Quae est ista, quae ascendit de deserto… innixa super dilectum suum? — “Quem é esta que sobe do deserto… firmada sobre o seu amado?” (Cant. 8, 5).
Sumário. A Santíssima Virgem amava tanto a solidão, que, sendo ainda criança de três anos apenas, deixou seus pais e foi encerrar-se no templo. Imagina, pois, a que grau de recolhimento e de união com Deus deve ela ter chegado quando, feita Mãe de Deus, teve a sorte feliz de viver tantos anos com Jesus Cristo. Se aspiras a honra de ser filho de Maria, aplica-te com todo o cuidado a sua imitação, levando uma vida solitária e retirada. Por isso, ama o silêncio, conserva-te sempre na presença de Deus, e volve-te muitas vezes a Ele por meio de fervorosas orações jaculatórias.
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I. No tempo do dilúvio, o corvo mandado por Noé fora da arca ficou a comer os cadáveres; mas a pomba, sem pousar em parte alguma, voltou prestes ao ponto de onde partira. Assim, muitos, mandados por Deus a este mundo se detém infelizmente a gozar dos bens terrestres. Não assim a nossa pomba celeste, Maria. Conheceu que o nosso bem, a nossa única esperança deve ser Deus; conheceu que o mundo é cheio de perigos e que aquele que mais cedo o deixa é mais livre dos seus laços. Por esta razão, como afirmam São Germano e Santo Epifânio, a Santíssima Virgem, apenas chegada à idade de três anos, idade em que as crianças desejam mais vivamente a convivência com seus pais, foi encerrar-se no templo, onde melhor pudesse ouvir a voz de seu Deus e, melhor ainda, honrá-Lo e amá-Lo.
Diz Santo Anselmo que, enquanto a Bem-aventurada Virgem vivia no templo, “era dócil, falava pouco, estava sempre recolhida, sempre séria e sem se perturbar. Era, além disso, constante na oração, na leitura da Sagrada Escritura, nos jejuns e em todas as obras de virtude”. Era tão amante do silêncio, que, como ela mesma revelou à Santa Brígida, se abstinha de falar até com os próprios pais.
Não são menos belos os exemplos de recolhimento que a Virgem nos deu, depois de se desposar com o castíssimo São José. Conforme diz São Vicente Ferrer: “Maria não saía de casa senão para ir ao templo; e mesmo então, ia toda recolhida e com os olhos baixos.” Eis porque São Lucas observa que na visita a Santa Isabel: Abiit in montana cum festinatione (1) — “Ela foi com presteza às montanhas”, para ser menos vista em público e fugir o mais possível da sociedade dos homens.
Se Maria foi tão amante da solidão quando menina e tenra donzela, imagina a que grau de recolhimento e de união com Deus deve ela ter chegado quando, já Mãe de Deus, teve a grande ventura de viver trinta e três anos e de conversar familiarmente com Jesus Cristo. Tinham, pois, os anjos razão para, no dia da Assunção da Virgem ao céu, perguntarem: Quem é esta que sobe do deserto? Sim, porque Maria viveu sempre em solidão neste mundo, como num deserto.
II. Se aspiras à honra de ser filho verdadeiro de Maria Santíssima, deves aplicar-te com todo o cuidado à sua imitação, levando vida retirada e recolhida. Imagina, portanto, que a divina Mãe te diz o que o anjo disse um dia a Santo Arsênio: Fuge, tace, quiesce — “Foge, cala-te e descansa”.
Foge: Segundo o teu estado, retira-te à solidão ao menos pela vontade, evitando as conversações inúteis, mormente com pessoas de sexo diverso. Cala-te: ama o silêncio, que é chamado a guarda da inocência, a defesa nas tentações e a fonte da oração. Descansa: repousa em Deus pelo exercício da presença divina; porque, como Deus mesmo disse a Abraão, este exercício é o caminho mais curto para chegar às alturas da perfeição: Ambula coram me, et esto perfectus (2) — “Anda em minha presença e sê perfeito”.
Para imitares assim a vida solitária de Maria Santíssima, não é preciso que te escondas em alguma gruta ou no deserto; nem tampouco que deixes as ocupações do teu estado; porquanto é mais meritório trabalhar para Deus, do que descansar para pensar em Deus. É todavia necessário que faças cada dia alguma, ainda que breve, meditação. E como a Bem aventurada Virgem conservava todas as palavras de Jesus Cristo em seu coração, comparando-as umas às outras(3), faze tu também dos bons pensamentos, havidos na meditação, um ramalhete de flores, afim de refrescar durante o dia o espírito pela sua recordação.
É utilíssimo, sobretudo, o uso das orações jaculatórias, que se podem fazer em qualquer parte, tempo e ocupação. Delas diz São Francisco de Sales que suprem a falta de todas as outras orações; mas todas as orações não poderiam suprir a falta delas. — Ó Virgem Santíssima, obtende-nos o amor à oração e à solidão, afim de que, afastando de nós o amor às criaturas, só possamos aspirar a Deus e ao paraíso, onde esperamos ver-vos um dia, para convosco louvar e amar para sempre a vosso Filho Jesus, por todos os séculos dos séculos. (*I 174 271.)
- Luc. 1, 39.
2. Gen. 17, 1.
3. Luc. 2, 51.
Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III – Santo Afonso