O ESTADO, EDUCADOR UNIVERSAL?

Quando as leis ameaçam a boa educação dos filhos, é necessário, nestes tempos de início de ano letivo, recordar os princípios naturais e católicos: da família, da Igreja e da nação – quem é responsável em matéria de educação?

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

Para enervar a influência do ambiente familiar, acresce hoje o facto de que, quase por toda a parte, se tende a afastar cada vez mais da família a juventude, desde os mais tenros anos, da família”. Essas observações são de uma atualidade premente. Criticam o crescente papel do Estado na educação, sempre sob o pretexto do melhor para a criança. No entanto, eles foram escritos há quase 90 anos pelo Papa Pio XI!

Quem é responsável por ensinar e educar as crianças? A resposta a esta pergunta parece ter sido estabelecida na França desde a Revolução Francesa: é o Estado que reivindica e estabelece a si o monopólio da educação, depois de ter hesitado por muito tempo entre “instrução pública” e “educação nacional”. Com efeito, dependendo do período, cabia ainda aos pais e à Igreja educar os filhos.

Desde que as congregações docentes foram expulsas do país no final do século XIX, o Estado tomou, de fato, o lugar da Igreja para ensinar a maioria das crianças da França. Hoje, o Estado é responsável pela instrução e educação, a fim de garantir um modelo de vida social comum. Os diversos totalitarismos do século XX fazem parte dessa herança, e no século XXI quase todos estão convencidos da validade dessa situação. Desde o fim do Primeiro Império, que instituiu o monopólio estatal, nenhum regime contestou essa situação. Pode ser interessante consultar o magistério da Igreja para conhecer a perene doutrina católica sobre esta questão.

Foi precisamente o Papa Pio XI que, em 31 de dezembro de 1929, publicou uma encíclica completa sobre a educação: Divini illius magistri, da qual são extraídas as citações que se seguem. Nela, ele recorda em particular os respectivos papéis das diferentes sociedades (Igreja, família, Estado) no domínio da educação dos filhos. Basta-nos transcrever a exposição do Papa para recordar os princípios benéficos para a sociedade e para os indivíduos que deveriam, em si mesmos, inspirar os servidores do bem comum, independentemente das situações concretas e históricas de cada país.

A MISSÃO DE CADA SOCIEDADE

1° O da Igreja

A Igreja, que é a sociedade mais perfeita em virtude de sua ordem e seus fim sobrenaturais, possui dois títulos distintos que justificam seu dever de educar a juventude:

  • A missão e a autoridade do Magistério que lhe foi dada por Cristo lhe conferem um direito inviolável ao livre exercício daquele Magistério. Sua missão é ensinar a Verdade (o próprio Deus) e toda a verdade revelada por Ele.
  • Sua maternidade sobrenatural pela qual ela engendra, eleva e nutre as almas na vida da graça. Ela é responsável por dar-lhes todos os meios sobrenaturais necessários para a salvação: as verdades a serem cridas, os deveres a serem praticados, as ferramentas sobrenaturais para alcançar o fim sobrenatural conhecido pela fé e desejado pela vontade movida pela graça.

As consequências são: 

  • a independência da Igreja de todo poder terreno, tanto na origem como no exercício da sua missão educativa e, 
  • o direito de julgar e de usar todo conhecimento, como meio a ser empregado ou não em relação ao fim sobrenatural que lhe é próprio.

A subordinação dos fins naturais do homem ao seu fim sobrenatural reflete-se na hierarquia das sociedades naturais (família e sociedade civil) em relação à sociedade sobrenatural, que é a Igreja.

“É, pois, com pleno direito que a Igreja promove as letras, as ciências e as artes, enquanto necessárias ou úteis à educação cristã, e a toda a sua obra para a salvação das almas, fundando e mantendo até escolas e instituições próprias em todo o gênero de disciplina e em todo o grau de cultura.”

Esta missão constitui, aliás, uma grande ajuda para as famílias e não pode prejudicar a ordem civil, pois a Igreja procura aproximar-se do poder público para o bem comum. 

“O exercício deste direito não pode considerar-se ingerência indevida, antes é preciosa providência maternal da Igreja tutelando os seus filhos contra os graves perigos de todo o veneno doutrinal e moral.”

Finalmente, sua missão é universal: “Ensinai a todas as nações” (Mt 28,19). Isso, em si mesmo, dá à Igreja o direito de difundir a verdade a todos os povos.

Isto resultará numa verdadeira concórdia e harmonia entre estas prerrogativas da Igreja e os direitos da família e da sociedade civil.

2° O da família

“Em primeiro lugar, com a missão educativa da Igreja concorda admiravelmente a missão educativa da família, porque de Deus procedem ambas, de maneira muito semelhante. À família, de facto, na ordem natural, Deus comunica imediatamente a fecundidade, que é princípio de vida, e por isso princípio de educação para a vida, simultaneamente com a autoridade que é princípio de ordem.”

A família recebe um direito à educação antes de qualquer direito da sociedade civil sobre a criança. “O filho é, por natureza, algo do pai” (Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica, H-H, q. 10, a. 12). A família, portanto, mantém o direito de educar até que a criança seja capaz de ser auto-sufuciente.

A Igreja recordou este dever parental no Código Canónico de 1917: “Os pais têm a gravíssima obrigação de zelar, com todas as suas forças, pela educação religiosa e moral, bem como pela educação física e cívica dos seus filhos; devem também prover o seu bem temporal” (cânon 1113), cânon ao qual correspondem os cânones 793 e 1136 do código de 1983.

O Papa Pio XI insiste no grave dever dos pais de zelar pelas almas de seus filhos escolhendo uma boa escola: 

“Por natureza os pais têm direito à formação dos filhos, com esta obrigação a mais, que a educação e instrução da criança esteja de harmonia com o fim em virtude do qual, por benefício de Deus, tiveram prole. Devem portanto os pais esforçar-se e trabalhar energicamente por impedir qualquer atentado nesta matéria, e assegurar de um modo absoluto que lhes fique o poder de educar cristãmente os filhos, como é da sua obrigação, e principalmente o poder de negá-los àquelas escolas em que há o perigo de beberem o triste veneno da impiedade”, isto é, nas escolas laicas do Estado e nas escolas que não são totalmente católicas.

Mas é verdade que a Igreja tem encontrado, ao longo dos séculos, uma oposição direta a esses princípios.

O Homem Nasce Cidadão?

Uma objeção a esses princípios nos vem primeiro de Estados totalitários que reivindicam prioridade sobre a educação das crianças. O homem nasceria, primeiro, como um cidadão. Com efeito, perguntar-se-á: a criança não pertence em primeiro lugar ao Estado, à Nação, como reivindicado por todos aqueles que exigiram o monopólio da educação da juventude? A resposta é mais filosófica do que teológica: a criança, antes de se tornar cidadã, deve nascer. No entanto, ela não recebe a vida do Estado. Além disso, ela entra na sociedade civil não por conta própria, mas por meio de sua família.

A família tem o primeiro direito sobre a criança e, consequentemente, o dever de assumir essa função educativa. Isso, entretanto, não confere aos pais nenhum direito sobre os filhos, mas o que decorre do dever de conduzi-los ao seu fim. “Não se segue que o direito educativo dos pais seja absoluto ou despótico, pois que está inseparavelmente subordinado ao fim ultimo e à lei natural e divina”.

Então qual é o lugar reservado ao Estado no trabalho de educação?

3° O da sociedade civil

E mais especificamente, que direitos são conferidos à sociedade civil?

Os direitos relativos à educação dos filhos são atribuídos à sociedade civil, ou seja, ao Estado, “não a título de paternidade, como à Igreja e à família, mas sim em razão da autoridade que lhe compete para promover o bem comum e temporal, que é precisamente o seu fim próprio. Por consequência a educação não pode pertencer à sociedade civil do mesmo modo porque pertence à Igreja e à família, mas de maneira diversa, correspondente ao seu próprio fim”.

Qual é o lugar do Estado ao lado da Igreja e da família?

“O direito, de fato, que eles [os pais] têm de educar seus filhos, , como acima declaramos, não é absoluto ou despótico, mas dependente da lei natural e divina, e por isso sujeito à autoridade e juízo da Igreja, e outrossim à vigilância e tutela jurídica do Estado em ordem ao bem comum, tanto mais que a família não é sociedade perfeita que tenha em si todos os meios necessários ao seu aperfeiçoamento. Em tal caso, excepcional de resto, o Estado não se substitui já à família, mas supre as deficiências e providência com os meios apropriados, sempre de harmonia com os direitos naturais da prole e com os sobrenaturais da Igreja.”

Por ser responsável pelo bem comum, a sociedade civil tem o direito de vigilância e autoridade sobre as famílias, sem privá-las do direito de educar seus filhos. Esta autoridade permite assegurar a ordenação ao bem comum de todos os cidadãos que compõem as famílias governadas. 

“Ora este fim; o bem comum de ordem temporal, consiste na paz e segurança de que as famílias e os cidadãos gozam no exercício dos seus direitos, e simultaneamente no maior bem-estar espiritual e material de que seja capaz a vida presente mediante a união e o coordenamento do esforço de todos.”

Se o Estado tem direitos, ele também tem o dever, em matéria de educação, de proteger por suas leis o direito anterior da família à educação cristã da criança, e conseqüentemente respeitar o direito sobrenatural da Igreja a essa mesma educação. “Dupla é, portanto, a função da autoridade civil, que reside no Estado: proteger e promover, e de modo nenhum absorver a família e o indivíduo, ou substituir-se-lhes”, explica Pio XI, ainda na mesma encíclica.

O Estado também deve proteger os direitos da criança em caso de deficiência dos pais.

O Estado deve descartar tudo na vida pública que seja contrário à educação moral e religiosa da juventude. Ele procurará promover a ação da Igreja e a complementará, quando necessário.

“Portanto é injusto e ilícito todo o monopólio educativo ou escolástico, que física ou moralmente constrinja as famílias a frequentar as escolas do Estado, contra as obrigações da consciência cristã ou mesmo contra as suas legítimas preferências.” 

Qualquer monopólio da educação por parte do Estado seria, portanto, uma grave injustiça, ainda que reservasse justamente a gestão das escolas necessárias ao seu bom funcionamento: escolas preparatórias para determinados serviços públicos, tais como o exército, a polícia, a administração.

Finalmente, o Estado pode exigir uma educação cívica para as crianças. Para concluir sobre este assunto, 

“Por esta razão, a escola, considerada até nas suas origens históricas, é por sua natureza instituição subsidiária e complementar da família e da Igreja, e portanto, por lógica necessidade moral deve não somente não contraditar, mas harmonizar-se positivamente com os outros dois ambientes, na mais perfeita unidade moral possível, a ponto de poder constituir juntamente com a família e com a Igreja, um único santuário, sacro para a educação cristã, sob pena de falir no seu escopo, e de converter-se, em caso contrário, em obra de destruição.”

Conclusão

O bem da criança depende, portanto, de uma complementaridade harmoniosa entre a Igreja e o Estado, que infelizmente já não existe mais desde a sua separação em 1905.

Quase 115 anos depois, o Estado pretende ir cada vez mais longe e estabelecer a sua ideologia, uma verdadeira religião, já formando a criança o mais cedo possível e deixando assim uma impressão profunda e duradoura nos seus futuros cidadãos, daí a diminuição da idade de escolaridade obrigatória de 6 para 3 anos. Importa, portanto, recordar com Pio XI que, sem negar ao Estado a sua missão de assegurar o verdadeiro bem comum, que o Estado não é o único a se preocupar com o bem comum,…

“…a missão de educar pertence antes de tudo e acima de tudo, em primeiro lugar à Igreja e à família, pertence-lhes por direito natural e divino, e por isso de um modo irrevogável, inatacável, e insubstituível”.

Pe. Philippe Bourrat, FSSPX