O TRANSUMANISMO À LUZ DO TOMISMO

Transhumanism | Ethical, Legal, and Societal Implications of Biotechnology

Fonte: Courrier de Rome nº 633 – Tradução: Dominus Est

Pelo Padre Jean-Michel Gleize, FSSPX

I – Breve estado da questão

1. O transumanismo é frequentemente usado para se referir ao “aprimoramento humano”. O primeiro uso conhecido da palavra data de 1957, quando foi cunhada pelo biólogo Julian Huxley. Seu sentido atual teve origem na década de 1980, quando os chamados especialistas começaram a dar substância à ideia. Os pensadores transumanistas previram que os seres humanos poderiam se transformar em seres com habilidades que lhes dariam o rótulo de “pós-humanos”.

2. A ideia essencial está aí. O resto, sobre o qual várias fontes de informação (da Wikipédia a Luc Ferry, passando por todos os futurólogos do outro lado do Atlântico) se esbanjam, diz respeito principalmente aos auxiliares do transumanismo, os meios empregados. Essa melhoria da condição humana, conforme nos é apresentada, envolve uma variedade de tecnologias, mas todas elas visam eliminar o envelhecimento e aumentar as capacidades intelectuais, físicas ou psicológicas: em suma, o desempenho. Desse ponto de vista, o transumanismo se baseia em todos os avanços possíveis e imagináveis, não apenas na medicina, na tecnologia, na computação e na robótica, mas também em tudo o que pode ser comparado aos sonhos da ciência, incluindo, acima de tudo, os da inteligência artificial. E, é claro, tudo isso exige recursos financeiros consideráveis.

3. Em nosso próprio meio, as palestras e os livros do Dr. Dickès confirmam essa observação. O eminente (e generoso) médico que conhecemos bem tem o mérito de apontar o dedo para a ideia central do transumanismo. O transumanismo é uma ideologia da moda cujos proponentes estabelecem como meta “fabricar” uma nova humanidade para substituir a antiga. A nova humanidade será imortal graças à contribuição da tecnologia, mas também será uma elite, enquanto o restante será “digitalizado” e armazenado em computadores. O protótipo: um homem robotizado (um computador que substituiu seu cérebro) ou um robô humanizado (um cérebro humano enxertado em uma máquina).

II – Para ver as coisas com clareza…

1 – Alguns princípios

4. A natureza é um dado inicial do qual o homem não é o autor e que tem sua origem em uma criação de Deus, sendo que somente Deus é capaz de produzir algo sem depender de nada.

5. A atividade do homem pressupõe essa natureza e não pode produzir nada independentemente desse dado prévio.

6. Daí as duas partes que se seguem: a natureza e o ser vivo; a arte ou atividade artificial.

1.1 – A natureza e o ser vivo.

7. A natureza é caracterizada pela mudança. A natureza é “aquilo que muda”: os seres naturais nascem e morrem; crescem ou diminuem; tornam-se quentes ou frios; mudam de cor, de lugar, etc.

8. Para explicar essa mudança, deve haver um princípio ou uma causa.

9. Entre os seres naturais, em alguns o princípio das mudanças que sofrem está fora deles: são os seres não vivos ou inanimados (o reino mineral). Esses são corpos puramente materiais.

10. Em outros, esse princípio está dentro deles: são os seres vivos ou animados (plantas, animais e humanos). Eles são corpos, mas há algo neles além do corpo; há o princípio de todas as mudanças pelas quais passam, que não é corpóreo: esse princípio é a alma. Os seres vivos são, portanto, compostos de um corpo e uma alma, e o primeiro (ou seja, inicial) princípio de sua vida é a alma. Ela não é o cérebro (ou seja, um elemento corpóreo, ele próprio uma parte homogênea do corpo), mas é um princípio não corpóreo, que designamos pelo termo alma.

11. Aqui está o que São Tomás de Aquino diz sobre isso, em sua Summa Theologica, Iª Parte, questão 75, artigo 1 – “Embora algum corpo possa ser um princípio de vida, como o coração é princípio da vida animal, um corpo não pode ser o primeiro princípio da vida. […] Deve-se dizer que como tudo o que se move é movido por outro, e isso não pode ser levado ao infinito, é necessário dizer que nem tudo o que move é movido”. A alma é, portanto, o primeiro princípio da vida do corpo, no sentido de que ela causa o movimento de todo o corpo do qual ela é a alma, sem que ela mesma seja posta em movimento.

12. Se a alma é separada do corpo, há o que se chama de corrupção ou morte; o corpo separado da alma não possui mais o princípio vital correspondente às suas operações. Ele se torna outro corpo, distinto do corpo que era quando estava animado. Por exemplo, uma árvore morta se torna madeira. A árvore está viva: ela se alimenta e cresce. A madeira está morta: é um mineral puro, não é mais um vegetal; pode ser usada como combustível ou como elemento de alvenaria (e ainda mais porque não está mais viva).

13. Deve-se notar também que uma alma de categoria superior, por assim dizer, “contém” almas de categorias inferiores. A alma humana “contém” [a modo de princípio], por assim dizer, as almas animal e vegetal. A alma animal “contém” a alma vegetal. Isso significa que “aquele que pode fazer mais pode fazer menos”. O homem é capaz de realizar operações que são propriamente humanas (ele raciocina e decide livremente), mas também operações animais (ele vê e ouve) ou operações vegetais (ele se alimenta e se reproduz). Consequentemente, no caso dos seres humanos e dos animais, a separação da alma e do corpo pode ser parcial ou progressiva: é assim que uma parte do corpo humano separada da alma humana e, da mesma forma, uma parte do corpo animal separada de sua alma animal podem permanecer capazes (por um tempo) de operações neurovegetativas.

1.2 – O homem e a natureza.

14. O homem pode agir sobre a natureza, mas na dependência do princípio operacional desta última. Isso explica por que o homem tem um domínio muito avançado da natureza inanimada ou não viva, mas não tem o mesmo domínio da natureza viva. No caso dos seres vivos, o homem deve levar em conta a capacidade de operação comandada pela alma. A arte ou atividade artificial do homem é, portanto, a atividade do homem somada à da natureza. Assim, o homem age como um auxiliar que explora os poderes da natureza, mas sem ser capaz de substituí-los ou modificá-los de forma alguma. A explicação para isso é simples: é a presença da alma que é um princípio intrínseco de operação. O homem não pode ir contra esse princípio. Tampouco pode substituí-la, tão logo ela não esteja mais lá. O homem age sobre o corpo, na medida em que o corpo já se beneficia do impulso dado a ele pela alma. Mas o homem não pode agir sobre a alma.

15. Por exemplo, um médico pode alimentar artificialmente e fazer respirar um ser vivo (provido de sua alma), quando as funções orgânicas são impedidas de realizar as operações vitais das quais a alma é o princípio. Mas uma pessoa morta (um corpo privado de sua alma) não pode ser obrigada a respirar ou ser alimentada, exceto de maneira “implacável” e vã.

1.3 – Possível e impossível.

16. Distingamos: quando dizemos que algo é possível ou impossível. Isso pode ser entendido aos olhos da filosofia e pode ser entendido aos olhos da ciência ou da tecnologia. Aos olhos da ciência e da tecnologia, a possibilidade e a impossibilidade devem ser entendidas em termos relativos, ou seja, como uma função do conhecimento e dos meios técnicos à nossa disposição. Aos olhos da filosofia, a possibilidade e a impossibilidade são entendidas em sentido absoluto: é possível o que não é contraditório; o impossível é aquilo contrário à natureza das coisas.

17. A ciência faz o que pode. Mas cabe à filosofia dizer o que a ciência pode fazer: a filosofia julga a ciência de cima para baixo, ou seja, por meio do conhecimento dos princípios que regem a natureza humana.

2 – Esclarecimento dos fatos e perspectivas.

2.1 – O princípio fundamental.

18. O primeiro princípio é o princípio da finalidade. Muitos biólogos modernos relutam em aceitar a ideia de uma natureza movida por um fim e que age como se fosse intencional. Há muitos tratados sobre esse ponto. Desde Darwin, costuma-se sustentar a seguinte tese: a noção de propósito na natureza não é científica nem necessária. “À primeira vista, o domínio biológico parece ser um domínio de finalidade generalizada”, admite Julian Huxley. “Os organismos são construídos como se tivessem sido projetados intencionalmente e funcionam como se estivessem conscientemente buscando um objetivo. A verdade está nessas duas palavras: como se. Como o gênio de Darwin demonstrou, o propósito é apenas aparente”.

19. A tese oposta é verdadeira: se um organismo não tem um propósito, ele sequer é um organismo. Um corpo que não está equipado para cumprir toda a sua gama de possibilidades não é mais do que uma massa com vários apêndices que não têm função. Isso é inevitável quando a intencionalidade é negada.

20. O propósito de um corpo, o propósito do organismo, considerado como a unidade de todos os seus órgãos, é a alma. E o propósito da alma humana é conhecer e amar. O corpo humano é inteiramente proporcionado a esse propósito. Toda a atividade corporal (a atividade biológica dos órgãos do homem, sua vida neurovegetativa) é feita para permitir que o homem realize as operações dos sentidos externos (ver, ouvir, perceber odores e sabores, perceber quente e frio e duro e macio por meio do toque) e essas operações dos sentidos externos existem para que o homem possa usá-las para realizar as operações de sua inteligência: as ideias chegam até nós por meio dos sentidos, e a atividade cognitiva dos sentidos pressupõe um corpo bem proporcionado e vivo, de um simples ponto de vista orgânico e biológico. Isso é o que significa o adágio “mens sana in corpore sano”, uma mente sã em um corpo são.

21. Por conseguinte, tudo o que a atividade artificial do homem (medicina, tecnologia, ciência da computação) pode fazer para melhorar o corpo humano só faz sentido se essa melhoria for adequadamente compreendida de acordo com a finalidade do corpo humano: a melhoria do corpo é condicionada pelo fato de que o corpo está ordenado à alma e à sua atividade espiritual. Portanto, se a melhoria permite e facilita o exercício do conhecimento humano e do pensamento, é uma melhoria real. Se, por outro lado, torna isso impossível ou mais difícil, não é um aprimoramento, mas uma destruição: uma desumanização. Por trás da máscara do transumanismo, talvez seja a face monstruosa de uma implacabilidade anti-humanista que corre o risco de se esconder.

2.2 – Princípios derivados.

24. Desde que respeitemos essa finalidade (a tecnologia a serviço da vida humana, que é a vida do pensamento), aos olhos da filosofia:

– é possível (ou seja, não é contraditório) apoiar a atividade vital de um ser vivo graças à ajuda da tecnologia, e tanto melhor quanto mais esta se torna poderosa (computadores, domínio do DNA, chips eletrônicos, etc.). Portanto, é possível enxertar uma máquina, um elemento informático, em um corpo vivo, para reforçar suas próprias operações vitais, desde que respeitemos o princípio dessas operações, que é a alma; a tecnologia só pode atuar como auxiliar da alma, sem jamais poder substituí-la.

– também é possível reutilizar um corpo morto reduzido a um estado mineral e usá-lo como auxiliar de uma máquina: um “motor” do tipo computador pode funcionar na carcaça de um cadáver, para produzir um movimento local, um deslocamento. Se substituirmos o cérebro por um computador, teremos uma máquina. O ser humano robotizado, portanto, não é um ser humano, apenas um robô.

– Também é possível selecionar uma parte de um corpo animal (um órgão ou uma célula) que permaneça capaz de realizar operações neurovegetativas, mesmo que tenha sido separada de seu princípio de vida animal, e dar a ela o auxílio da tecnologia para que possa produzir suas próprias operações vitais em benefício de um corpo que não seja o original.

– Por fim, é possível realizar a manipulação genética, desde que o princípio vital (a alma) do corpo que está sendo manipulado se preste a isso: o corpo é o “instrumento” da alma. Uma célula humana pode ser manipulada para produzir artificialmente o que teria produzido naturalmente, mas dentro dos limites de sua natureza, que são estabelecidos pela alma: cães não fazem gatos, nem mesmo na fertilização in vitro e muito menos na clonagem!

25. Há muitas possibilidades puras aqui, ou seja, nenhuma contradição. Outra questão é saber se o que é simplesmente possível também é lícito do ponto de vista moral. Precisamente, essa é outra questão e não estamos tratando dela aqui. Queremos apenas verificar se o transumanismo representa uma opção realista ou se não é antes uma utopia e uma quimera.

26. Além disso, o cérebro não é a alma; é apenas um órgão entre outros, uma parte do corpo, do qual a alma é o princípio vital. O cérebro é o órgão mais próximo e mais apropriado para certas operações da vida corporal, que são as dos sentidos internos (memória e imaginação). Mas a vida intelectual e moral é de ordem espiritual e não passa por ele. As operações da vida espiritual não podem ser “digitalizadas”, ou colocadas na forma de “dados” em um disco rígido! Na verdade, essas operações são de natureza espiritual (são ideias e raciocínio) e o disco rígido é um meio material. O homem pode programar um computador, criando assim uma obra de arte, um produto artificial, mas não pode comunicar sua própria vida humana a ele.

27. Por fim, se a separação do cérebro do corpo causa a morte, ela também causa a separação do cérebro da alma; o cérebro está então em um estado de corrupção que o reduz sucessivamente ao estágio de um vegetal e depois de um mineral: ele é incapaz de realizar suas operações propriamente animais e, portanto, seria inútil colocá-lo em um robô ou em outro corpo. O robô humanizado (a máquina na qual um cérebro é enxertado) é, portanto, uma quimera.

III – Breve epílogo

28. Os leitores que desejarem se aprofundar na questão farão bem em refletir sobre o excelente livro de Olivier Rey, Leurre et malheur du transhumanisme [Sedução e infortúnio do transumanismo], publicado pela Editions Desclée em 2018. O título sugere uma das principais ideias do livro, que pode ser encontrada no Capítulo I, intitulado “Faut-il prendre au sérieux le transhumanisme?” (“O transumanismo deve ser levado a sério?”). O grande mérito do autor aqui é estabelecer sem dúvida que, pelo menos em sua maior parte, o transumanismo é uma ideologia servida por propaganda.

29. Uma vez que a imaginação assume o controle, ela inevitavelmente produz uma pseudociência que é tanto ficção quanto fantasia. E não é a menor vantagem da filosofia perene, herdada de Aristóteles e São Tomás, o fato de ela nos dar os meios para escapar dela.