mensagem da música litúrgica – inspirar piedade. Portanto, a economia de meios, i. e., a sobriedade, muitas vezes permite à arte transmitir a sua mensagem mais puramente2. A moderação caracteriza toda a polifonia sagrada, e, mais especialmente, segundo São Pio X, a Palestrina, considerado o principal compositor da idade de ouro da polifonia clássica, como veremos adiante.
O estudo da música, até o século XVI, quase se identifica com a história da polifonia, dada a predominância do elemento vocal.
Polifonia, em sentido amplo, significa o soar simultâneo de duas ou mais notas de distintas alturas (ou timbres). Nisto – no número de vozes simultâneas (ou de linhas melódicas) – distingue-se a polifonia da monodia. Na acepção mais comum, porém, designa o tipo de música que obedece às leis do que tecnicamente se chama “contraponto”, cujo estilo alcançou a perfeição no fim do século XV e no século XVI (e, neste sentido estrito, distingue-se da homofonia).
Veremos o nascimento e a evolução da polifonia, tomada neste último sentido [estrito], desde o século IX, com a música chamada Organum, até o século XVI, com a perfeição do contraponto.
Toda a música, até esta época [N. do T.: século XVI], baseava-se ainda no sistema modal. Logo depois, porém, veio a surgir o sistema diatônico. Ou seja, a polifonia clássica tinha ainda o “ar” modal medieval (dos modos gregorianos), porque as escalas de base da polifonia eram então as dos modos gregorianos (Ré, Mi, Fá, Sol), com sua estrutura característica3. Com o tempo, e sobretudo com a influência da música popular profana, os modos foram simplificando-se, e originaram os únicos modos da música moderna: o Maior e o Menor, de estrutura chamada diatônica. Encontramos algumas peças de Palestrina, por exemplo, que denotam já essa transição do sistema modal para o diatônico4.
Neste bem sucinto artigo, veremos, em linhas gerais, as características dos principais períodos da polifonia clássica, a saber:
- Período do Organum
- Período São Marçal
- Ars Antiqua
- Ars Nova
- Período do Renascimento (escolas franco-flamengas)
- Idade de ouro do contraponto
Entretanto, antes de abordar diretamente este tema, convém dar uma pequena noção do que foi o sistema modal, dos modos gregorianos, sobre que se funda toda a música medieval.
Capítulo 1 – O sistema modal
Quando escutamos diferentes tipos de música, como por exemplo a música medieval, a renascentista, a barroca, e até mesmo as músicas orientais, damo-nos conta (sem poder defini-lo talvez) de que cada uma tem um “ar” distinto. Esse “ar” chama-se “modo”, e faz referencia à relação das notas entre si. Se se puserem lado a lado as notas de um modo, ter-se-á a sua escala. A música moderna, neste aspecto, é relativamente pobre, porque conservou somente dois modos: o Maior e o Menor. Ela constrói-se sobre a base da escala diatônica (por tons e semitons), e tem apenas essas duas variantes. A música oriental usa os ¼ de tom, intervalo difícil de captar e que lhe dá “ar” mais confuso.
Qual é o “ar” do canto gregoriano?
O “ar” do canto gregoriano deriva de seus modos ou da maneira como se dispõem as notas e os intervalos que elas formam.
Há quatro notas iniciais de escala: Ré, Mi, Fá e Sol. Cada uma destas notas origina uma escala, que pode estar em registro mais alto (modo autêntico) ou mais baixo (modo plagal). Com estas variantes, formam-se os oito modos gregorianos. Os modos têm, cada um, a sua correspondente “corda” de recitação ou “tenor”, que é a nota dominante (este é o termo que se emprega em música moderna) com a qual se desenvolve a melodia.
Tudo isso possibilita grande variedade de estruturas modais, cada uma com suas características, seus recursos próprios para expressar um “ar” particular, um “ethos”, estado de alma ou ideia5. A palavra ethos era usada pelos gregos para definir o caráter moral dos seus modos musicais. Assim os medievais diziam que o 1.º Modo era “Gravis”, o 2.º “Tristis”, o 3.º “Mysticus” etc. Tratamos de resumi-los no quadro seguinte.
Capítulo II – A Polifonia
Art. 1. Período do Organum (900 – 1100)
A primeira descrição de polifonia foi dada por Musica Enchiriadis6e Scholia Enchiriadis7, do século X, ambas atribuídas a Hubaldo de Santo Amando (840-932) e chamadas organum (ou também diafonia), certamente para recordar algumas passagens da Sagrada Escritura, como canentes Domino in organis8. Isso não significa que o costume de cantar em duas ou mais vozes não fosse mais antigo. É que sobre isto não há referências seguras e não se pode afirmar com certeza.
O sistema estabelecido por Musica Enchiriadis e Scholia Enchiriadis consiste em cantar em intervalos de 4ª ou 5ª, quer seja a duas vozes (5-1; 4-1), a três (8-5-1; 8-4-1), ou ainda a quatro (12-8-5-1 ; 11-8-4-1)9.
Essa teoria progrediu no século seguinte. No Micrologo, Guido d’Arezzo (1040) combate a forma dura do organum de Hubaldo. O estrito paralelismo desapareceu, e surgiu o movimento contrário e oblíquo10. Em documento francês do século XI intitulado Quiquomque veult déchanter, vê-se a aparição do discantus, que usa o movimento contrário, alternando intervalos de 5ª e 8ª. Já em outro tratado do século XII, o discantus evoluiu para o chamado discantus figurado, em que se adiciona uma terceira voz, e se admitem notas de passagem ou de adorno (apogiaturas), para marcar a individualidade melódica de uma voz em relação à outra. Houve grande impulso com a invenção da pauta musical (linhas que indicavam as notas de maneira mais exata), atribuída ao mesmo Guido d’Arezzo. Neste tempo, o movimento contrário preferiu-se a qualquer outro.
Terceira maneira de canto com mais de uma voz, sempre rudimentar mas de grande importância para as conquistas posteriores da polifonia, é a chamada “Falso Bordão” (Fabordão), de origem inglesa. Encontra-se sua descrição nos tratadistas da Inglaterra, Guilelmus Monachus, Chilston e Lyonel Power, nos séculos XIV e XV. O Fabordão consistia, resumidamente, no usar a 3ª (já considerada uma consoante) e cantar a três vozes, deslocando a parte baixa para a oitava superior, que é o que precisamente lhe dá a denominação de Falso Bordão. É o Bordão (baixo) realizado “falsamente”, fora de sua posição natural.
Aqui pomos alguns exemplos das maneiras primitivas de canto polifônico (organum, discantus simples, discantus figurado e fabordão [N. do T.: respectivamente]).
Figura 1″Organum”
Figura 2″Discantus Simples”
Figura 3″Discantus Figurado”
Figura 4 “Fabordão”
Art. 2. Período São Marçal (1100-1190)
Quando na música começam a aparecer duas ou mais notas contra uma, faz-se necessário estabelecer convenção sobre o valor delas, e com isso surgem os rudimentos da música mensurada. Este problema tornou-se premente com o progresso do discantus (figurado), em que duas ou mais vozes cantam simultaneamente em ritmos distintos. Necessitaram-se sinais que regulassem com precisão absoluta a duração dos sons. Indicações podem ver-se em alguns manuscritos, embora os compositores pusessem mais atenção no aspecto rítmico ou nos acentos do que na medida.
Em princípio usaram-se os modos sugeridos pela métrica latina. Assim, o ritmo musical dos primeiros cantos polifônicos indicava-se por esquemas métricos do verso poético, ou seja, pelas séries de “pés” que se sucedem uniformemente no verso. Esse mensuralismo nascente chamou-se “modalismo” ou “notação modal”, sistema que se aperfeiçoou por João de Garlandia, pelos dois Franco (de Paris e de Colônia) e por Pedro de Cruce (cf. mais adiante Ars Antiqua). As seis classes de modos tomavam seu nome, naturalmente, dos “pés” da versificação latina: trocaico, jâmbico, dactílico, anapéstico, espondaico e tribráquico. Surgiram unidades de medida como “longa”, “breve” e “semibreve”, que se subdividiam em três partes somente. Mais tarde, Marchettus de Pádua veio a introduzir a divisão em duas partes (que ele chamou prolatio minor) e Philippe de Vitry veio a estabelecer sinais convencionais para distinguir as “prolationes” de Marchettus (como veremos depois ao tratar da Ars Nova).
Juntamente com o crescimento da música mensurada, apareceram as primeiras indicações dos recursos polifônicos, como o intercâmbio e a imitação sequencial. Isso se deu, porém, de maneira esporádica e não com regras estabelecidas, como passou a ocorrer a partir do século XIII.
Dois centros musicais franceses de notável atividade polifônica foram nesta época as escolas de Chartres e da Abadia de São Marçal de Limoges. Desta proveio a maior parte dos manuscritos da época, que ficou conhecida como “Período São Marçal”.
Os intervalos usados neste período são a 3ª, o Uníssono, a 5ª e a 4ª, nesta ordem de freqüência. O acorde final é invariavelmente em 8ª ou 5ª, e se encontram alguns sinais de imitação.
Art. 3. Ars Antiqua (1190 – 1315)
A principal característica deste período é a aparição de várias formas de composição, cada uma com o seu marco bem definido. As mais frequentes foram o Organum (purum)11, o Conductus, o Rondellus12 (desenvolvimento da técnica de intercâmbio), o Hochetus13, a Cópula14 e o Motetus15. Diz o monge inglês Odington, em sua De speculatione musices, a respeito destas formas polifônicas: “Quando aquilo que se canta é repetido sucessivamente pelos outros, o canto chama-se Rondellus, ou seja, que forma uma roda, um canto que se desenvolve em forma circular (‘id est rotabilis vel circumductus’); e isto pode ser com ou sem palavras. Quando o primeiro [cantor] não repete a parte do segundo, senão que todas as vozes desenvolvem-se com suas qualidades e características próprias, tem-se um Conductus, como se vários belos cantos fossem conduzidos juntos”.
Até a metade do século XII, Chartres e Limoges cederam sua preponderância para a Escola de Paris, contígua à Igreja de Notre-Dame. Nesta florescente escola sobressaíram os compositores de organum: Leonino, que, depois de 1160, contraponteou (compunha no estilo da época) os temas litúrgicos do Gradual e do Antifonário, e recopilou-os no Magnus liber de Graduali et Antiphonario; e Perotino, chamado Magnus, que, entre os anos de 1183 e 1233, renovou e ampliou a obra de Leonino, reunindo os resultados de seu trabalho em seu Liber organi, usado pelo Coro de Santa Maria (Notre-Dame), até a época de Roberto de Sabillon, e que serviram posteriormente também a Petrus de Cruce e a Johannes Primarius.
Certamente uma novidade e vivacidade de ritmos distinguem a composição de Perotino da de Leonino, por que aquele, com seus Conducta, Organa e Moteti, pode contar-se entre os mais destacados representantes da Ars Antiqua daquele século.
Figura 5.Exemplos de “Organum” da Escola de Notre-Dame.
Figura 6.Exemplo de “Organum Purum” de Perotino.
Outros renomados compositores polifônicos da Ars Antiqua foram: Roberto de Sabillon, inglês, que sucedeu Perotino na célebre escola eclesiástica de Paris, a que concorriam sempre em maior número os músicos da Inglaterra; João de Garlandia, também inglês, autor de dois tratados sobre discantus, Petrus de Cruce (Pierre de la Croix), um discípulo de Roberto, reformador audaz dos valores na notação, introduzindo no sistema de medida inovações destinadas à busca de mais liberdade para as vozes; Franco de Colônia, o Velho, e o outro Franco de Colônia, que deram seu nome para essa escola de mensuralismo: franconiana; ambos expoentes como compositores e tratadistas.
Acontecimento desta época fecunda em resultados artísticos foi a fundação do Colégio universitário parisiense, iniciativa do Côn. Roberto de Sorbona (1202-1274). Nele, incluiu-se a ciência musical entre as matérias ensinadas, que começou a considerar-se sob o critério da estética pura.
A notação da primeira parte do século XIII já expressa melhor o ritmo, por meio de ligaduras ou grupos de notas. Todavia, a notação como se conhece hoje só se definiu a partir de 1260.
A palavra “contraponto”, que hoje se usa às vezes com o sentido genérico de composições polifônicas amadurecidas no século XIII, só veio a surgir especificamente nos tratados do início do século XIV, para designar a composição regida por certas leis de intervalos e movimentos, aperfeiçoadas pela evolução do sistema mensural. Nesta época, pode dizer-se, o gênero contrapontístico estava já maduro para realizar, com Marchettus de Pádua e Philippe de Vitry, o trânsito da Ars Antiqua para a Ars Nova.
Art. 4. “Ars Nova” (1315 – 1410)
O período da Ars Nova tem dois principais representantes, com características próprias: Itália e França. Trataremos, pois, separadamente de cada um, indicando também as influências recíprocas entre ambos.
Ara Nova na Itália
O “Trecento” (século XIV) italiano conheceu o florescimento e o despertar de todas as artes. Foi sobretudo em Florença onde a Ars Nova italiana, paralelamente à francesa, teve seu centro mais florescente e adiantado.
Já a fins do século XII, a Ars Antiqua, havendo recebido de Franco de Colônia as regras adequadas para a sua disciplina, começou a perder terreno. A “revolução” começou no aspecto rítmico, como assinalamos pouco atrás, ao falar da evolução da notação rítmica. A Ars Antiqua apoiava-se na divisão ternária do valor das notas, mas, a princípios do século XIV, os italianos já haviam adotado a nova fórmula de divisão binária e passaram a dividir a breve não somente em três, seis e nove, senão também em quatro, seis, oito e doze semibreves. Já podemos imaginar a variedade e mudança que se introduziram nas novas composições, as quais passaram a ter então maior liberdade de ritmo e a adaptar-se às formas ligeiras da dança ou a satisfazer o gosto do virtuosismo vocal.
Característica que distinguiu a notação italiana da francesa foi o “ponto de divisão”, com que os italianos se adiantaram alguns séculos na introdução da barra de compasso na escritura musical. Assim estão escritos os códices do “Trecento” italiano, chamados florentinos (porque foi a partir de Florença que se difundiu primeiro o gosto pela nova arte, e porque os florentinos foram os compositores mais insignes e fecundos daquela produção musical).
O historiador italiano Fernando Liuzzi assinala que a evolução rítmica conduziu a música florentina, às vezes, a excesso de virtuosismo; diz: “o excessivo e o inútil na matéria de virtuosismo vocal sobrecarregam e congelam muitas páginas musicais de nosso Trecento”. Ao contrário da arte veneziana, mais sóbria e simples16.
Quanto aos principais teóricos da Ars Nova, um deles foi Marchettus de Pádua, cujos tratados Plurium artis musicae mensurabilis ou Pomerium (1309)17 marcam a transição entre Ars Antiqua e Nova, transição, como vimos, entre o sistema mensural franconiano e o mais adiantado de De Vitry.
Foram muitos os músicos italianos do século XIV. Em sua música deve notar-se o caráter cantável e flexível das melodias (conseqüência da “revolução rítmica”), e a aparição freqüente de partes instrumentais, em que havia muitas vezes o aspecto de monodias acompanhadas. Entre os mais ilustres músicos da Ars Nova está Francesco Landini, chamado “dos órgãos” por sua habilidade de tocar este instrumento, e apelidado “o cego” por causa de uma enfermidade. Nascido em 1325, em Florença, morreu em 1397. Juntamente com o “cego dos órgãos”, gozaram em Florença de especial renome Giovanni da Cascia, organista de Santa Maria del Fiore, e vários outros compositores como Jacopo da Bologna, Nicola da Perugia etc.
Enquanto na França evoluíam outras formas de polifonia, na Itália as principais eram os Madrigais, as Baladas e as Caccias.
Ars Nova na França
A expressão Ars Nova apareceu no solo francês em tratado de Philippe de Vitry, do terceiro decênio do século XIV, em que ele estruturou o sistema de notação rítmica, tal qual o fez Marchettus, como já vimos.
Em De Vitry, todavia, os principais aportes versaram sobre o novo método de escritura que admitia a equiparação dos valores binários aos ternários, reconhecida já pela teoria italiana; ademais, trataram do uso das pausas e de muitos sinais que indicavam divisão, perfeição (três tempos), imperfeição (dois tempos), alterações, síncope, e muitos outros recursos técnicos. No mesmo tempo, propagou-se a palavra “contraponto”, que substituiu discantus.
A Ars Nova da França pareceu pôr em prática as ideias de Philippe de Vitry com timidez conservadora, pelo menos no princípio, sobretudo se comparada ao movimento florentino paralelo, favorecido pelo recente despertar da poesia.
As principais formas polifônicas da nova arte da França foram o Motete profano, de forma semelhante à do fim do século XIII, a Ballade Notée, para uma voz e com segunda voz grave e instrumental, e a Chanson Balladée, baixo em cujo nome se compreendem os Rondeaux e os Virelais de duas a quatro vozes.
O principal representante da Ars Nova francesa foi sem dúvida Guillaume de Machaut, o maior músico francês do século XIV, nascido em Machaut (Ardenas), por volta de 1284, e morto provavelmente em Reims em 1377. Foi clérigo, poeta, compositor e cortesão. O rei de Boêmia, João de Luxemburgo, levou-o consigo a Praga. Mais tarde veio a passar à corte da Normandia e à de Carlos V, o Prudente.
O notável repertório de suas composições, perto de uma centena, constitui-se de várias Canções de dança e Baladas instrumentais, Lais e Rondeaux, Missas e Motetes. Entre suas Missas é de notar-se a Missa de Coroação, escrita para a coroação de Carlos V de França, uma de suas obras mais importantes e também das mais antigas Missas a quatro vozes em estilo polifônico, precursora da grande arte religiosa flamenga, sobre que veremos no próximo capítulo. O sintoma que anunciou os artifícios flamengos do século seguinte encontra-se claramente no Rondeau Ma fin est mon commencement, em que a segunda voz deve ler-se em direção oposta à primeira; espécie de cânon retrógrado, que tem historicamente sua importância.
Art. 5. Renascimento (1410 – 1485)
O progresso da arte na região de Flandres (hoje: Holanda, Bélgica e França do norte) esteve sem dúvida ligado a impulso econômico, o qual se deu ali pela concentração de grande parte do comércio mundial, que, vindo do Ocidente, tinha em Flandres sua saída natural ao mar.
Com o período flamengo, apareceu costume que teria forte repercussão nos séculos posteriores: a instituição das escolas de cantores agregadas a capelas de príncipes laicos, como então a do duque de Borgonha Felipe, o Bom, e de Carlos, o Temerário, em que pequenos grupos de cantores ou mestres de capela exercitavam-se no canto. E, assim como das velhas cantorias eclesiásticas haviam saído os primeiros frutos do discantus, também das cantorias flamengas de Cambrai e de Tournai manou grande quantidade de cantores-compositores de raro talento, que invadiram as cidades mais ricas da França e da Itália, e algo menos a Inglaterra e a Espanha.
Entre as características da arte flamenga, sobressaem duas especialmente: a primeira consiste no reforço da expressão das palavras através de sucessivas repetições; a segunda são as engenhosidades e extravagâncias da técnica: o “racionalismo” dos avanços técnicos que afogam a arte, a arbitrariedade da complexidade rítmica. Apesar disto, nos últimos mestres flamengos o afã de elaboração foi moderado e canalizado para a beleza harmônica.
O ponto de partida foi a Missa, e algo menos o Hino, e também o Motete, o qual adquiriu com os flamengos as proporções de complexa composição polifônica. Um único tema original circulava e governava as partes. Ele era escolhido no coral gregoriano ou tomado de uma melodia popular, e mantido como cantus prius factus (assim se chamava) na parte do tenor durante toda a composição.
Pode fazer-se divisão simples deste período em duas partes: a primeira, que se iniciou com John Dunstable e com os mestres menores, que se caracterizam pela superposição das melodias em imitação, e a segunda com Ockeghem e os mestres maiores.
John Dunstable, de origem inglesa, nasceu em Dunstable (Bedford) em torno de 1370, e morreu em 1453. Sua educação artística foi de estirpe franco-flamenga com influências italianas. Residiu como cantor em Paris e Cambrai, onde teve por discípulos a Binchois e Dufay. Nota-se como traço particular de Dunstable o caráter cantabile de influência florentina. Diz-se que ele fez com a música sagrada o que Machaut fez com a profana. A obra de Dunstable vai desde peças de ar medieval até Motetes declamatórios e de estrutura dupla. Sua obra mais conhecida e que foi muito popular na Idade Média é a canção O Rosa bella, com suas brilhantes e sonoras cadências.
Guillaume Dufay, discípulo de Dunstable juntamente com Binchois, superou sensivelmente a arte do mestre, a ponto de ser considerado por alguns musicólogos como o verdadeiro fundador da escola flamenga. Nascido por 1400 em Chimay, Hainaut (Bélgica), Dufay começou como compositor de música religiosa, imitando Dunstable. Apesar das acrobacias rítmicas, nota-se melhor organização da construção polifônica, a que não falta clareza e harmoniosa sonoridade, frutos de refinada sensibilidade musical.
Com Dufay iniciou-se o costume de manter-se o músico em estreito contato com os ambientes musicais da Itália. Com efeito, após sua formação musical em Cambrai, Dufay estabeleceu-se sucessivamente na Capela Vaticana, na capela do antipapa Félix V, e logo novamente em Cambrai.
Com ele também se inaugurou o costume de tomar as primeiras notas de canções profanas como tema de composição polifônica, cuja função era ser eixo de toda a composição. Seu repertório, cerca de cento e cinqüenta peças, compõe-se de Missas, Hinos, Magnificat, Motetes e Canções profanas.
Assim como os três nomes de Dunstable, Dufay e Binchois são indicados como os principais representantes do primeiro grupo flamengo, mais três nomes de muito maior prestígio – Ockeghem, Obrecht e Josquin des Près – encontram-se na segunda escola, de que viria a sair o grande Orlando de Lasso.
Com Ockeghem, as virtudes e os defeitos dessa arte tomam proporções extraordinárias. Foi esta a era das complicações artificiosas, dos cânones ex unica, dos cânones chamados cancarizantes18.
Nascido em Ockeghem por 1430, esteve sucessivamente na cantoria de Amberes, na corte parisiense de Carlos VII, na Abadia de São Martim de Tours e na capela do rei Luís XI de França. Discípulo de Dufay, foi por sua vez, mestre de Josquin de Près e de Pierre de la Rue, entre outros.
Jacob Obrecht, digno sucessor de Ockeghem, nasceu em Utreque (Utrecht), por 1450, e passou sucessivamente por Ferrara, Cambrai, Bruges e Ameres. Morreu de peste, em Ferrara, em 1505. Adotou sem reservas o estilo imitativo já impulsionado por Ockeghem, mas se mostrou menos travado, havendo dado mais lugar à expressão artística. Conhecem-se muitas composições suas, religiosas e profanas, como Missas, Hinos, Motetes, Paixões, Réquiem e Canções.
Com Josquin des Près (1445-1521), chamado por seus contemporâneos “o príncipe da música”, as formas da Escola Flamenga alcançaram o seu cume. Viveu nas cortes da Itália, em Milão, na Capela Papal de Roma, em Módena, Ferrara, Cambrai e Paris. Morreu em 1522. Sua música libertou-se dos artifícios, embora às vezes os usasse magistralmente. Como disse um musicólogo: “à solidez da construção une-se a beleza das melodias, e às vezes a ternura dos acentos”19 .
Essa época foi abundante em músicos de grande valor. Entre outros, citem-se Carpentras, Barbireau, Compère, Mouton, Jannequin, Pierre de la Rue, Tinctoris, Arcadelt, Clemens Non Papa. Sem contar alguns compositores alemães como Adam de Fulda, Heinrich Isaac, Dietrich, Von Bruck etc; e os ingleses Cornysh, Browne, Wilkinson etc.
Resumindo sumariamente o trabalho dos compositores que sucederam Dunstable e Duffay, na segunda metade do século, notamos três pontos.
- Sucessão de mestre a aluno, que se detecta por primeira vez. Dustable foi o primeiro mestre. Duffay foi seu associado, e acabou por superá-lo. Ockeghem foi discípulo de Duffay, e Josquin de Près de Ockeghem.
- O crescimento do domínio do material, que nem sempre conduziu a progresso musical, mas muitas vezes a enigmas e sutilezas que impediram avanços20. Ockeghem foi mestre do cânon e foi chamado “o racionalista da música”.
- Desenvolvimento no uso das técnicas de imitação, que se tornou mais orgânico, dando coerência e corpo às formas, e alcançando alturas consideráveis.
A Inglaterra, neste ponto, parece ter sido mais conservadora. Os compositores ingleses parecem ter deliberadamente esperado até que os flamengos e borgonheses tivessem tentado todos os recursos do contraponto imitativo e esgotado seu engenho.
Art. 6. Idade de ouro do puro contraponto (século XVI)
O século XVI, idade do apogeu da pura polifonia vocal, foi certamente um dos mais importantes períodos da história da música. Não só porque produziu música de alto valor artístico, mas também porque forjou a técnica que, por primeira vez, permitiu aos compositores expressar-se em linguagem capaz de transmitir seu pleno significado – a aliança do contraponto e da expressão. Foi também o nascimento do real sentido da harmonia. Muitas vezes o aspecto “horizontal” do contraponto, ou seja, a independência das vozes, vinha em detrimento do aspecto “vertical” (a harmonia formada por todas as vozes soantes juntas), ou se conjugava dificilmente com ele. Foi nessa época, principalmente com Palestrina, que se chegou a perfeito equilíbrio desses dois aspectos.
Como aspecto menos positivo, pode assinalar-se que o “ar” modal a que nos referimos (com sua relativa maior amplitude estrutural) esteve em declínio. Os modos, nas mãos dos polifonistas, tenderam a enquadrar-se mais e mais em formas estereotipadas, e a reduzir-se ao Modo Jônico (Mixolídio), que é o Maior moderno, e ao Dórico, Menor Moderno. Na metade do século XVI já se veem autores que compõem abertamente nos Modos Maior e Menor.
Especialmente em Roma foi onde floresceu o ars canendi com magnificência de expressão nunca superada. Entre os primeiros fundadores da chamada Escola Romana, encontram-se Giovani Maria Nanino e Giovanni Animuccia, antecessor de Palestrina na Basílica de São Pedro. Sendo a liturgia romana a que inspirava todos os textos da composição polifônica, as suas formas musicais foram: Missas e Salmos; e sobretudo o Motete, composição de moda, que de quatro havia passado a seis ou mais vozes.
A característica principal das formas religiosas cultivadas em Roma era o estilo a cappella, assim chamado por ser o lugar em que se cantavam, e por extensão veio a significar “para vozes sós”. As execuções da Capela Sixtina, sem órgão, foram o modelo.
O Concílio de Trento teve papel importante na purificação do estilo da Escola Romana. A comissão encarregada por Pio IV de pôr ordem na música sagrada teve dois pontos principais como objetivo: a necessidade de fazer inteligíveis as palavras cantadas no templo, desenredando o virtuosismo exagerado dos flamengos, e o dever de impedir que se adotassem melodias de canções de textos equívocos, ou diretamente impróprios.
Os cardeais Vitellozzo Vitelli e Carlos Borromeo, no mês de janeiro de 1565, decidiram fazer algumas provas com execuções de música sacra, para assegurar que se entendessem as palavras: ad probandum si verba intelligerentur21. Na casa do Cardeal Vitelli, valendo-se de oito cantores pontifícios, escutaram três Missas de Palestrina a seis vozes, uma das quais foi a Missa Papae Marcelli. O resultado da audição foi completamente favorável, tanto que Pio IV desistiu de empreender reformas mais radicais e até mesmo aumentou a pensão do cantor pontifício. O incidente que aparentemente inspirou essa Missa aconteceu alguns dias depois da eleição do Papa Marcelo, e teve lugar no começo da Semana Santa de 1555. Durante as cerimônias, o Papa não gostou da maneira apagada e rotineira com que se cantou a música, e, mandando vir à sua presença o coro, disse aos cantores que suas interpretações deveriam ser levadas a cabo de maneira conveniente, com vozes claramente moduladas, a fim de que se pudessem ouvir e entender (audiri atque percipi possent). Palestrina, preocupado com as observações do Papa, decidiu escrever uma Missa que concordasse completamente com esses princípios.
Giovani Pierluigi da Palestrina tomou seu nome da cidade em que nasceu, no ano de 1526. Aos dez anos, foi acolhido entre os meninos cantores da Capela de Santa Maria Maior.
Sua carreira artística começou na sua pequena cidade natal, como organista e mestre da Catedral de Santo Agapito, cujo bispo era G. Maria del Monte. Mais tarde este foi eleito Papa, com o nome de Júlio III, e por esta ocasião chamou Palestrina a Roma, nomeando-o mestre da Capela Júlia, em São Pedro. Palestrina, que contava vinte e seis anos, compôs em agradecimento uma Missa em honra ao Papa, tomando como tema a antífona Ecce sacerdos Magnus. O Papa expressou seu agrado fazendo-o membro do coro pontifical, um grupo de seletas e distintas vozes. O fato parece ter causado animosidade entre os cantores, pois que se lê nos arquivos do coro que sua admissão foi “por ordem de Sua Santidade o Papa, sem exame e sem o assentimento dos cantores”.
No ano de 1555, Júlio III morreu de podagra. Seu sucessor, Marcelo II, morreu também quase em seguida, após vinte e um dias de sólio. No dia 23 de maio sucedeu-lhe Paulo IV, o Cardeal Carafa, que ordenou imediatamente a destituição de Palestrina e de outros cantores, pelo motivo de serem leigos.
Palestrina ressentiu-se do duro golpe e caiu enfermo. Mas após o Concílio de Trento, como vimos, sua fama restabeleceu-se. Foi eleito por São Pio V professor de canto do recém-fundado Seminário Romano. Em 1571, ao morrer Animuccia, diretor da Capela Júlia, Palestrina foi nomeado novamente para esse cargo.
Em 1578, Gregório XIII confiou a Palestrina e a Annibale Zoilo a revisão do Gradual gregoriano.
O Concílio de Trento havia recomendado uma revisão da liturgia. No campo da música, o Papa Gregório XIII, recomendava “purgá-la de muitos barbarismos, obscuridades, contradições, superfluidades e más notas (mali suoni)”, resultado de erros de copistas, equívocos, adições etc. O tema era não só difícil, senão controvertido, havendo existido fora da Itália oposição à revisão. O rei Felipe II de Espanha anunciou que proibiria o uso da nova versão em seu reino. Palestrina e outro músico romano, Annibale Zoilo, foram os revisores. Após alguns anos de trabalho, tanto os músicos como as autoridades religiosas chegaram à conclusão de suspender a investigação pelas dificuldades encontradas.
Durante os vinte e três anos que passou na Capela Júlia, Palestrina produziu obras de muita importância. São de se recordar os célebres Improperia a oito vozes, a coleção de Motetes dos Cânticos dos Cânticos, o Stabat Mater a oito vozes etc, todas joias da polifonia sagrada.
Nos últimos anos de sua vida, Palestrina gozou de grande prestígio entre os Pontífices, príncipes, artistas contemporâneos e o povo. Morreu no dia da Purificação de Nossa Senhora do ano de 1594 e foi sepultado na Basílica de São Pedro.
Outros músicos desta época foram Giovanni Animuccia, valioso colaborador da primeira casa do Oratório fundado por São Felipe Neri, que sucedeu Palestrina como mestre da Capela de São Pedro; Constanzo Festa, autor de muitas músicas vocais polifônicas religiosas que, não faz muito tempo, se cantavam ainda nas cerimônias solenes do Vaticano; Giovanni Maria Nanino, discípulo de Palestrina e seu sucessor na Capela de Santa Maria Maior, e, juntamente com ela, da Escola Romana de música. Da escola de Nanino saiu Felipe Anerio, que sucedeu Palestrina como compositor papal da Capela Papal. Dessa época são também Gregório Allegri (1582 – 1652), célebre por suas Lamentationes, e sobretudo pelo Miserere, que Mozart, adolescente, transcreveu de memória depois de haver escutado somente duas vezes em 1770; e Francesco Soriano, que, com suas Missas, Motetes, Salmos e Magnificat, de evidente inspiração palestriniana, completa o grupo da escola musical romana do século XVI.
À Espanha do século XVI a música religiosa católica deve não poucas obras mestras da polifonia litúrgica. Entre os compositores mais ilustres (de música instrumental) contam-se Luís Venegas Henestrosa, Tomás de Santamaría, Antônio de Cabezón. Este último foi o principal representante da produção para clavicímbalo e órgão do século XVI. Nasceu em Castrogeriz (Burgos), no ano de 1510, e morreu em Madri, em 1566. Cego de nascimento, ocupou o cargo de “músico de câmara e capela” de Felipe II. Mas, falando já mais estritamente do campo da composição sacra, os compositores que deram vida ao movimento ítalo-espanhol da Escola Romana foram Escobedo, Morales e Victoria.
Saliente-se nas composições de Escobedo a rigidez do mecanismo contrapontístico, que congela um pouco as vozes e limita a personalidade do estilo.
Cristóvão de Morales, nascido em Sevilha, no ano de 1512, morto em Málaga em 1553, cantor em Roma, na Capela Papal, de 1535 a 1545, sobrelevou-se por suas inspiradas Lamentationes e célebres Magnificat.
Tomás Luís de Victoria, nasceu em Ávila, em 1540, em Castela a Velha, pátria de Santa Teresa de Jesus, a quem o músico conheceu. Jovem ainda, em 1565, transladou-se a Roma, onde foi cantor da Capela Papal e maestro dos hinos do coro do Collegium Germanicum, além de diretor de música da Igreja de São Apolinário.
Victoria não escreveu uma só nota de música profana. Tinha bem presente a finalidade da música litúrgica, como se vê em uma dedicatória que fez de um de seus livros de música: “Homens perversos e depravados usam a música como excitante para entregar-se aos gozos terrenos, em vez de levantar-se beatificamente por meio dela a Deus e à contemplação das coisas divinas. Por minha parte (…) trabalho, graças a Deus, unicamente para conseguir que a modulação das vozes esteja exclusivamente dedicada ao fim para que foi em princípio inventada; quer dizer: Deo optimo clarissimo laudibusque suis (a Deus ótimo e glorioso, e para Seu louvor)”.
É clara a influência de Palestrina sobre Victoria, a tal ponto que suas obras foram amiúde confundidas, embora Victoria tenha conservado sua personalidade própria com um dramatismo todo particular. Citem-se como obras mais famosas os seus Motetes Jesu dulcis memoria e O vos omnes, assim como o sublime Motete para a Sexta-Feira Santa Tenebrae factae sunt, em que o sentimento patético é altamente logrado pela gravidade solene das vozes masculinas que insistem sobre o acorde perfeito menor; obras estas que podem rivalizar com as obras mestras de Palestrina, das quais certamente se aproxima, e entre elas sobressai-se o poderoso e inspirado Officium defunctorum, a seis vozes.
Byrd e Tallis destacam-se como os grandes compositores da escola inglesa. Tallis, o mais antigo por uma geração, classifica-se melhor no antigo tipo de contraponto e na antiga tradição modal; mas esta está tão desenvolvida em sua música, que em suas últimas obras tem já as características dos compositores da segunda metade do século. Essa combinação de sentido harmônico, tonalidade e ar modal e linear cria o ambiente perfeito para os textos penitenciais que tão freqüentemente usa em suas composições, como por exemplo as Lamentationes, In Jejunio et fletu, etc.
Byrd, diferentemente, usou com sucesso todo tipo de texto. É igualmente alegre e triunfal como em Laetentur coeli, Hodie Christus natus est; como contemplativo em Emendemus in melius, civitas sancti. É lírico em um Ave verum e sereno em um Justorum animae. Essa beleza ele não atribuía a si, senão à inspiração das palavras mesmas. Disse: “Há um poder oculto, como pude aprender por experiência, nos pensamentos sob as palavras; de maneira que, quando meditamos nas sagradas palavras, e as consideramos constante e seriamente, as notas adequadas espontaneamente são sugeridas” (Prefácio aos Gradualia). Essa fertilidade de ideias musicais é bem impressionante em Byrd, considerando que em toda a sua extensa obra não há duas frases iguais e que ele não usou os recursos convencionais do contraponto em voga em sua época.
Para terminar este breve resumo da história da polifonia clássica e litúrgica, que certamente passa por alto muitos e importantes autores, fale-se agora de Orlando de Lasso, que se poderia dizer que forma categoria à parte pelo variado de seu estilo, que junta muitos elementos da escola flamenga, em pleno período do estilo a capella da Escola Romana.
Nasceu em Mons, Bélgica, no ano de 1532, e morreu em Munique, em 1594. Residiu em diversos países da Europa culta e cortesã. Teve, entre outros cargos, o de mestre de capela de São João de Latrão, e encontrava-se com Palestrina, colega seu na Capela Júlia.
Em suas composições, nota-se a fusão do gênio nórdico com o latino. Orlando Lasso assimilou os elementos de arte nacionais de diversos países europeus e formou com eles unidade inconfundível. Seu estilo é igualmente construtivo no sentido flamengo, e equilibrado como a Escola Romana.
De temperamento extremamente ativo, sua obra representa um total de quase mil e duzentas peças, entre sagradas e profanas, o que representa quase o dobro do número, já colossal, das de Palestrina; o que em parte foi causa de um esgotamento nervoso, ao fim de sua vida.
Que este pequeno resumo da história da polifonia sagrada ajude-nos a formar nosso gosto com preferência por aquelas músicas que, segundo São Pio X, “são mais apropriadas para o uso religioso e tanto mais sagradas e litúrgicas quanto mais, por sua posição, espírito e irradiação, se aproximam do ‘melos’ gregoriano”. Outrossim diz São Pio X “que se tenha o cuidado e a preocupação de restaurar, ao menos nas principais igrejas a antiga escola de coro”.
“Não há nenhuma música instrumental, qualquer que seja, comparável à feita com as vozes dos homens, quando são boas, bem educadas e ordenadas”. Assim escrevia Byrd em suas Razões expostas brevemente pelo autor para persuadir a todos a que aprendam a cantar Escrito em época na qual o desenvolvimento dos instrumentos era muito primitivo, muitos creem, ainda hoje em dia, que conserva toda a sua validez.
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1. Cita-o em Quero ver a Deus o Pe. Maria Eugênio, (Ed. El Carmen), p. 595, na terceira nota. A nota inteira diz: “Não menospreza nem recusa São João da Cruz – como tampouco Santa Teresa – a natureza sensível, para encerrar-se numa noite que tudo ignora. O santo coloca a natureza no posto que lhe corresponde na escala de valores espirituais que devem conduzir-nos à união com Deus. Sabemos quanto os dois reformadores apreciavam que seus conventos estivessem em lugares de cujas belezas naturais pudesse a alma servir-se para recolher-se em si e elevar-se a Deus. Toda a teoria da arte em São João da Cruz dimana desse mesmo princípio: a realização artística deve ser simples, pura, evocadora e despojada – para ser pura e simples – para conduzir a alma a Deus sem retê-la no gozo estético”.
2. Essa ideia é desenvolvida por André Charlier, em seu artigo Por que o Gregoriano?, (Editorial Areté, Buenos Aires). Confrontar especialmente o ponto III, a partir da p. 39.
3. Em geral, podemos determinar o modo próprio de cada peça de Palestrina: 4º modo, 7º modo, etc.
4. Como o Tu es Petrus ou a Missa Aeterna Christi munera, entre outras, nas quais se nota a escala diatônica moderna, com a sua sensível, 7º grau, bem caracterizada.
5. O Côn. Jeanneteau, estudioso do canto gregoriano, definia-o desta maneira: “O modo gregoriano é o conjunto homogêneo de notas que se desenvolvem sobre ‘cordas’, em dependência de uma final; cordas que têm seu papel artístico próprio, pois que os movimentos internos dessas notas entre si produzem um ‘vocabulário’, uma sintaxe e formas particulares ou comuns. Todo o conjunto move-se com uma mesma dinâmica, criando estética própria, que chamamos Ethos”.
6. http://www.chmtl.indiana.edu/tml/9th-11th/MUSENCI_TEXT.html
7. http://www.chmtl.indiana.edu/tml/9th-11th/SCHENC_TEXT.html
8. Cfr. Gen. 4, 21; Ps. 150, 4; Ez. 33, 32.
9. Os números referem-se aos intervalos formados pelas vozes, por exemplo 8-5-1 = três notas que formam intervalos de 5ª e 8ª.
10. Movimento é a passagem de um som a outro. Ele pode ser direto, oblíquo ou contrário. Há movimento direto (motus rectus), quando duas partes movem-se no mesmo sentido; movimento oblíquo (motus obliquus), quando uma das partes não se move enquanto a outra sobe ou baixa; e movimento contrário (motus contrarius), quando as duas partes caminham em sentido inverso. Cfr. The study of Counterpoint from Johan Joseph Fux’s Gradus ad Parnassum, (W.W. Norton & Company Edition), p. 21.
11. Caracterizava-se por notas longas no tenor, intercaladas com pausas, e pelo discantus livre.
12. No Conductus e no Rondellus, tanto o tenor como o discantus eram livres.
13. Canto entrecortado, por muitas pausas em que a linha melódica passa de uma voz a outra.
14. Caracterizava-se pelo movimento rápido das vozes em discantus.
15. Forma que no século XII adquiriu máximo grau de perfeição. Nela, as vozes são mais independentes, tanto em relação à melodia como ao texto.
16. Em outras regiões do norte da Itália também floresceram durante o “Trecento” compositores tão notáveis como os de Florença.
17. http://www.chmtl.indiana.edu/tml/14th/MARPOME_TEXT.html
18. Vem da palavra “câncer” e denotava a multiplicidade desordenada dessas peças.
19. Abiatti, Historia de la Música, Vol. I, p. 311.
20. Notem-se, por exemplo, as “acrobacias” rítmicas de Duffay. É um pouco o que se observa no início da Ars Nova: o “racionalismo” dos avanços tecnológicos que sufoca a arte.
21. Para provar que se possam entender as palavras.