PEGANDO O TOURO PELOS CHIFRES: O DILEMA SEDEVACANTISTA – LA SALETTE

Fonte: Courrier de Rome – Tradução: Dominus Est

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1. “Roma perderá a fé e tornar-se-á a sede do Anticristo”. Esta suposta profecia, acrescentada ao Segredo de Mélanie, a vidente de La Salette, é invocada com frequência para confirmar o estado atual da crise na Igreja. As aparições da Santíssima Virgem em La Salette foram “reconhecidas” pela Igreja. O que este fato significa? Que crédito se pode capitalizar da referida profecia?

2. O termo “aparições” designa determinados fenômenos que, apesar de sua diversidade, têm em comum serem portadores de um sentido inteligível, às vezes até de uma mensagem determinada. Eles tornam conhecido algo que, até então, era incógnito: neste contexto, podemos falar, portanto, de “revelação”. Mais especificamente, falamos de “aparições” ao dizer que elas são “revelações privadas”. E pretendemos, por isso, distinguir as revelações em questão da Revelação propriamente dita, a Revelação divina, chamada “pública”, que foi finalizada com a morte do último dos apóstolos, que está contida, como em suas fontes, nas Sagradas Escrituras e na Tradição, que é conservada e explicada pelo Magistério da Igreja e que se destina, como meio necessário de salvação, a todos os homens de todos os tempos e de todos os lugares.

Para melhor compreender o sentido dessa distinção, imaginemos que a revelação, compreendida, em geral, como um ensinamento que Deus endereça ao homem, seja definida, inicialmente, por seu propósito[1], e esse propósito é duplo: transmitir o conhecimento das verdades de fé necessárias a todos para a salvação e dirigir, na prática, as ações destes ou daqueles em vista de sua melhor santificação. O primeiro objetivo define, como tal, a Revelação pública. O segundo propósito define, como tais, as revelações privadas. É possível que, mesmo após a morte do último dos apóstolos, Deus continue a revelar aos homens seus desígnios providenciais. Não se trata mais de comunicar o conhecimento das verdades de fé, necessárias a todos e em todos os tempos, trata-se de manifestar determinado detalhe do plano divino, conforme decide a conduta particular de alguns em uma época ou em um dado lugar[2]. Notemos que o qualificativo “privadas” não quer dizer, necessariamente, que essas revelações sejam destinadas, em si, ao bem próprio de uma única pessoa física. Elas podem abranger vários indivíduos, grupos inteiros e até toda a Igreja de uma determinada época. Não obstante, em todos esses casos haverá uma única entidade moral. E a mensagem sempre interessará, a título de conselho, a algum privilegiado, mas não, a título de preceito, a uma parte apenas da Igreja, e não toda a Igreja enquanto tal, ou seja, enquanto instituição. O concílio de Trento, no decreto sobre a justificação[3], adota a expressão “speciali revelatione”, terminologia talvez menos clássica, porém melhor.

3. O valor das revelações privadas é indicado pelo ensino do Magistério ordinário, e representa a doutrina católica comum: a revelação privada deve ser submetida à Revelação pública. Com efeito, o bem da parte é para o bem do todo. Ora, a Revelação pública é o bem comum da Igreja, enquanto as revelações privadas são, na Igreja, um bem particular. Logo, as revelações privadas existem para a Revelação, pura e simplesmente. Elas não devem nem contradizê-la nem diminuir seu alcance. A Igreja, e somente ela, será juíza de sua oportunidade. É aqui que ressurge nossa questão inicial, feita a propósito das aparições de La Salette. O que significa um “reconhecimento” da parte da Igreja?

4. Em relação a uma revelação sobre a qual a Igreja ainda não se pronunciou, todos os teólogos estimam comumente que essa revelação é simplesmente ofertada à nossa prudência, ao nosso sentido crítico e à liberdade que temos de dar ou recusar a nossa adesão. De fato, na ausência de qualquer apreciação autorizada que emane da hierarquia eclesiástica, sempre teremos a vantagem de apresentar reservas diante desse tipo de manifestação, tanto mais se a credulidade popular se mostrar mais levada ao excesso neste domínio aventureiro.

5. O julgamento da Igreja vai mudar a natureza desse assentimento? Aqui os teólogos se dividem, e duas explicações se apresentam. Todavia, é a primeira que se impõe aos católicos, pois ela equivale ao ensinamento do Magistério constante, aceito pelos teólogos, e que não foi contestado até a primeira metade do século XX: é impossível que a aprovação concedida pela Igreja, aquela de um nihil obstat, tenha um alcance negativo. Portanto, ela representa nada mais nada menos que uma permissão para se publicar certas revelações em que não foi encontrado nada repreensível ou inoportuno. Tal é a regra que Bento XIV e São Pio X quiseram impor à atenção dos fiéis[4]. Bento XVI diz: “Convém saber que esta aprovação não é senão uma permissão, pela qual, após um sério exame, essas revelações podem ser publicadas para a instrução e a utilidade dos fiéis. A revelações assim aprovadas não é devido um assentimento de fé católica, e não se pode dar tal assentimento. Contudo, é devido um assentimento de fé humana, de acordo com o que recomenda as regras da prudência, segundo às quais tais revelações são prováveis e dignas de uma piedosa crença”[5]. […] “Daqui decorre, portanto, que se pode, estando salva e íntegra a fé católica, negar seu assentimento a essas revelações, e delas se desviar, desde que isso seja feito com a reserva devida, não sem qualquer razão, e evitando dar testemunho de desprezo”[6]. São Pio diz, além disso: “Nos juízos a emitir acerca das pias tradições, tenha-se sempre diante dos olhos a suma prudência de que usa a Igreja nesta matéria, de não permitir que essas tradições sejam relatadas nos livros sem as determinadas precauções, e com a prévia declaração prescrita por Urbano VIII. Mesmo neste caso, ainda não se segue que a Igreja tenha o fato por verdadeiro, mas apenas não proíbe que se lhe dê crédito, uma vez que para isto não faltem argumentos humanos. Foi isto precisamente o que, há trinta anos, a Sagrada Congregação dos Ritos declarou (decreto de 2 de maio de 1877): “Essas aparições ou revelações não foram nem aprovadas nem condenadas pela Santa Sé, foram apenas aceitas como merecedores de piedosa crença, com fé puramente humana, em vista da tradição de que gozam, também corroboradas por testemunhas e monumentos dignos de fé”[7]. O decreto citado por São Pio X diz respeito, além do mais, ao reconhecimento das aparições de La Salette. Em 1956, Pio XII exprimirá a mesma doutrina em Haurietis aquas. O culto ao Sagrado Coração se baseia no dado dogmático da Tradição; a revelação privada de Paray-le-Monial só intervém para confirmar a Tradição, posteriormente, e de modo acidental: não para estabelecer a verdade de fé, mas para facilitar a devoção ao mistério que esta verdade expressa. “Por conseguinte, não se pode dizer nem que este culto deve a sua origem a revelações privadas, nem que apareceu subitamente na Igreja, mas sim que brotou espontaneamente da fé viva, da piedade fervorosa de almas prediletas para com a pessoa adorável do Redentor e para com aquelas suas gloriosas chagas, testemunhas do seu amor imenso que intimamente comovem os corações. Portanto, como se vê, o que foi revelado a Santa Margarida Maria não acrescenta nada de novo à doutrina católica”[8].

6. Ao conceder sua aprovação, a Igreja nos certifica, em primeiro lugar, que nada na revelação privada da qual ela permite a divulgação vai contra a fé e os costumes, e que não corremos o risco de colocarmos em perigo nossa fé teologal ao crermos, por uma fé humana, nestas revelações. Sobre este ponto, sua declaração nos dá a certeza categórica de um ensinamento magisterial infalível[9]. Em segundo lugar, a Igreja supõe (sem se responsabilizar) a realidade histórica dos fatos, e sua origem provavelmente divina, tal como é atestada por testemunhas sérias e vários motivos de credibilidade que podem alicerçar uma crença humana. A este respeito, sua declaração nos dá a certeza moral da prudência humana. Em terceiro lugar, a Igreja encoraja e aconselha a devoção que pode ser ocasionada por essa revelação privada. Sua declaração nos dá, neste ponto, o conselho de uma competência autorizada. Todo conselho, por mais autorizado que seja, deixa a decisão livre. Na prática, nunca houve uma razão seriamente fundamentada para se recusar a reconhecer publicamente a legitimidade das devoções encorajadas por uma revelação privada reconhecida pela Igreja. Porém, cada indivíduo permanece livre para escolher (com toda a prudência pessoal) suas devoções, nos limites que lhe permite a Igreja.

7. Como explica o padre Calmel, sendo a Igreja uma sociedade de ordem sobrenatural, permanece possível, por exceção, que o governo social seja assistido por um conselho miraculoso, de ordem mística. Esse conselho miraculoso e de origem divina aparecerá enquanto tal à razão por meio de padrões de credibilidade. E, é à razão prática da hierarquia eclesiástica, dos bispos diocesanos ou, eventualmente, do Papa, que cabe decidir se se deve seguir esse conselho, e em qual medida. “Não há”, concluía o eminente teólogo, “outro Magistério senão aquele da hierarquia, um magistério inspirado que lhe seria superior e diante do qual ela deveria baixar a cabeça. Contudo, há outros mensageiros além daqueles da hierarquia, mensageiros inspirados, miraculosos, que os dignatários eclesiásticos devem aceitar ouvir, ainda que pertença à hierarquia concluir e tomar uma decisão”[10]. Em resumo, “a noção católica da Igreja não exclui, certamente, os carismas, mas os subordina à hierarquia. Ela não exclui as revelações privadas, mas pede apenas que não sejam ilusões privadas, ainda que essas revelações estejam de acordo com a revelação”[11]. E, mesmo nestes casos, a Igreja não impõe esses conselhos tal como as verdades de fé, pois “a Igreja coloca em um nível superior, incomparável, a vida teologal e a santidade”[12].

8. Notamos, enfim, que, em sua prudência, Dom Lefebvre sempre agiu com base nesses ensinamentos do Magistério, e sempre incitou os membros da Fraternidade a não se afastarem do espírito da Igreja. Encontraremos um bom exemplo desta prudência na Conferência dada durante o retiro de ordenação de junho de 1989. “As aparições são suplementos que o Bom Deus quer nos conceder pelo intermédio frequente da Santíssima Virgem, para (nos) ajudar, porém não é isso que vai servir de fundamento da nossa espiritualidade, não é isso que vai servir de fundamento da nossa fé. Se não houvesse a aparição, a fé permaneceria a mesma, e os fundamentos da nossa fé permaneceriam os mesmos. Então, é perigoso suscitar a impressão de que sem as aparições não poderíamos ficar de pé diante das dificuldades atuais. É danoso, é perigoso. […] Sempre fui, e realmente me esforcei, asseguro-lhes, para oferecer ao seminário esses princípios fundamentais da fé e evitar essa introdução demasiada insistente das diferentes aparições, não é? […] Então, tomemos muito cuidado com as nossas pregações, para não nos lançarmos nesse domínio e não desviarmos um pouco as pessoas do esforço que elas devem fazer, apoiadas sobre os princípios tradicionais da Igreja. É preciso colocar na mente das pessoas essa convicção de que toda a renovação da sociedade, dos indivíduos, das famílias, virá apenas por Nosso Senhor Jesus Cristo. Este é realmente o princípio de São Pio X, e é por isso que o padroado de São Pio X nos é tão útil. Instaurare omnia in Christo. Não é necessário fazer tempestade em copo d’água, é inútil procurar em outro lugar, é preciso tudo restaurar em Cristo, e se pregamos Cristo, tudo advirá, tudo, até as últimas consequências, até a cristianização de toda a sociedade, isso virá por Nosso Senhor Jesus Cristo”[13].

9. Voltemos, então, a La Salette[14]. Em 19 de setembro de 1846, a Santíssima Virgem Maria apareceu a Mélanie Calvat e Maximin Giraud, pequenos pastores de, respectivamente, 15 e 10 anos, em Salette, acima do vilarejo de Corps, no departamento do Isère (França). Ela confiou a ambos uma mensagem que deveria ser divulgada imediatamente a todo o seu povo, e, a cada um deles, um segredo, que poderão publicar mais tarde. Mélanie poderá publicar o seu a partir de 1858. A mensagem dirigida a todo o povo cristão profere, em dialeto, como castigo da irreligião, ameaças de calamidades agrícolas, apropriadas para comover populações camponesas: as batatas estragarão, as uvas apodrecerão, as nozes mofarão. Os dois segredos endereçados em francês, um à Mélanie e o outro a Maximin, se distinguem nitidamente. É importante fazer a distinção entre: o próprio fato da aparição; o Segredo de Mélanie; e o julgamento da Igreja, inicialmente sobre o Segredo e, em seguida, sobre as interpretações que puderam ser dadas dele.

10. O fato da aparição foi reconhecido pelo bispo ordinário do local, reconhecimento que deve ser entendido no sentido que recordamos mais acima. Após uma investigação canônica, o bispo de Grenoble, Dom de Bruillard, publica, no mês de novembro de 1841, uma ordem declarando solenemente que os fiéis têm bons motivos para acreditar na aparição como “verdadeira e certa”. Em uma segunda ordem, de 4 de novembro de 1854, o sucessor de Dom de Bruillard, Dom Ginouillac, corrobora esse reconhecimento. Desde 1852, a Sagrada Congregação dos Ritos e a Sagrada Congregação das Indulgências tinham aprovado a devoção, assim como o culto litúrgico, à Virgem de La Salette. E, em 1879, um Breve de Leão XIII erigiu a igreja de La Salette em Basílica menor.

11. Os dois segredos foram colocados no papel em 5 de julho de 1851, e remetidos ao papa Pio IX, no dia 18 de julho seguinte. Essas duas redações originárias permaneceram inéditas. Aqui, é muito importante uma observação: do Segredo confiado a Mélanie existem várias outras versões, distintas da redação original remetida ao Papa. Uma versão, também inédita, datada de 14 de agosto de 1853; várias outras versões sucessivas publicadas pelos cuidados do padre Bilard, de 1870 a 1873, a última contendo o Imprimatur do arcebispo de Nápoles, Sisto Riario Sforza; enfim, uma terceira versão que a própria Mélanie mandou imprimir em 1879, com o Imprimatur do bispo de Lecce, Luigi Zola. É essa última versão (diferente das precedentes) que é comumente recebida como o Segredo de La Salette, e onde aparece o inciso “Roma perderá a fé tornar-se-á a sede do Anticristo”. Essa versão foi reimpressa sem alterações pelo editor católico da Sociedade Santo Agostinho (futuras edições Desclée) em 1922, sob o título de A Aparição da SS. Virgem sobre a santa montanha de La Salette, no sábado, 19 de setembro de 1846, com o Imprimatur do padre Lepidi, mestre do Sacro Palácio. A constatação que se impõe diante dessa pluralidade de redações nos parece muito bem resumida em uma carta que, em junho de 1915, o cardeal de Cabrières escreveu ao seu metropolita, Dom Latty, arcebispo de Avignon[15]. Esse último tomou conhecimento de que, em Montpellier, vila episcopal do cardeal, um comandante major de artilharia, Henry Grémillon – mais conhecido sob o pseudônimo de Doutor Mariavé – tinha acabado de imprimir e difundir dois livros nos quais ele comenta o Segredo de La Salette. O arcebispo interroga seu sufragante sobre esse assunto. Este responde longamente. “Não parece que temos aqui o Segredo remetido à Sua Santidade o Papa Pio IX, em 1858, pelos enviados do Eminentíssimo bispo de Grenoble. Em sua forma atual, ele foi editado por Mélanie Calvat, porém, em diversos momentos, por sucessivos fragmentos, o que demonstra ser mais o resultado de uma composição pessoal que a repetição exata do texto primitivo remetido a Pio IX. […] O que está claro é que as primeiras redações do Segredo foram muito menos desenvolvidas que as últimas. Logo, é provável que, sob a influência do ambiente em que terminou sua vida, Mélanie amplificou a forma primitiva da escrita que ela mandou enviar ao Papa; Não temos aqui, com certeza, uma cópia oficial do Segredo remetido a Pio IX. Somente a Sagrada Congregação do Santo Ofício poderia, com a autorização do Sumo Pontífice, pesquisar o original e determinar, com o teor primitivo, a verdadeira autoridade. A natureza deste Segredo, tal como lemos hoje, é muito estranha: ele é ordenado de um modo muito confuso. Contém alusões muito singulares à política. Parece, enfim, favorecer de um modo preciso os erros dos antigos Milenaristas, que anunciam uma renovação que se cumpriria no tempo e sobre a terra, diferentemente do que ensina a verdadeira religião sobre a ressurreição geral no fim do mundo e sobre a felicidade dos eleitos, que eles hesitam, necessariamente, em atribuir uma origem celeste”[16].

12. A Igreja se pronunciou sobre a divulgação do Segredo. Em 14 de agosto de 1880, um ano após a publicação da última versão do Segredo, aquela que é hoje comumente recebida, o cardeal Caterni, prefeito da Sagrada Congregação da Inquisição, escreveu ao bispo de Troyes, Dom Cortet, que “essa publicação não agrada de modo algum a Santa Sé, outrossim, sua vontade é que os exemplares do dito folheto – por onde foram postos em circulação – sejam retirados das mãos dos fiéis”. Como o texto não deixou de circular, a Sagrada Congregação do Santo Ofício promulgou, em 21 de dezembro de 1915, o Decreto Ad supremæ, pelo qual a Santa Sé “ordena a todos os fiéis, independente do país a que pertençam, de se abster de abordar e discutir sobre o assunto tratado, sob qualquer pretexto e de qualquer forma que seja, tais como livros, folhetos ou artigos, assinados ou anônimos, ou de qualquer outro modo”[17]. Os contraventores serão privados dos sacramentos, se forem simples leigos, ou mesmo suspensos, se forem sacerdotes. Em 7 de fevereiro de 1916, o cardeal Merry del Val esclarecia, em nome do Santo Ofício, que a aparição de La Salette não se beneficiava de um reconhecimento romano, e permanecia simplesmente aprovada pela autoridade diocesana, competente na matéria. A reedição de 1922, com o Imprimatur do padre Lepidi, foi colocada no Index (ou seja, “proscrita e condenada”) por um decreto do mesmo Santo Ofício, de 9 de maio de 1923. Uma última intervenção do Santo Ofício, em 8 de janeiro de 1957, com uma carta do cardeal Pizzardo ao padre Francesco Molinari, procurador-geral da Congregação dos Missionários de La Salette, esclarece que é exatamente o texto do Segredo redigido por Mélanie em 1879, e republicado em 1922, que é objeto da condenação. Conclui-se de tudo isso que: 1) o texto do Segredo não foi aprovado pela Igreja assim como foi a aparição de 1846; 2) Em 1915, o Santo Ofício proibiu sua difusão sob pena de pesadas sanções; 3) Ele proibiu sua posse e leitura em 1923; 4) Ele esclareceu que pretendia condenar seu conteúdo em 1957.

13. Vários livros sobre o Segredo foram colocados no Index: dois do padre Combe, pároco de Diou, respectivamente em 7 de junho de 1901 e 12 de abril de 1907, e um do doutor Mariavé (pseudônimo do doutor Grémillon), em 12 de abril de 1916. Um grande número de padres divulgadores do Segredo foram atingidos por sanções canônicas: o padre Parent, suspenso pelo bispo de Nantes em 1903; o padre Sicard, censurado pelo Santo Ofício em 1910; o padre Rigaud, suspenso pelo bispo de Limoges em 1911; o padre Althoffer, interditado em 1960. O mais famoso propagandista do Segredo de Mélanie foi o escritor Léon Bloy, na Cela que chora, em 1908, e a Vida de Mélanie, em 1912. Ele foi seguido por seu afilhado e discípulo Jacques Maritain… Dom Léon Cristiani fez justiça aos erros gravíssimos de Léon Bloy, em seu belo livro Presença de Satanás no mundo moderno, publicado em 1959[18].

14. O decreto do Santo Ofício de 21 de dezembro de 1915, pelo qual a Santa Sé proscreve a difusão e a leitura do Segredo redigido em 1879, esclarece que as medidas tomadas não são contrárias à devoção da Santíssima Virgem invocada e conhecida sob o título de Reconciliadora de La Salette. A aparição de La Salette, com todo o culto que ela implica, faz parte do patrimônio da devoção católica. O mesmo não ocorre com o Segredo de Mélanie. Em seu tratado clássico de teologia mística, o padre Poulain dá a seguinte apreciação sobre isso: “O Segredo de Mélanie de La Salette é visto por certas pessoas como tendo sido modificado pela imaginação da vidente. Uma das razões sobre as quais as pessoas se apoiam é que o texto contém acusações muito duras, e sem nenhum corretivo, sobre os costumes do clero e das comunidades de 1846 a 1865. A história fala de maneira completamente diferente, e indica um período de fervor e zelo apostólico. Era a época de Pio IX, de Dom Bosco, do Santo Cura d’Ars e da expansão do ensino cristão pela França”[19]. Quanto ao ponto preciso que nos ocupa, “Roma perderá a fé e tornar-se-á a sede do Anticristo”, não é muito difícil compreender a reação da Santa Sé, pois a Sé de Roma é santa e sagrada: ela representa uma instituição divina, indefectível como tal. Considerando estritamente os termos, a expressão de La Salette não deixa de parecer, no mínimo, temerária e injuriosa, ou até mesmo trilhando o caminho da heresia, na medida em que ela sugeriria a negação do dogma da indefectibilidade da Igreja. Ainda que os acontecimentos que vivemos sejam o que são, não se torna menos verdade que as advertências do Céu devem permanecer isentas de equívoco e  malsonância, para poderem se apresentar com todas as garantias de autenticidade. No sermão das sagrações de 30 de junho de 1988, Dom Lefebvre cita essa profecia de La Salette, mas evita mencionar a expressão que Mélaine atribui à Santíssima Virgem. Ele se contenta em dizer: “A Santíssima Virgem anunciou como um eclipse em Roma, um eclipse na fé”. Esta reserva, vinda de um pastor cujo transcorrer do tempo não faz que reconhecer a sabedoria, deveria nos proporcionar uma grande reflexão.

15. Consideremos também a observação feita por São Thomas à reflexão de São Jerônimo. Esse último dizia, justamente, que “falando de forma inconsiderada, caímos na heresia”, e o doutor angélico acrescenta: “Também nossas expressões não devem ter nada em comum com aquelas dos hereges, para não parecerem favorecer o erro deles”[20]. Se considerarmos que Lutero foi o primeiro a falar da Sé de Roma como Sede do Anticristo, a expressão do Segredo de Mélanie se torna inadmissível. E compreendemos porque o Santo Ofício quis reprová-la. De qualquer modo, ela não pode servir de argumento para apoiar qualquer tese sedevacantista.

FIM

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Notas:

1. Suma Teológica, 2a2ae, questão 174, artigo 6.

2. Essas manifestações podem corresponder, em particular, à diversidade das expressões individuais que, na Igreja, relatam, cada uma ao seu modo, o mesmo mistério. Elas são um dos aspectos da catolicidade. Na falta de uma analogia, corre-se o risco de ignorar a verdadeira natureza do papel que elas são chamadas a desempenhar ao se integrarem, cada uma em seu lugar, ao patrimônio eclesiástico. Poderemos, para ilustrar esse ponto, nos reportar às interessantes considerações de Charles Journet, na Igreja do Verbo Encarnado, I, página 724: “Newman se deu conta de que as recriminações que ele endereçava outrora à Igreja romana eram, ao invés disso, imputáveis ao que subsistia de humano entre os católicos, e que, por exemplo, para amar profundamente a Santa Virgem, um inglês não era obrigado a amar ao modo e ao gosto de um italiano”.

3. Concílio de Trento, Sessão VI, capítulo XII, DS 1540.

4. Ver também Cardeal Jean-Baptiste Franzelin, De traditione divina, tese XXII, corolário, 4ª edição de 1876, p. 254-257; tradução francesa: La Tradition, Courrier de Rome 2008, nº 480-483, p. 336-339.

5. Bento XVI, De servorum Dei beafificatione et beatorum canonizatone, livro II, c 32, nº 11.

6. Ibidem, livro III, c 53, nº 15.

7. São Pio X, Encíclica Pascendi, em ASS, t. XL (1907), p. 648-649; nº VI das medidas a serem tomadas contra o modernismo.

8. Pio XII, Encíclica Haureitis aquas, em ASS, t. XLVIII (1956), p. 340.

9. Trata-se da infalibilidade do Magistério diante de seu objeto secundário. A Igreja é infalível quando ela examina e declara o valor doutrinal dos escritos. Cf. Louis Billot, sj, L’Église. II – Sa constitution intime, Courrier de Rome, 2010, nº 597-599, p. 203-206.

10. Roger-Thomas Calmel, op. Brumes du révélationisme et lumières de la foi, p. 125.

11. Calmel, ibidem, p. 125.

12. Calmel, ibidem, p. 124.

13. Arquivos do Serviço de registro de Ecône, série “Retiros”, 99/2 – A.

14. Cf. na Revue Sodalitium do Instituto Mater Boni Consilli, sob a pena do padre Ricossa, o Apêndice ao artigo “O Apocalipse segundo Corsini”, p. 57-59, assim como sobre o site Sodalitium, na página de 21 de março de 2020, a documentação intitulada “A Santa Sé e o Segredo de la Salette”.

15. Encontramos a publicação integral no Semaine religieuse de Montpellier de 26 de junho de 1915. Esta carta é também reproduzida na La Leçon de l’Hôpital Notre-Dame d’Ypre. Exégèse du Secret de La Salette, 2ª edição, Paris, Eugène Figuière et Cie, 1916, p. 182-190.

16. Citado por Michel Corteville, La “grande nouvelle” des bergers de La Salette, Diffusion Téqui, 2000, p. 273, tradução do texto original latino conservada nos arquivos da diocese de Troyes.

17. AAS, t. VII (1915), p. 594.

18. Léon Cristiani, Présence de Satan dans le monde moderne, Editions France Empire, 1959, p. 288-296.

19. Auguste Poulain, sj. Des Grâces d’oraison – Traité de théologie mystique, parte IV, c 22, nº 36 (3ª regra de discernimento: a revelação não contém nenhum ensinamento ou não é acompanhada de nenhuma ação contrária à decência e aos bons costumes?).

20. 3ª parte, questão 16, artigo 8, corpo.