Talvez perguntem, como é possível que o liberalismo tenha triunfado através dos Papas João XXIII e Paulo VI e mediante o Concílio Vaticano II? Como se pode conciliar esta catástrofe com as promessas feitas por Nosso Senhor à Pedro e à sua Igreja: “As portas do inferno não prevalecerão contra Ela” (Mt 16, 18); “Eu estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo? (Mt 28, 20) Creio que não há contradição efetivamente, na medida em que estes Papas e o Concílio negligenciaram ou recusaram fazer uso da infalibilidade. Deixando de usar este carisma, que lhes é assegurado pelo Espírito Santo sempre e quando o queiram usar, puderam cometer erros doutrinais e com maior razão ainda, deixar penetrar o inimigo na Igreja, graças à sua negligência e cumplicidade. Em que grau foram cúmplices? De que faltas foram culpados? Em que medida sua função fica questionada?
É evidente que a Igreja, um dia, julgará este Concílio, julgará estes Papas. E em especial, como será julgado o Papa Paulo VI? Alguns afirmam que fui herege, cismático e apóstata; outros crêem poder demonstrar que Paulo VI não tinha em vista o bem da Igreja, e portanto não foi papa, é a tese dos “Sedes Vacans”. Não nego que estas opiniões tenham algum argumento à seu favor. Poderão dizer que em trinta anos se descobrirão coisas que estavam ocultas ou se verá melhor elementos que deveriam ter sido mais claros para os contemporâneos, como afirmações deste Papa absolutamente contrárias à tradição da Igreja, etc. Pode ser, mas creio necessáriorecorrer a estas explicações; penso inclusive que é um erro seguir certas hipóteses.
Outros pensam de modo simplista, que havia então dois papas: um, o verdadeiro, estava prisioneiro nos porões do Vaticano, enquanto o outro, o impostor, o sósia, ocupava o trono de São Pedro, para a infelicidade da Igreja. Livros foram escritos sobre “os dois papas”, baseados em revelações de uma pessoa possuída do demônio e em argumentos pseudocientíficos que afirmam, por exemplo, que a voz do sósia não é a do verdadeiro Paulo VI!
Finalmente outros pensam que Paulo VI não foi responsável pelos seus atos, sendo prisioneiro dos que o cercavam, inclusive drogado. Isto estaria corroborado por várias testemunhas de um papa fisicamente esgotado, inclusive necessitando ser amparado, etc… A meu ver é uma solução demasiadamente simples, pois então não teríamos mais que esperar um próximo papa. Mas já tivemos (não falo de João Paulo I, que reinou somente um mês) outro papa, João Paulo II, que prosseguiu ininterruptamente na linha traçada por Paulo VI.
A solução real me parece que é outra, muito mais complexa, penosa e dolorosa. O caminho nos é dado por um amigo de Paulo VI, o Cardeal Daniélou: em suas “Memórias” publicadas por um membro de sua família, o Cardeal diz explicitamente: “É evidente que Paulo VI é um papa liberal”.
Esta é a solução que me parece historicamente mais verossímil: pois este papa é como um fruto do liberalismo, toda sua vida foi impregnada de influência de homens que o rodeavam ou que tomou por mestres, e que eram liberais.
Não escondeu suas simpatias liberais: no Concílio, em lugar dos presidentes designados por João XXIII, colocou homens que chamou de moderadores. Estes moderadores foram: Cardeal Agagianian, cardeal da Cúria sem personalidade, e os Cardeais Lercaro, Suenens e Dòpfner; estes três últimos, liberais e seus amigos pessoais. Os antigos presidentes foram relegados a uma mesa de honra e foram os três moderadores que dirigiram os debates do Concílio. Da mesma maneira, Paulo VI sustentou durante todo o Concílio a facção liberal que se opunha à tradição da Igreja, isto é um fato conhecido. Como já lhes disse, Paulo VI repetiu ao fim do Concílio as palavras de Lamennais textualmente: “A Igreja não pede mais do que a liberdade”. Doutrina condenada por Gregório XVI e Pio IX!
É inegável que Paulo VI esteve fortemente influenciado pelo liberalismo. Isto explica a evolução histórica vivida pela Igreja nestas últimas décadas e caracteriza muito bem o comportamento pessoal de Paulo VI. Como já lhes disse, o liberal é um homem que vive sempre em contradição; afirma os princípios mas faz o contrário, vive sempre na incoerência.
Deixem-me citar alguns exemplos destes binômios tese-antítese, em que Paulo VI se destacava ao propor tantos problemas insolúveis que refletiam seu espírito ansioso e paradoxal. A encíclica “Eclesiam Suam”, de 6 de agosto de 1964, que é a carta-programa de seu pontificado, nos ilustra a este respeito: “Se verdadeiramente, como dizíamos, a Igreja tem consciência do que o Senhor quer que ela seja, surge nela uma singular plenitude e uma necessidade de expressão, com a clara consciência de uma missão que a excede e uma novidade que deve propagar. É a obrigação de evangelizar, é o mandato missionário, é o dever de apostolado (…). Nós sabemos bem: ‘Ide e ensinai a todas as nações’, é o último mandamento de Cristo a seus apóstolos. Isto define sua irrecusável missão, pelo próprio nome de apóstolos”.
Esta é a tese, imediatamente seguida pela antítese:
“A propósito deste impulso interior de caridade que tente a se transformar em um dom exterior, nós usaremos o nome que é atualmente usual: diálogo.
A Igreja deve manter diálogo com o mundo em que vive. A Igreja se faz palavras, a Igreja se faz mensagem, a Igreja se faz conversação”.
Finalmente vem a tentativa de síntese, que não faz mais do que consagrar a antítese:
“(…) inclusive antes de converter o mundo, principalmente para convertê-lo, é necessário acercar-se dele e falar com ele”246.
Mais graves e mais características da psicologia liberal de Paulo VI, são as palavras com que logo após o Concílio declara a supressão do latim na liturgia. Logo após haver recordado os benefícios do latim: língua sagrada, língua estável, língua universal, pede em nome da adaptação o “sacrifício” do latim, confessando inclusive que será uma grande perda para a Igreja! Eis aqui as próprias palavras do Papa Paulo VI, citadas por Louis Salleron em sua obra “A Nova Missa”247:
Em 7 de março de 1965, Paulo VI declarava à multidão de fiéis reunidos na Praça São Pedro:
“É um sacrifício da Igreja renunciar ao latim, língua sagrada, bela, expressiva, elegante. Ela sacrificou séculos de tradição e unidade da língua, por uma crescente aspiração à universalidade”.
E a 4 de maio de 1967, o “sacrifício” era consumado com a instrução “Três Abhinc Annos”, que estabelecia o uso da língua vulgar na recitação em voz alta do Cânon da missa.
Este “sacrifício”, no espírito de Paulo VI, parece ter sido definitivo. Em 26 de novembro, ele explica ao apresentar o novo rito da missa:
“Já não é o latim, mas a língua vernácula a língua principal da missa. Para quem conhece a beleza, o poder do latim, sua capacidade de expressar as coisas sagradas, será certamente um grande sacrifício vê-lo substituído pela língua vulgar.
Perdemos a língua dos séculos cristãos, nos tornamos intrusos e profanamos o domínio literário da expressão sagrada. Perdemos assim em grande parte esta admirável e incomparável riqueza artística e espiritual que é o canto gregoriano. Sem dúvida, temos razão em sentir pesar e desconcerto”.
Portanto, tudo deveria dissuadir Paulo VI de realizar tal “sacrifício” e persuadi-lo a conservar o latim. Mas não, acomodando-se em sentido oposto em seu “desconcerto”, de um modo singularmente masoquista, vai agir em sentido oposto aos princípios que acabava de enumerar, e vai decretar o “sacrifício” em nome da compreensão e da oração, argumento enganador que não passava de um pretexto dos modernistas.
O latim litúrgico nunca foi obstáculo para conversão dos infiéis ou para a educação cristã; pelo contrário os povos simples da África e da Ásia gostam do canto gregoriano e desta língua una e sagrada, sinal de adesão à catolicidade. A experiência prova que onde o latim não foi imposto pelos missionários da Igreja latina, ficaram ocultos os germes de cismas futuros.
Paulo VI pronuncia então a sentença contraditória:
“A resposta parece trivial e prosaica, porém boa por ser humana e apostólica: a compreensão da oração é mais valiosa do que as antigas roupas de seda, elegância real com que estava revestida. Mais preciosa é a participação do povo, deste povo que hoje quer que se fale claramente, de maneira inteligível que se possa traduzir em sua linguagem profana. Sea nobre língua latina nos separasse das crianças, dos jovens, do mundo de trabalho e dos negócios, se fosse um biombo opaco em vez de ser um cristal transparente, nós pescadores de almas teríamos uma atitude certa conservando-a na exclusividade da linguagem de oração e da religião?”
Que confusão mental! Quem me impede de rezar em minha língua? Mas a oração litúrgica não é uma oração privada, é a oração de toda a Igreja. Também outra confusão lamentável, a liturgia não é um ensinamento dirigido ao povo, mas o culto dirigido pelo povo cristão a Deus. Uma coisa é o catecismo, outra a liturgia! Não se trata para o povo reunido na Igreja “que se fale claramente”, mas que este povo possa louvar a Deus de maneira mais bela, mais sagrada e mais solene que exista! “Rezar a Deus com beleza”, tal era a máxima litúrgica de São Pio X. Quanta razão ele tinha!
Como vocês podem ver, o liberal é um espírito paradoxal e confuso, angustiado e contraditório; assim foi Paulo VI. Louis Salleron o explica muito bem quando descreve o aspecto físico de Paulo VI. Ele diz: “tem dupla face”. Não fala de duplicidade, pois este termo expressa uma intenção perversa de enganar, que não era a de Paulo VI. É um personagem duplo, cujo rosto contraditório expressa a dualidade: ora tradicional nas palavras, ora modernista em seus atos; ora católico em sua premissas e princípios, ora progressista em suas conclusões, não condenando o que deveria condenar e condenando o que deveria aprovar.
Com esta debilidade psicológica este papa oferece uma ocasião sonhada, uma grande possibilidade aos inimigos da Igreja de se servir dele. Sempre guardando uma cara (ou meia cara, comoqueiram) católica, não teve dúvida em contradizer a tradição, mostrou-se favorável às mudanças, batizando-as de mutações e progresso, indo assim na mesma direção dos inimigos da Igreja que o estimularam.
Não se viu um dia, no ano 76 o “Izvestia”, órgão do partido comunista russo, reclamar de Paulo VI em nome do Vaticano II minha condenação e a de Ecône?
Igualmente, o diário comunista “L’Unitá” expressou uma solicitação similar, reservando-lhe uma página inteira, quando pronunciei meu sermão em Lille em 29 de agosto de 1976. Como estava furioso, por causa de meus ataques ao comunismo! Dirigindo-se a Paulo VI, diziam: “Tomai consciência do perigo que representa Lefebvre, e continuai o magnífico movimento de aproximação iniciado com o ecumenismo do Vaticano II”.
É um pouco incômodo ter amigos como estes, não lhes parece? Triste ilustração de uma regra que temos destacado: o liberalismo leva do compromisso à traição.
A psicologia de um papa liberal é facilmente compreensível, mas difícil de suportar! Com efeito, nos põe em uma situação muito delicada em relação a tal chefe, seja Paulo VI, seja João Paulo II… Na prática, nossa atitude deve se fundar em um discernimento prévio, necessário para a circunstância extraordinária que significa um papa conquistado pelo liberalismo. Eis aqui este discernimento: quando o papa diz alguma coisa de acordo com a tradição, o seguimos; quando diz alguma coisa contrária à nossa fé, ou quando sustente ou deixe fazer algo que põe em perigo nossa fé, então não podemos segui-lo! Isto pela razão fundamental de que a Igreja, o Papa, e a hierarquia estão a serviço de nossa fé. Não são eles que fazem a fé, devem servir a ela. A fé não se faz, é imutável, a fé se transmite.
Por este motivo, não podemos seguir os atos destes papas feitos com a finalidade de confirmar uma ação que vai contra a tradição. Seria colaborar com a autodemolição da Igreja, com a destruição de nossa fé!
Fica claro que o que nos pedem sem cessar: completa submissão ao Papa e ao Concílio, aceitação de toda reforma litúrgica, vai em sentido oposto à tradição na medida em que o Papa, o Concílio e as reformas nos arrastam para longe da tradição, como os fatos provam através de anos. Assim pedir-nos isto significa pedir-nos colaborar com o desaparecimento da fé. Impossível! Os mártires morreram para defender a fé; temos exemplos dos cristãos prisioneiros, torturados, enviados a campos de concentração por sua fé! Um grão de incenso oferecido à divindade, teria salvo suas vidas. Me têm aconselhado algumas vezes: “Assinai, assinai que aceitais e tudo continuará como antes!” Não! Não se brinca com a fé!
Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre
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246 Documentos pontificais de Paulo VI, 1964. Ed. ST. Augustin, Saint Maurice, págs. 677-679.
247 Coleção “Itineraires”, NEL, 2ª. Edição, 1976, pág. 83.