NUNCA MAIS A GUERRA?

guerra

“Nunca mais a guerra!”- exclamou Paulo VI em seu discurso perante a ONU em 4 de outubro de 1965. O Papa Francisco recentemente ecoou este grito ao escrever que “é muito difícil hoje defender os critérios racionais, amadurecidos em outros tempos, para falar de uma possível ‘guerra justa’. Nunca mais a guerra!”(Encíclica Fratelli tutti, 3 de outubro de 2020, n° 258).

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

Se as objeções feitas à doutrina da guerra justa não são novas, seria errado tirar conclusões precipitadas: “É importante, então, não rejeitar [a doutrina da guerra justa] sob o pretexto do mau uso dela, mais do que se rejeitaria qualquer ideia de amizade sob o pretexto de que falsos amigos podem tirar proveito dela”(Michael Walzer, Guerras justas e injustas, Gallimard, Paris, 2010, pág. 11). “A objeção de que as guerras travadas nos últimos trinta anos, do Vietnã ao Iraque, não levaram muito em conta esses princípios não põe em questão o caráter normativo dos princípios da guerra justa. O fato de que os princípios podem ser violados não significa que esses princípios não existam”(Monique Canto-Sperber, A ideia da guerra justa , PUF, Paris, 2010, pág. 34).

Raízes remotas

Desde a Antiguidade, os filósofos têm refletido sobre a guerra. Para Platão, a moderação é necessária para resolver a discórdia (stasis) entre as cidades gregas, mas não para travar uma guerra (polemos) contra as nações bárbaras. Se, de fato, uma amizade natural une os gregos, uma inimizade igualmente natural os opõe aos bárbaros (cf. A República , livro. 5, 470cd; As Leis, livro 1, 629cd).

Segundo Cícero, “a lei feudal[1] do povo romano determinou cuidadosamente tudo o que dizia respeito à equidade da guerra. Ele nos ensina que uma guerra não pode ser justa se não tiver sido precedida de um pedido de reparação e se não for regularmente declarada” (De Officiis , livro 1, cap. 11). Além disso, “devemos poupar aqueles que não foram cruéis ou bárbaros na luta” (Ibid.).

Hesitações dos primeiros cristãos

Os primeiros cristãos mostraram-se bastante reticentes quanto à profissão militar, que parece ser pouco compatível com a mansidão evangélica: “Eu, porém, digo-vos que não resistais ao (que é) mau; mas, se alguém te ferir na tua face direita, apresenta-lhe também a outra”(Mt 5,39). “Porém Jesus disse a Pedro: Mete a tua espada na bainha. Não hei-de beber o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18,11; Mt 26,52), “não torneis mal por mal a ninguém, procurando fazer bem, não só diante de Deus, mas também diante de todos os homens. 18 Se é possível, tanto quanto depende de vós, tende paz com todos os homens; 19 não vos vingueis a vós mesmos, ó caríssimos, mas dai lugar à ira, porque está escrito: A mim me pertence a vingança; eu retribuirei, diz o Senhor.”(Rm 12; 17,19).

No início do terceiro século, Tertuliano enumera detalhadamente os perigos que ameaçam o soldado cristão a serviço de um poder pagão: “Zelará ele pelos templos aos quais renunciou? Ceiará ele nos lugares proibidos pelo Apóstolo? Defenderá pela noite aqueles que ele pôs em fuga de dia com seus exorcismos, apoiando-se e descansando sobre a lança com a qual o lado de Jesus Cristo foi trespassado? Carregará a bandeira rival de Cristo? Pedirá a armadura do príncipe aquele que já a recebeu de Deus? O morto que espera a trombeta do anjo para acordá-lo ficará perturbado pela trombeta que desperta o soldado? O cristão será queimado [isto é, cremado], de acordo com a disciplina do acampamento (militar), ao qual não é lícito queimar e a quem Cristo remeteu a pena do fogo? Quantos outros atos no serviço militar que só podem ser atribuídos à prevaricação! Já não é uma prevaricação recrutar-se do campo da luz para o campo das trevas? “(Da Coroa do Soldado, cap. 11).

Em meados do século V, São Leão Magno adverte os soldados que fizeram penitência para não voltar à ocasião do pecado: “É totalmente contrário às normas da Igreja voltar à milícia do mundo, após a ação da penitência […] pois quem está engajado nas fileiras do demônio, está na milícia deste mundo ”(Carta 157 a Rustique, n° 13).

O esboço de uma doutrina

Alto funcionário do Império Romano, antes de se tornar Bispo de Milão, Santo Ambrósio destacou no final do século IV a estreita relação entre a profissão militar e a virtude da justiça:

 “A força que defende a pátria contra os bárbaros é inteiramente coerente com a justiça, bem como a que protege dos ladrões, os enfermos ou companheiros. […]

“Existem duas maneiras de pecar contra a justiça: uma é cometer um ato injusto, a outra é não defender uma vítima contra um agressor injusto. […]

“Quem não repelir a injustiça que ameaça seu irmão, enquanto pode, é tão culpado quanto quem comete a injustiça” (De Officiis , livro 1, cap. 27, 29 e 36)

Discípulo de Santo Ambrósio, Santo Agostinho não escreveu nenhum tratado sobre a guerra e a profissão militar. Por outro lado, ele intercalou seus escritos com comentários circunstanciais que não deixariam de alimentar a reflexão de filósofos e teólogos ao longo dos séculos.

No Evangelho, o único conselho dado aos soldados não proíbe o serviço em armas: “Se a doutrina cristã condenasse todas as guerras, os soldados mencionados no Evangelho teriam sido informados que eles só tinham de largar as armas e se retirar do serviço militar. Mas, ao contrário, foi-lhes dito: “Não façais violência a ninguém, nem denuncieis falsamente; e contentai-vos com o vosso soldo.” (Lc 3,14) Ao ordenar aos soldados que se contentem com o seu salário, o Evangelho não os proíbe de ir à guerra” (Carta 138 a Marcelino, n° 15 // Contra Faustum, livro 22, cap. 74).

A decisão de ir para a guerra é da exclusiva responsabilidade da autoridade política suprema: “O que importa, nas guerras que são empreendidas, são as causas que as provocam e aqueles que são os seus autores. No entanto, a ordem natural exige, no interesse da paz da humanidade, que o poder de comandá-la caiba ao príncipe, e que o dever de fazê-la, para a paz e o bem geral, caiba ao soldado” (Contra Faustum, livro 22, cap. 75).

Esta decisão deve ser motivada pela reparação de uma injustiça grave: “Costumamos definir como guerras justas aquelas que punem as injustiças, quando é necessário, por exemplo, ir à guerra contra uma nação ou uma cidade que negligenciou punir um erro cometido por seu próprio povo ou para restaurar o que foi injustamente tirado” (Perguntas sobre o Heptateuco, livro 6, cap. 10).

O objetivo final da guerra só pode ser o restabelecimento da paz: “É preciso desejar a paz e somente guerrear por necessidade, para que Deus possa livrá-lo da necessidade de desembainhar a espada e conservá-los na paz. Não buscamos a paz para incitar a guerra, mas travamos guerra para obter a paz. Portanto, permaneça amigo da paz, mesmo combatendo, a fim de que a vitória sirva para levar o inimigo de volta às vantagens da paz.” […]

Portanto, seja a necessidade e não a vontade que tire a vida do inimigo no combate. Assim como respondemos com violência à rebelião e à resistência, devemos misericórdia aos vencidos e aos cativos, sobretudo quando os interesses da paz não podem ser comprometidos”. (Carta 189 para o Conde Bonifácio, n° 6)

A peste, fame et bello, libera nos Domine – Da peste, da fome e da guerra, livrai-nos Senhor” suplica a Ladainha dos Santos. Os males causados ​​pela guerra são, antes de mais nada, materiais e físicos, mas também e acima de tudo, morais: “O que acertadamente culpamos na guerra é o desejo de fazer mal, a crueldade na vingança, uma alma implacável, inimiga da paz, a fúria das represálias, a paixão pela dominação e todos os outros sentimentos semelhantes” (S. Agostinho, Contra Faustum, livro 22, cap. 74).

No entanto, longe de condenar indiscriminadamente a guerra, o Bispo de Hipona admite que ela às vezes é imposta aos homens de bem: “Acontece com freqüência que, para punir justamente esses excessos, é necessário que os próprios homens de bem se comprometam a travar uma guerra, seja por ordem de Deus, seja por ordem de um governo legítimo, contra a violência daqueles que resistem, quando os homens de bem se encontram em tal estado de coisas humanas, que a própria ordem os obriga a prescrever algo assim, ou a obedecer justamente a esses tipos de ordens”(Ibid.). Daí a convicção comum compartilhada por aqueles que, tanto pagãos como cristãos, ao longo dos séculos, desenvolveram a doutrina da guerra justa: “Embora a guerra seja um flagelo terrível que envolve toda sorte de calamidades, ela não é, entretanto, intrinsecamente má e contrária à lei natural. É sempre um mal físico muito grave; nem sempre é um mal moral. Pode ser justo e, por vezes, necessário” (Theophilo Ortolan, artigo “Guerra”, no Dicionário de Teologia Católica, vol. 6, col. 1908).

Guerra justa contra o pacifismo e belicismo

Pacifistas e pragmáticos não compartilham dessa convicção. Para os pacifistas, a guerra é sempre e em toda parte, imoral: “O pacifismo se traduz em um juízo de valor (a guerra é má), uma convicção (a guerra só produz o mal) e uma proibição (não se deve travar uma guerra)” (Monique Canto-Sperber, A ideia de guerra justa, PUF, Paris, 2010, pág. 5). Devemos deduzir que a legítima defesa individual também é imoral? E, se não, por que o que é lícito individualmente não deveria ser lícito quando se vive em sociedade? Além disso, a experiência não nos ensina que a fraqueza dos bons, muitas vezes, aumenta a audácia dos maus? Não é a função própria e a grandeza da virtude da força colocar fim ao mal e à injustiça por meio do uso controlado da violência?

Para os belicistas, a guerra é amoral, isto é, desprovida de qualquer moral, segundo o adágio romano: “Inter arma silent leges – Diante da guerra, as leis se ocultam”. Se é óbvio que a profissão militar pressupõe a aquisição de um determinado conhecimento, não é menos verdade que quem utiliza essas técnicas e quem paga o preço são homens, isto é, pessoas cujas ações são moralmente boas ou más. Aqui, como em outros lugares, o adágio de que os fins justificam os meios não prevalece. Ninguém pode legalmente usar meios injustos ao serviço de uma causa justa.

O “jus ad bellum

Nem pacifista e nem belicista, Santo Tomás de Aquino aborda a questão da guerra em seu Tratado sobre a Caridade (II-II, q. 23-46). Um dos frutos da caridade é, de fato, a paz (Gl 5,22), que é perturbada ou restaurada pela guerra (q. 40). Ora, para trabalhar pela paz, a guerra deve ser justa em seu desencadeamento (jus ad bellum), bem como em seu desenvolvimento (jus in bello).

Três condições são necessárias para que a guerra seja justa em seu desencadeamento:

Primeiro,a autoridade do príncipe, por cujas ordens devemos travar a guerra. Não cabe a uma pessoa, particular, iniciar a guerra porque ela pode fazer valer o seu direito no tribunal do seu superior: porque também o ato de convocar a multidão, necessária para a guerra, não pertence a uma pessoa em particular. Uma vez que o cuidado dos assuntos públicos foi confiado aos príncipes, cabe a eles zelar pelo bem público da cidade, reino ou província sob sua autoridade. Assim como defendem legalmente com a espada contra os perturbadores internos quando punem os malfeitores, […] assim também cabe a eles defender o bem público pela espada da guerra contra os inimigos externos” (II -II, q. 40, no. 1 C). Só a autoridade política suprema é competente para decidir sobre o ingresso na guerra, pois cabe a ela defender o bem comum contra os perturbadores internos (malfeitores, criminosos, insurgentes) e os inimigos externos. Os indivíduos e as sociedades imperfeitas que constituem a cidade não podem iniciar uma guerra. Em primeiro lugar, como partes da cidade, podem obter justiça recorrendo à arbitragem e aos tribunais instituídos para esse fim pela autoridade política suprema. Em seguida, sua posição de subordinação não lhes assegura uma percepção adequada do bem comum em sua complexidade, nem a autoridade necessária para mobilizar as vontades de seus concidadãos a serviço das armas. 

Segundo,uma causa justa: é necessário que se ataque o inimigo por alguma falta” (Ibid.). A cidade, que não está subordinada a nenhuma autoridade política superior, não tem outro recurso para recuperar seus direitos do que se defender contra a injustiça, se necessário pela guerra: “Só um erro pode constituir uma causa justa de guerra” (Francisco Vitoria, Lição sobre o direito da guerra, pars II, n° 13). É também necessário assegurar “que o dano infligido pelo agressor à nação ou à comunidade das nações seja duradouro, sério e certo; que todos os outros meios de pôr fim a ele se mostraram impraticáveis ​​ou ineficazes; que as sérias condições para o sucesso tenham sido atendidas; que o uso das armas não conduza a males e desordens mais graves do que o mal a ser eliminado” (Catecismo da Igreja Católica, 1992, n. 2309).

Terceiro,uma intenção justa entre aqueles que fazem a guerra: deve ser destinada à promoção do bem ou evitar o mal”[…] Com efeito, mesmo que a autoridade daquele que declara a guerra seja legítima e sua causa justa, acontece que a guerra se torna ilícita por uma má intenção”(II-II, q. 40, a. 1 , c). A guerra deve ser um ato de justiça, cujo fruto esperado é a paz: “Aqueles que conduzem guerras justas têm a paz em suas intenções” (II-II, q. 40, a. 1, ad 3). No entanto, não é incomum que uma declaração de guerra seja justa em seu objeto (injustiça a ser reparada), mas injusta em seu fim (ódio, desejo de poder, hegemonia econômica ou geoestratégica, razão de Estado, etc.).

O “jus in bello

Uma vez declarada a guerra pela autoridade política, cabe aos soldados conduzi-la de acordo com a justiça: “Os soldados […] não são, de modo geral, responsáveis ​​pela justiça da causa pela qual combatem; sua responsabilidade é limitada pelo âmbito da atividade e pela autoridade que lhes pertence” (Michael Walzer, Guerras justas e injustas, Gallimard, Paris, 2010, pág. 535). Duas condições condicionam a justiça da guerra em seu desenvolvimento: Primeiro, a discriminação que distingue os combatentes – que podem matar e serem mortos – e os não combatentes (civis, feridos, doentes, prisioneiros) – que devem ser protegidos. Em segundo lugar, a proporcionalidade que consiste em adaptar os meios aos fins da guerra, evitando mortes e destruições desnecessárias.

Santo Tomás de Aquino sintetizou o ensino da tradição cristã sobre a guerra justa. Extraindo abundantemente dos escritos de Santo Agostinho, o Aquinate distingue as regras morais que devem reger o desencadeamento da guerra (jus ad bellum) e seu desenvolvimento (jus in bello). Quanto ao seu desencadeamento, a guerra só é lícita se for declarada pela autoridade política a fim de reparar uma injustiça grave e restaurar a paz (II-II, q. 40, a. 1). Quanto à sua conduta, a guerra só é justa se respeitar os princípios da discriminação – preservando e protegendo os não combatentes – e da proporcionalidade – escolhendo os meios adequados para evitar mortes e destruições desnecessárias.

Os impactos de uma doutrina

A doutrina da guerra justa sofreu, subseqüentemente, um longo eclipse. Ela retornou no contexto da Guerra do Vietnã, graças a uma obra de Michael Walzer intitulada Guerras justas e injustas (Basic Books, Nova York, 1977). Desde então, as alusões a ela se multiplicaram no Atlântico:

  • A invasão do Panamá pelos Estados Unidos (20 de dezembro de 1989 – 31 de janeiro de 1990) foi denominada “Operação Justa Causa“,
  • pouco antes de ordenar a invasão do Iraque, George W. Bush qualifica a intervenção militar como “causa justa” (Discurso sobre o Estado da União, 28 de janeiro de 2003),
  • Decidido a enviar mais tropas ao Afeganistão, Barak Obama justificou-se evocando a ideia de uma “guerra justa” (Discurso de recepção do Prêmio Nobel da Paz, 10 de dezembro de 2009).

Herdeira de uma antiga tradição cristã, recentemente invocada por autoridades seculares, a doutrina da guerra justa é paradoxalmente objeto de reservas por parte do pontífice reinante (cf. encíclica Fratelli tutti, 3 de outubro de 2020, n ° 258). Inconformado com a pena de morte, o atual magistério também está incomodado com a guerra. Como, aos seus olhos, a sociedade está ao serviço da pessoa e o direito à vida é fundamental, tornar-se incompreensível e insustentável ser privado da vida ou mesmo sacrificá-la para garantir o bem comum. Esses impactos levaram o Coronel François-Régis Legrier a lançar um novo olhar à guerra justa em “Se você quer a paz, prepare-se para a guerra” (Via Romana, 2018). Suas reflexões merecem destaque.

A democracia face à guerra

A primeira parte da obra descreve a difícil relação entre democracia e guerra ao longo de quatro eixos:

  • Oscilação entre pacifismo e belicismo. A França do período entre guerras ilustra o mal-estar da democracia diante da guerra. Longo período pacifista, a 3a Republica acabou se preocupando com os perigos crescentes. De pacifista, tornou-se de repente, belicista. O autor anônimo de um panfleto publicado em 1947 fez a amarga observação: “Quando nos vimos como se estivéssemos em campo aberto, homem contra homem, 40 milhões contra mais de 60 milhões, foi então, e só então, que os mesmos pacifistas, os desarmadores do país, fizeram-se clamantes da guerra: desarmaram-se (porque o nosso armamento tinha evoluído como nossas ocupações) e, desarmados, quiseram lutar, ou melhor, fazer com que a França fosse vencida a qualquer custo.” (O patriotismo não deve matar a pátria, Éditions de la seule France, pág. 25) Mais tarde, a era da descolonização veria o declínio do belicismo e o retorno do pacifismo.
  • Redução tecnológica da guerra. O progresso técnico que invadiu nosso cotidiano não poupou as Forças Armadas. A irrupção da tecnologia resultou na redução do número e na excessiva tecnicização do exército e dos militares que o compõem. Ora, a Guerra do Vietnã pelos Estados Unidos e a intervenção no Afeganistão pela URSS testemunharam o fato que a superioridade tecnológica não é suficiente para vencer uma guerra. Ela não é suficiente para compensar a falta de vontade política e militar. A tecnologia não vence guerras, ela só nos permite evitar o confronto.
  • Confusão entre políticos e militares. A democracia vive no curto prazo, ou seja, no intervalo entre duas eleições, enquanto a guerra age no longo prazo. As batalhas podem ser vencidas rapidamente, especialmente se se beneficia de superioridade técnica, mas essas vitórias são insuficientes para vencer uma guerra. As batalhas vencidas por Napoleão I não foram suficientes para restaurar a paz na Europa, nem as recentes operações em Kosovo (1999), no Iraque (2003) e na Líbia (2011) foram capazes de trazer paz à Europa e ao Oriente Médio. Os soldados podem vencer muitas batalhas, mas apenas os políticos podem vencer a guerra e restaurar a paz.
  • Guerra a serviço da ideologia. O pragmatismo que presidiu os conflitos de outrora cedeu lugar à ideologia. Já não se trata mais hoje – pelo menos na aparência – de defender hectares de terra, uma saída para o mar ou de acesso a recursos, mas de estabelecer a democracia universal. A exaltação dos valores democráticos acaba por dividir a humanidade entre o campo do Bem e o campo do Mal. Esta demonização do adversário resulta inevitavelmente em guerra total, que ignora a distinção entre combatentes e não combatentes (cf. os bombardeios de Dresden, Hiroshima e Nagasaki em 1945). Ao mesmo tempo em que afirma libertar as pessoas do totalitarismo, a democracia adota seus vícios. Isto é o que acontece quando uma determinada forma de governo se torna uma religião secular.

Por uma abordagem mais serena

As graves desordens que agitam as nossas sociedades – Marcel De Corte chegou a falar em dissociedade – dificultam uma aplicação mecânica da doutrina da guerra justa. Em vez de modificar uma doutrina desenvolvida para uma cidade de acordo com a ordem natural, o Coronel Legrier sugere trabalhar em quatro direções para que a questão da guerra possa ser abordada novamente com serenidade:

A – De volta às guerras limitadas. As recentes guerras ideológicas no Oriente Médio geraram o caos, o surgimento do Estado Islâmico, a eclosão do terrorismo e fluxos migratórios significativos. Portanto, é urgente retornar às guerras limitadas porque  elassão medidas pela realidade.

B – Esclarecendo a questão do homicídio. A questão da relação entre a cidade e os cidadãos, ou seja, entre o todo e as partes, deve ser esclarecida na mente das pessoas a fim de combater os excessos do individualismo e do totalitarismo. Uma concepção orgânica da sociedade permitiria compreender melhor os meios – às vezes extremos – que a sociedade deve usar contra os inimigos internos e externos.

C – Combatendo o hedonismo. Numa sociedade obcecada pela busca do prazer e do conforto individual, o ideal militar centrado na defesa do bem comum até o sacrifício da própria vida é algo curioso. Este abismo entre o exército e a sociedade torna difícil o recrutamento de soldados e a compreensão dos riscos que eles assumem para o nosso bem comum.

D – Dar prioridade à razão sobre a emoção. Os meios de comunicação de massa, a Internet e as redes sociais submetem os atores da vida pública, incluindo nossos soldados, à tirania da emoção. Reestabelecer o controle da razão sobre a emoção é um pré-requisito necessário para ser capaz de abordar serenamente as questões da vida…e da morte.

Pe. François Knittel, FSSPX

Notas

(1) Relativos aos tratados de paz