Fonte: Boletim Permanencia
Este texto é o resumo de um longo artigo do historiador argentino Rúben Calderón Bouchet (1918-2012).
Tornou-se moda entre os cristãos referir-se à nossa religião com a denominação de judaico-cristã. A Igreja, na medida em que rompeu sua conexão original com a Sinagoga, adaptou seu magistério às exigências da civilização greco-latina e se separou de tudo aquilo que, na tradição israelita, pudesse ter de hebraico. A atitude de Pedro e de Paulo ao tomar Roma como centro do seu apostolado foi, desde o começo, favorável a um entendimento profundo com as expressões mais notáveis da civilização helênico-romana.
Política, arte, ciência, economia e língua vinham agora do mundo gentio greco-latino. De Israel se conservava a Escritura e, com ela, o conteúdo da tradição revelada, mas examinado à luz dos princípios impostos pelo mistério do Verbo Encarnado. O encontro de gregos e cristãos foi decisivo para o futuro de uma assembleia religiosa cuja catolicidade dependia dessa união.
Ninguém pode negar que o povo de Israel, como qualquer outro, teve usos e costumes que dependiam naturalmente de seu temperamento, de suas virtudes, de seus vícios, das vicissitudes da sua história, de sua ignorância e de seus conhecimentos. Separar isso dos conteúdos revelados tem sido a tarefa do Magistério da Igreja.
O Símbolo de Niceia é uma condensação particularmente feliz desse discernimento e prepara, no início do século IV, a formulação de uma Teologia Dogmática que pouco terá que adicionar a seu conteúdo essencial, no transcurso dos séculos.
Esse esforço exegético e seu conteúdo dogmático nada deve à “forma mentis” israelita, mais inclinada às longas dissertações em torno dos artigos da fé, da interpretação da lei ou das visões apocalípticas, mas a uma clara precisão doutrinária onde aparece, com toda a sua força, o gosto greco-romano pela clareza e pela conclusão.
O núcleo da religião está constituído pela Revelação e essa, em sentido estrito, não é judia, ainda que o povo hebreu houvesse sido elegido por Deus para sua recepção. Chamar os conteúdos revelados por Jesus de judaico-cristãos teria sentido se não fossem revelados, mas sim o fruto da espiritualidade hebreia, como foram suas instituições, seus cânticos, suas visões e sua história nacional.
Jesus obrou em todo momento como Deus feito homem e não como judeu. Reclamou para si uma autoridade e uma obediência que nenhum cidadão israelita poderia reclamar.
Sócrates, Platão, Aristóteles são gregos na medula de sua espiritualidade e temos que agradecer à Hélade a herança dos seus respectivos ensinamentos. Mas Cristo é Deus e, embora encarnado no seio de uma Virgem hebreia, nem seu espírito, nem suas palavras estão circunscritas às fronteiras do povo onde nasceu. Na relação vital Cristo-Israel, o último é o veículo ou, se quiser, o meio através do qual ressoa a eternidade do Verbo.
Assim como Deus elegeu o povo de Israel para que de seu seio nascesse o Messias, elegeu uma civilização para estabelecer sobre ela sua Igreja. De Israel exigiu a lealdade à Aliança e sobre os que foram fiéis edificou sua comunidade sacrificial. Da latinidade, tomaria as obras: o idioma, as ciências, o direito, a arte, os critérios políticos, econômicos e militares. Em uma palavra, tudo isso que a latinidade, assumindo o esforço genial dos gregos, plasmou com seu gênio peculiar.
Em que consiste esse gênio e por quê Deus pôs seus olhos em Roma para que fosse a cabeça de sua Igreja? É um velho princípio de sabedoria teológica admitir que os desígnios da Providência são inescrutáveis. Atreveria-me a afirmar que a importância política de Roma, seu gênio universal e essa disposição prática que mostrou no governo de outros povos não deixaram de entrar nos desígnios da Providência, nem careceram de forças para que Roma fosse eleita como instrumento da expansão universal da Igreja Católica.
Roma foi erigida por inspiração do Espírito Santo, e porque sua eleição supunha a adoção do instrumento apto para expandir a fé e conservá-la no idioma mais adequado por sua essencialidade e sua precisão enunciativa. Essas são as virtudes que permitiram a permanência das verdades contidas no traditum e a possibilidade de que fossem claramente explicadas a todas as inteligências.
Uma das piores tentações que ameaçam o cristão de hoje é renunciar à férula romana para substituí-la por um angelismo de um Evangelho sem fundamento civilizador. Nestes tempos nasceu a ideia peregrina de renunciar às categorias intelectuais greco-latinas para favorecer, como se diz, um utópico encontro semântico com outras civilizações.
Roma, e a civilização que nasceu de seu encontro com a revelação cristã, foi escolhida por muitas razões que nós ignoramos, mas é preciso perceber que a civilização latina foi a mais adequada, por suas condições, para cumprir a missão universal da Igreja.
A civilização latina, enquanto recebeu o influxo da religião católica, começou o grande périplo de uma transformação cultural solicitada pela pressão misteriosa da Graça. Os efeitos transfiguradores da vida sobrenatural não só se fazem sentir sobre a alma individual, influem também sobre as atividades do espírito como a ciência, a economia, a arte e a política, sob a influência do homem sobrenaturalmente regenerado.
A “humilitas” é a consciência de finitude e de dependência total perante Deus que descobre o único caminho verdadeiro pelo qual pode transitar nosso reencontro com o Absoluto. A questão social, como se diz hoje, não se poderá resolver jamais se não é na figura da generosa entrega dos fortes a serviço dos mais fracos.
A fé, a esperança e a caridade não são virtudes imbecis e com uma exagerada propensão a crescer em terrenos covardes. Requerem, antes de tudo, uma boa vontade e uma inteligência dócil ao dado revelado e pouco influída pelo desejo constante de justificar más paixões e interesses baixos. Se pensarmos bem, para ser um bom cristão é necessário uma limpeza de alma pouco comum e isso, no fim das contas, implica em nobreza.
A aproximação destes dois termos, judaico-cristão, aplicado às verdades reveladas por Deus, traz consequências lamentáveis porque relativiza o conteúdo religioso, fazendo-o depender da civilização hebreia, e isso não é católico, embora venha com a pretensão de ser muito protestante e moderno. Tampouco é aceitável se o aplicamos à nossa civilização, que é, essencialmente, greco-latina.