O ÓDIO AO PENSAMENTO: O PONTIFICADO DO PAPA FRANCISCO

Nota do blog: Recomendamos que se leia (como pré-requisito) o livro O homem, animal político”, de Juan Antonio Widow, a fim de que se entenda a verdadeira noção de autoridade. Também a modo de complemento, após a leitura do texto recomendamos a palestra do Pe. Davide Pagliarani intitulada “O pontificado do Papa Francisco”.

por Dardo Juan Calderón

Fonte: Adelante la Fe – Tradução: Dominus Est

Meu corpo é meu

Se o crasso materialismo tivesse razão e o que chamamos “espírito” é, na realidade, uma secreção do cérebro — como é a bile do fígado ou os hormônios das glândulas — que se melhora e adapta-se com a evolução… por que esta secreção fica louca e se declara dona do corpo? Quem é o “eu” que se presume proprietário do corpo? Se sou apenas corpo! O cartel deveria dizer “sou corpo” e basta. Mas isso iria colocá-los em um problema; com que direito contrario o que o corpo define? Se somos matéria, é absurdo que se queira ser algo que a matéria não dispôs. Tanto o querer ser de outro sexo como o ser eterno são ideias que contrariam a matéria, e sem dúvida nascem de um “espírito” (ou de vários). Mas por que aparecem essas coisas ao espírito? Por acaso enlouqueceu?

Um materialista coerente nunca contrariaria as definições do seu corpo, nem sequer se rebelaria perante a morte recorrendo a mil artifícios para evitá-la; ao contrário, uma vez recebido o dado da caducidade e envelhecimento, faríamos como o cavalo da zamba (NdT: estilo musical argentino) que “correu ao barranco cansado de trotear”.

Não é concebível, por exemplo, um hormônio que entenda que todo o corpo exista para lhe dar prazer, que o corpo seja de sua propriedade, mas então… por que a mente do homem persegue ideias que rejeitam sua constituição corporal? Desde esse ponto de vista é tão inexplicável o martírio que sacrifica a vida corporal por uma “ideia” que vai contra o instinto de conservação quanto a homossexualidade que se rebela contra sua constituição biológica e entra em um labirinto de disfunções. São coisas ditadas por um espírito alheio ou superior ao corpo. Ou é certo que o homem é um  macaco enfermo de espírito?

Se somos um animal evoluído, o mais lógico seria que fossemos uns seres parecidos aos personagens da Canção do Mundo, de Gionò, em que a corporeidade se torna cada vez mais consciente em todas as suas funções e graças a isso o corpo aperfeiçoa-se e especializa-se perante o meio. Tudo a partir de um psiquismo que se coloca ao serviço da matéria e que não a contraria, pois esse psiquismo — como todas as secreções corporais — surge como emanação de suas necessidades.

Parece que nos animais o psíquico é uma função do corpo e se desenvolve para seu melhor funcionamento (digo “parece” porque não é bem assim nos animais). Mas não tem sido assim para o homem. Gostemos ou não, esse psiquismo não somente se sente “dono” de tudo, como mostra o estúpido cartaz que convoca o corpo à prostituição ou a usar o aparelho digestor como se fosse reprodutor, mas exige que o todo se coloque a seu serviço para fins completamente alheios a sua conformação. Algumas vezes contrários ao instinto de reprodução assassinando as crias e, mais absurdo ainda, rebelando-se contra as mais belas e prazerosas disposições biológicas incluídas no sexo, movidos por um espírito realmente incompreensível que não responde nem ao Deus alienante dos cristãos e tampouco às definições de matéria. Quem é esse espírito?

Sabemos que somos um composto de corpo e alma, uma unidade, mas é da alma que dizemos propriamente EU e é ela que conhecemos, sendo o corpo um mistério muito maior do que se nota a princípio, já que tem uma vida que ocorre tão fora de nossa consciência, de uma forma incontrolável e a partir de uma energia inexplicável. E uma vez que nos afeiçoamos com essa vida, pluf! o maldito nos falha com alguma enfermidade que se sabe lá de onde vem, demonstrando não somente que não é nosso, mas que é um inimigo terrível cujas forças muito nos excedem. Os slogans deste mundo idiota são tão falhos! Nem os corpos são nossos, nem somos tão livres, nem somos tão dignos… por fim, a pobre mulher que hoje em dia mexe o corpinho e se sente tão livre de fazer com seu corpo o que lhe der as ganas, amanhã sofrerá alguma terrível enfermidade e saberá, da pior maneira, que o corpo dela não é dela.

É a alma que vive, que aproveita o que sente, que pensa, que se autopercebe, que às vezes desfruta do corpo e às vezes o padece. Ela é a que se propõe fins e, nesses fins, muitas vezes faz violência ao corpo e este, raivoso, costuma frustrá-los sem piedade. Alma e corpo terão um equilíbrio precário por um tempo (não muito maior do que a infância), mas pouco a pouco irão ficar desencontrados até o desencontro final da morte, em que a alma se lamenta e se sente traída pelo corpo. Por quê?! Sem dúvida é um mal-entendido (se se é materialista) proveniente de uma alma louca que crê possuir uma transcendência sobre o irmão asno, ideia que não entende de onde veio.

Desde esse ponto de vista, a vida do homem, ao contrário da vida dos animais, “evoluiu mal”, e o espírito passou a ser uma disfunção. Ou, ao menos, adoeceu-se gravemente.

Parece que essa enfermidade que sofre o homem chama-se “pensamento” e provém de uma perversão, que é o desejo de dominar os outros.

O espírito como enfermidade

Essa evidência de que o pensamento seja uma enfermidade tornou-se filosofia logo após a Segunda Guerra. É reconhecida a paternidade do existencialismo de Sartre mas, fundamentalmente, é de raiz freudiana; nutre-se da “alienação libidinal” de Marcuse (em tensão com Marx e sua alienação puramente econômica) e encontrou seus melhores expoentes em Glucksman, Bernard Henri-Levy, Lardreau, Jambet, Benoist, Dollé, Clavel e alguns outros (costuma-se incluir Soljenitsyn).

Partindo da negação de que se trata de um “grupo de pensamento” (pois suas ideias parecem ser muito diversas), e renegando todos o rótulo de “pensadores” e até pretendendo ser muito diferentes entre si, foram todavia denominados em grupo de os “Novos Filósofos” franceses e entendeu-se que se tratava de um movimento com características comuns. A principal coincidência foi terem sido criados no marxismo mas terem sofrido um posterior desencanto de suas origens, e terem declarado uma hostilidade implacável perante todo dogmatismo, em especial ao dogmatismo marxista, sem por isso deixarem de ser marxistas. De passado leninista e maoísta (para aqueles que entendem a caducidade do teórico perante a pura práxis), o que rejeitam afinal é a utilização da utopia coletiva para estabelecer, enquanto se espera o canto do amanhã, um período tirânico que, na maioria das vezes, chega para ficar.

Para eles, a revolução seguirá sendo a desconstrução das “superestruturas” de poder, tanto as econômicas que criou o capitalismo para dominar o homem (como bem ensinou Marx), como as libidinais que criou a Igreja para o domínio dos homens, sendo que ambas se reforçam mutuamente e se complementam. A revolução já não deve ser o estabelecimento de uma tirania que derrube as superestruturas (ditadura do proletariado), pois a classe dirigente obstina-se na tirania e o amanhã libertador nunca chega. Trata-se na verdade de um processo de libertação individual (que depois será coletiva) de todos os sistemas de pensamento político, moral e religioso. O marco revolucionário por excelência é o Maio francês de 68 e seu total antiautoritarisimo. Nenhuma “ditadura” intermediária.

As obras produzidas por esse movimento foram convertidas em best sellers de enormes tiragens e com um êxito econômico como nunca viu a filosofia. Apesar das dificuldades de sua leitura, a publicidade impunha um “dever” de se estar em dia com essas obras. Mal eram adquiridas as novas categorias conceituais (mais por efeito da divulgação em revistas do que pela leitura dos livros) e o que permanecia na cabeça dos jovens estudantes era a profunda ideia que, para a vinda do mundo melhor deveriam curtir a vida. Byung-Chul Han, com o jornal de amanhã, responde aquela sentença de Lênin “o capitalismo venderá a corda com que será enforcado” e nos ensina que a enganação do neoliberalismo é o de ter convertido o marxismo numa lucrativa mercadoria de consumo. Conflito entre dois farsantes em que não se sabe quem matou a quem, ou quem vendeu quem.

Será Dollé, com o título de um livro, que expressará genialmente a ideia principal: “O ódio ao pensamento”. O “pensamento” é toda intenção doutrinária sobre a qual repousa qualquer tipo de “poder” que faz dos homens “títeres intelectuais”. Assim foi o catolicismo, produtor da alienação intelectual que sustentava o “Ancien Régime” com sua violência inquisitória; o racionalismo capitalista com sua violência industrial, o racismo nazi de Auschwitz e depois o comunismo dos Gulag. O Estado moderno e revolucionário diz-se “libertador” mas não nos libertou de nada, mas foi suplantando a Igreja do medievo com novos “sistemas de poder”, todos produzidos pelo “pensamento do amo”. Poder que antes foi assentado na teologia e, depois, na ciência, mas com o mesmo resultado.

A alienação tornou-se segunda natureza e o homem moderno, temeroso da liberdade (Fromm), busca ele mesmo escravizar-se para se sentir seguro, e com isso cria seus “amos” e refugia sua insegurança numa doutrina. Han acrescentará que a grande novidade do neoliberalismo é que ele penetra no psiquismo como uma religião materialista que trabalha desde dentro e não necessita de violência externa, de modo que o homem é explorado por si mesmo a níveis nunca vistos na história, nem pelos piores amos que se tem notícia. O pós-moderno irá se exprimir até o “burnout” (estresse crônico), que é o martírio capitalista em busca da produtividade pessoal.

Esses Novos Filósofos viram a escapatória no Maio de 68, que dá o pontapé inicial libertador (não se deve esquecer que nesse mesmo ano, em Medellín, ocorria o início da Teologia da Libertação, síntese de marxismo e catolicismo). Libertação que não é das pessoas comuns, mas dos intelectuais (professores e estudantes) que são a vanguarda e que devem ser os “anjos rebeldes” perante os “amos”. O Anjo” é um livro de Lardreau e Jambet, e é “o rebelde” por definição, o perene adversário dos amos, o irredutível inimigo dos tiranos: “Damos esta ordem: que o anjo venha. As próximas páginas destinam-se a criar, em leves turbilhões, o chamado”. Soljenitsyn deixará satisfeitas as direitas, mas é também um herói dessa esquerda que ajuda com suas denúncias a afrouxar o dogma marxista e denunciar a tirania, deixando de “pensar sistemas integrais” para pensar os problemas cotidianos das pessoas, os problemas que afligem o homem uma vez liberto do “sistema do amo”, para que assim esses ditos problemas possam vir à luz apenas retirando a cobertura de uma moral de domínio, seja ela cristã, capitalista, comunista ou qualquer que seja. (Soljenitsyn será colaborador da Revista Concilium, de que trataremos posteriormente).

André Glucksman dizia: “Os intelectuais magos que dão ao povo soluções gerais e definitivas tendem a desaparecer. Surge outro modo mais modesto de ser intelectual. A maneira de atuar sobre pontos precisos.” Nada de pensar soluções universais, mas entregar-se aos problemas cotidianos e concretos do homem comum, para resolvê-los fora dos slogans e compulsões que ocultem propósitos de dominação. Isso começa com a ordem “sessentaeoitesca” de impedir toda coerção e deixar em liberdade toda “insurgência” — “é proibido proibir” — seja étnica, regionalista, ecológica, antinuclear, feminista, homossexualista, indigenista etc., sempre que se mantenham à margem de construções ideológicas. Basta de cosmologias. Hoje vemos esse pensamento “sobre pontos específicos” e livres de ideologias, triunfantes e patrocinados pelas grandes usinas financeiras maçônicas, tornado crença no burguês estupidificado.

Ainda que essas “insurgências” possam ser bobas, contraditórias e até mesmo cientificamente erradas, não importa. São processos válidos de libertação mediante os quais o homem perde o medo da liberdade, ensaia seus primeiros passos sem patrões e pode destravar essa relação de escravo-amo que lhes foi criada pela superestrutura. Entre as mais bobas vemos a da linguagem inclusiva, mas é de uma grande significação como libertação de superestruturas; afrouxar a gramática é tirar o último contato que a inteligência moderna tinha com a lógica.

Nessa escola houve católicos, como Clavel, que dão por terminadas a filosofia e a teologia cristã: Deus é uma experiência da alma que se pode “sentir” mas não expressar. Clavel foi arrebatado em Deus em sua casa como São Paulo no caminho para Damasco e isso o fez tomar consciência de uma religião sem intermediários: “Somente Deus pode falar de Deus”, e o homem, quando faz doutrina, em realidade manipula em favor de alguma ideologia de poder. O que corresponde ao homem de Igreja é abandonar sua pertença institucional e dedicar-se a solucionar os problemas concretos dos fiéis. (Algo muito parecido será dito por Ratzinger mais abaixo).

Glucksmann expressa essas ideias em seu livro “A cozinheira e o canibal”. “A cozinheira” era para Lênin o que nós chamamos de homem comum. Lenin entendia que o poder, uma vez libertado das superestruturas econômicas, deveria poder ser exercido por uma simples cozinheira. Hoje, vemos na Argentina a “oposição” (supostamente de direita) alçar essas bandeiras dos “problemas cotidianos” contra a esquerda que, embora seja principalmente ladrona e ressentida, esboça alguma dogmática política residual de suas horas universitárias e por isso são atacados desde a correção política de quem se autoimpôs renunciar a todo pensamento, declarando-se libertários resolutamente e guardando — sem saber, muitas vezes — sob sete chaves, por trás dessa suposta liberdade, o segredo da cosmovisão maçônica e seu messianismo judaico. As colocações de políticas “minimalistas” — por exemplo, municipalista para resolver problemas cotidianos, sanitária perante o aborto e contracepção, ou universitária perante à desculturalização — de alguns católicos sedizentes tradicionalistas, respondem a essa mesma defecção intelectual de uma visão integral, que ocorreu há tempos. Defecção da inteligência que nos surpreende quando a vemos em grupos conservadores que, apesar de às vezes visitar a Velha Missa (resumo da alienação se houver um! Mea culpa! Non sum dignus!), arrancam os cabelos cada vez que algum velho padre repete em um sermão a doutrina católica do poder.

Se olharmos bem, não é difícil encontrar Bergoglio nessas ideias, nem dar-se conta que o caminho sinodal é exatamente isso. Francisco é um homem dessa época e sua repugnância pela “doutrina”, juntamente com a trivialização dos “lugares” teológicos, faz com que seja o perfeito exemplo do “anjo rebelde” de Lardreau e Jambert. No Equador, deu um exemplo ao definir o que foram os movimentos de libertação na América: “um movimento que nasceu da consciência da falta de liberdades, de estar sendo explorados e saqueados, submetidos a conveniências circunstanciais de poderosos”. Toda uma enorme falsidade que arranha, por trás da requentada calúnia à Espanha Imperial, o prestígio da Igreja Católica que participou expressamente da Conquista. Lá mesmo insiste em ir contra as “Propostas integracionistas na sociedade”… “A união que pede Jesus não é uniformidade, mas atrai multiforme harmonia”. Convocou a “lutar pela inclusão em todos os níveis para evitar uma busca estéril de poder às custas dos mais pobres, dos mais excluídos” Ali mesmo falará da inconcludência da ação doutrinária da Igreja (América é a grande “vítima” desse espírito de domínio católico), e por uma evangelização que é acompanhamento (ou cumplicidade) na condição humana.

Os que têm memória devem lembrar-se que Ratzinger remeteu às ideias de Francisco a esse movimento que apontamos. Disse a seu modo naquela carta de 2019 sobre A Igreja e a Sexualidade, carta que surgia logo após uma surda e irônica disputa intelectual entre os dois Papas (que confessavam não ter lido um ao outro) e na qual o renunciante enuncia as fontes filosóficas do jesuíta. O problema da Igreja e de sua queda moral, dizia-nos o alemão, não havia sido efeito do Concílio Vaticano II, mas do Maio de 68 (o período dos anos 60 aos 80, o dos Novos Filósofos), em que “a teologia moral católica sofreu um colapso que deixou a Igreja indefesa perante essas mudanças da sociedade”. Não entendeu, ou não quis entender, que embora as mudanças na sexualidade entraram na Igreja através do Maio francês (já que os textos do Concílio não promoviam esse desenfreio), a “falta de defesa” a que se refere veio sim da derrubada do conceito de autoridade feita pelo Concílio, juntamente com a forçada visão naif do mundo moderno com que se expressava. Especificamente, a entrada do vício nefasto foi provocado pela assistência dos sacerdotes e seminaristas nas universidades, que foram o foco da revolta.

O velho cardeal queria isentar o Concílio das derivas “ultramodernistas” colocando como seu fruto adequado a Veritatis Splendor e como exemplo de católico João Paulo II. Ou seja, uma moral do bem e do mal, que não responde seja a superestruturas de poder e nem se impõe em forma doutrinal, mas que põe fim ao desenfreio dando critérios às consciências livres. Os Padres Conciliares entendiam que o homem da modernidade reconheceria com agrado a contribuição mitigadora da orgia se a Igreja mostrasse inequivocamente que carecia de toda pretensão de poder político. Assim se aproximaria a Igreja sem suspeitas de segundas intenções fora da moral, e de uma moral que já saíra do cerco da infalibilidade na qual só restava a fé. A entrega simbólica da Tiara Papal à ONU era o gesto por excelência.

Contudo, não podemos tampouco deixar de ver as coincidências dos Novos Filósofos tanto com Bento XVI como com João Paulo II, cujos esforços pela libertação da dogmática comunista do poder — deixando a salvo certas bases intelectuais — e que foram o cavalo de batalha daquele papado, fizeram-se em consoância com aquela geração de filósofos (tendo estes um protagonismo maior do que o dado a João Paulo II na queda do muro, que se fez mais por ideais libertários que pelos católicos). Também eles partiam de uma base evidentemente marxista de desmantelamento de toda dimensão política da Igreja, ou, dizendo junto a eles, de “desconstrução das superestruturas de domínio”, que é uma tarefa política, mas para dizer adeus do político. Na Revolução, tanto o processo desconstrução como o da tirania se anunciam como passageiros, mas essa é sua única realidade.

Não nos enganemos. Ratzinger também formava parte da mentalidade dos Novos Filósofos, do Ódio ao Pensamento (recusa do doutrinarismo) e da ideia marxista de libertação das “superestruturas”. Foi famosa a frase de Ratzinger que impressionou Paulo VI e que o levou a ser um “jovem teólogo” de fama: “Deus, através do processo histórico, nunca esteve do lado das instituições, mas sempre do lado dos que sofrem, dos perseguidos” (Corriere della Sera, 21 de abril de 2005). Essas ideias liberais inclinadas à esquerda o levaram-no à cátedra de Tubinga pelas mãos de Hans Kung; e apesar de proferi-las no evanescente âmbito universitário, envoltas por um halo poético, advertiam as mentes latinas para o desenfreio moral que claramente anunciavam (Calmel o prognosticara expressamente um tempo atrás); não influenciavam contudo na ingenuidade germânica do teólogo, o que acabou impedindo-o de ver a relação de causa e efeito quando adveio a ruína da sexualidade.

Tinha contribuído com ditos e feitos para o desmantelamento de qualquer sobrevivência possível  de uma “superestrutura de poder” na Igreja, havia enfraquecido as admoestações com que a autoridade continha a deriva de nossa natureza, sustentou o “ódio ao pensamento” muito ao estilo de Clavel, criticando a rigidez estrutural tomista e propondo a experiência imanente; havia aceitado retirar a moral do cerco dogmático para deixá-lo na nebulosa da consciência (Newman!); e depois estranhou a debacle moral!

Na mesma carta em que busca desculpar o Concílio pelas derivas na perversão sexual dentro da Igreja, reafirma os erros do Concílio e continua a tarefa desconstrutiva: “Deus se fez homem por nós. A criatura humana é-Lhe tão sumamente cara que se uniu a ela e assim entrou de maneira concreta na história humana. Fala conosco, padece conosco e assumiu sobre si a morte por nós. Disso falamos em teologia exaustivamente, com doutas palavras e pensamentos. E, contudo, aqui reside precisamente o perigo de nos fazermos donos da fé em vez de nos deixarmos renovar e dominar pela fé”. E em alguns parágrafos posteriores consagra sua hostilidade contra uma Igreja “Política”: “… a igreja morre nas almas. Com efeito, a Igreja, hoje, é vista em grande medida somente como uma espécie de aparato político. Fala-se dela na prática somente com categorias políticas, e isso vale também para os bispos, que formulam sua imagem da Igreja do futuro em termos quase exclusivamente políticos”.

Sujeição e liberdade do pensamento católico” rezava a obra de Hartmann e com ela se introduzia o católico num labirinto de contradições que poderiam divertir aos intelectuais daquelas universidades teutônicas, das quais contudo os seminaristas costumavam sair com poucas ideias e sem roupagem interior. O poético Hipérion de Hölderlin produzia ainda ecos nas paredes de Tubinga, e Ratzinger se alegrava com essas mesmas contradições que o fizeram famoso, seguro de poder sobrelevar as consequência de seu “des-integrismo”, que era o desafio da nova geração de sacerdotes católicos. Conta Kung que os alunos de Tubinga ponderavam as colocações novidadeiras de Ratizinger, que anunciavam maravilhosas insurgências, mas lamentavam suas conclusões retardatárias e mesquinhas. Kung, mais bem disposto às “experiências libertadoras”, iria insultá-lo e compará-lo com o Grande Inquisidor de Dostoiévski por seu “medo da liberdade”. Perdendo o favor da trindade modernista de Tubinga: Kung, Rahner e Schillebeeckx, buscou escapar por Ratisbona com seu admirado Urs von Balthasar e outros “modernistas moderados” como Bouyer, De Lubac e Medina. Com eles funda a revista “Concílium” para defender o Concílio Vaticano II dos desvios exagerados, ou seja, tudo aquilo que expressa na carta mencionada e que foi a ambígua batalha de sua vida — ou, melhor dizendo, a batalha de sua vida em prol da ambiguidade. (Na apresentação da revista, Baltasar fazia um jogo etimológico entre Concílio e Igreja, demonstrando que significavam a mesma coisa e que, portanto, eram a mesma coisa).

Sabiam que o Novus Ordo, que tanto defenderam, era a obra mestra da desierarquização social do sacerdócio e da Igreja, a derrubada consciente de uma “superestrutura de poder” solicitada pelas forças do “mundo”. Era evidente que a velha Igreja arrebitava em cada Missa sua constituição piramidal para sustentar a alienação dos fiéis cristãos com o permanente “non sum dignus”, e que se deveria tirá-la de circulação em busca de um pertencimento mais “digno” e não tão subordinado. Mas essa desconstrução deveria ser protegida para não chegar ao ponto de degenerar na libertinagem a qual se arrisca cada avanço da liberdade. O preço da liberdade costuma ser a perdição, preço que os modernistas de vanguarda pagavam com gosto chafurdando em seu barro e negando o inferno, mas que os moderados tratavam de evitar perante o horror desatado na moral sexual da cúria. Horror que sinceramente sofriam, sem notar porém que eles tinham derrubado os muros de contenção que impediam tal dissolução.

Na mencionada carta, o papa Emérito dá conta do testemunho de um cura pedófilo que deixa de cabelos em pé; o pedófilo violava uma “coroinha” oferecendo-lhe seu corpo com as palavras da consagração. Certamente seu rechaço e seu horror são sinceros. Como bom liberal, nunca pensou que por afrouxar o cíngulo um cura poderia chegar a violar uma criança.

Vale a pena escutar as ponderações de um padre tradicionalista sobre os efeitos do Novus Ordo: “As três principais deficiências que alguém encontra [na Nova Missa] são a de diminuir gravemente a afirmação da Presença Real… ocultar o aspecto sacrificial da missa, e particularmente o aspecto expiatório; e, finalmente debilitar o sentido da hierarquia e a distinção entre o Sacerdote e os fieis (recitação do Cânon em voz alta).” (https://laportelatine.org/formation/crise-eglise/nouvelle-messe/des-fruits-venus-de-la-nouvelle-messe), pois esse debilitamento da hierarquia era um assunto levado em conta e buscado expressamente pelos reformadores.

Francisco, o anjo

Francisco não crê nos “pensadores”: quer sair das colocações “abstratas” de liturgia ou teologia, mas não porque seja um obtuso nem um ignorante da doutrina católica, mas desde essa perspectiva de um neomarxismo bem alambicado. A diferença com seu predecessor é sua total falta de horror ao pecado; os danos colaterais da revolução não o assustam, “nossa fé é revolucionária” repetia (título de um livro sobre sua personalidade), e seus permanentes acolhimentos de perversos às audiências vaticanas (e até comunhões sacrílegas) foram efetuados para eliminar importância ao pecado, como o revolucionário elimina a importância às vítimas da guilhotina ou do tiro na nuca na busca por um mundo retificado.

Aquelas colocações doutrinais que conhece bem são “pensamento”, ou seja, “doutrina”, que chama “ideologia”, porque sabe que responde a uma etapa em que a Igreja pretendia ter poder sobre as pessoas, autoridade. Ele tem “ódio ao pensamento” e se dedica a escutar para solucionar os problemas concretos dos católicos, que são triviais, sem dúvida — isso não se oculta — e que também costumam ser perversões de uma liberdade para a qual não estão ainda preparados. A eles deve-se permitir — ou, melhor dito, instigar — a “insurgência”, que “hagan líouma desordem que nos dê um coração livre, uma desordem que nasça de ter conhecido a Jesus” a fim de que libertados da superestrutura “ideológica” da velha religião — libertação essa produzida pelo Concílio Vaticano II que abandonou o “pensamento do amo” e que já não quer “reger” nem dominar com o “pensamento” — possam os problemas cotidianos dos fieis surgir espontaneamente. Consultar-se-ão pela via sinodal: divórcio, ecologia, homossexualidade, feminismo, imigração, indigenismo, e alguns outras chatices são as verdadeiras colocações que afligem os fieis e não o Filioque ou a mudança do ofertório na missa. Assuntos que poderiam preocupar a um “pensamento de poder”.

Pode-se entender que o fiel atrasado tenha medo da liberdade, que necessite um “amo” (um Senhor?) e que busque o refúgio do escravo em uma doutrina. Isso é o Tradicionalismo, ao qual deve-se dar tempo, ter paciência, mas fazer movimentos para libertá-lo, para que se atreva à liberdade. É talvez mais fácil libertar os conservadores, que não têm ideias mas “coisas”, e é questão somente de os fazer perder tais coisas. E assim como há vários que de susto aos desvios morais mais se aproximam à doutrina (e não nos deve escandalizar que não poucos respondem mais ao “medo da liberdade” que ao amor à Verdade), muito mais são os que vão entrando no processo de abandonar as cosmologias e dedicar-se a tratar os problemas de seus próximos (cada vez mais próximos!) desorientados e entrar em acordo com Francisco. Depois de tudo, é certo que em cada casa católica há um divorciado, um homossexual, uma feminista, um ecologista e vários idiotas, que por trás de um falso conceito de misericórdia irão nos arrastar atrás de seus vícios e defecções.

Estou exagerando com esse neomarxismo? O documento oficial saído dos Bispos argentinos disse “É importante construir um modelo institucional sinodal como paradigma eclesial de desconstrução do poder piramidal que privilegia as gestões unipessoais”. A adesão aos postulados neomarxistas é clara e patente, é o “magistério” de Bergoglio que expressam seus alcoviteiros favoritos que, como bons cães, depois dessa frase pedem um biscoito e provavelmente recebem (como Poli) uma patada, claro.

Voltemos ao corpo e espírito

É-nos chamativo esse espírito que, no materialismo, surgia do corpo e que inexplicavelmente o contrariava. Sabemos a resolução do problema no cristão, começando porque o espírito se infunde pelo Criador à matéria com a alma imortal e não emana ou se segrega do corpo — ao contrário do que se supõe —, senão que dá a vida ao corpo. Vida que, ao ser compartilhada por Deus, é de uma misteriosa felicidade de equilíbrio do composto por efeito da graça em sua condição paradisíaca; vida terrível e trágica do desencontro dos coprincípios em sua condição cindida pela morte acarretada pelo pecado; mas vida renovada incrivelmente maravilhosa na condição redimida, que dá ao corpo — que se faz dócil ao Espírito — seu sentido de Oferecimento, premiando-o com a ressurreição. Já a morte e a contradição estão entornadas do doce mistério de uma vida de expiação, que leva ao retorno e reencontro com seu Criador em sua própria vida.

Mas como justificam esses pensadores a luta entre o corpo e o espírito apesar de seu materialismo? Que é esse espírito que declara “o corpo é meu” e faço de minha barriga um tambor e de meu traseiro um vaso? Ainda contra a evidência biológica. De onde surge essa tensão e como se resolve?

Jean Dollé expressará genialmente o espiritualismo de um materialista: “Vocês obedecerão a seus porcos! Não me submeto senão a meus deuses que não existem!” Que vivo! Queremos isso também!

Dentre eles, a grande maioria aceitará e entenderá que isso que chamamos espírito reclama-nos certos aparentes absurdos. Absurdos que surgem na arte e desde a arte (não nas teorias nem nas ciências). Para a razão científica resultam inexplicáveis e são somente intuídos pela experiência estética, até que se tornem evidentes quando o poético-profético se torna história. Expliquemos:

O artista, o poeta de cada tempo, expressa uma ideia que surge de uma experiência estética que ninguém compreende em seu momento. Essa ideia estética é fruto da reação do poeta contra a ação alienante do amo, do déspota e do tirano (Cristo perante o Deus veterotestamentário, por exemplo). O poeta se rebela, é o Anjo Rebelde (como Lúcifer perante o Deus trovejante), e constrói um mito poético, mito que se faz carne pouco a pouco e transforma desde dentro os povos, produzindo uma civilização que realiza em si mesma o mito. A Ilíada e a Odisseia de Homero fazem a Grécia, a Eneida de Virgílio faz Roma, a Bíblia faz a Cristandade. “Pouco importa” diz-nos Dollé “que o Cristo tenha existido ou não, e pouco importa que a Bíblia conte coisas que nunca existiram, o que importa é que ficaram…” E estes mitos, ao influenciar aos homens, fizeram a história. A solução é “suscitar e desenvolver um movimento filosófico e poético” que construa o próximo período a partir da rebeldia contra o “amo” atual. Certamente não vamos entender, hoje, a experiência poética que fundará o futuro; pode-nos parecer louca, absurda, ininteligível e até degenerada. Sempre será uma “insurgência”, até que se faça história e se desvele.

Um retardado como eu pode pensar que o mundo artístico de nossa época é um montão de maricas degenerados e imbecis ao qual outro monte de vivos converteram em negócio, e que não entendo o que tem de estético o antinatural, sobretudo tendo tão convenientes modos naturais, mas não! deve-se dar tempo à experiência estética. É provável que a repressão seja parte da concretização e nisso tomei parte no poema ao maltratá-los — claro que a clarividência é dolorosa (segundo dizem) e assim como tinham de morrer Sócrates e Cristo pelas mãos dos esbirros do poder constituído, terão de me sofrer os pederastas até que todos sejam pederastas e a história me vomite (o que não falta muito).

Se queremos concluir sobre o que é esse “espírito”, esse deus que não existe e ao qual obedecem e adoram os materialistas, que contraria a própria lógica da matéria; de uma matéria que se nega a si mesma para autoconduzir-se a um estado de síntese cientificamente inconcebível, mas poeticamente desejável; essa emanação que se apetece transcendente mas que contudo surge da imanência… Se queremos saber algo sobre esse “espírito”, repito… não nos resta outra coisa que dar-lhes ouvidos e sermos obrigados a recorrer, como eles, ao simbolismo de uma mítica luciferina. Porque é também para nós quase impossível privar-nos, para a explicação de suas ideias, de uma presença satânica. De uma espécie de “estado de desgraça”.