“PERGUNTE-ME QUALQUER COISA”: INSTAGRAM CONTRA A VIRTUDE DA PRUDÊNCIA

149 Perguntas para fazer no Instagram Stories [2024]

“Porque virá tempo em que (muitos) não suportarão a sã doutrina, mas acumularão mestres em volta de si, ao sabor das suas paixões, (levados) pelo prurido de ouvir” (2Tm 4, 3)

Tem se alastrado nos últimos anos um fenômeno inusitado nos meios católicos — inclusive nos meios conservadores e tradicionais —: usuários católicos de redes sociais (especialmente do Instagram) fazem uso de uma ferramenta própria da rede em que se enviam perguntas (de maneira anônima) para um também fiel católico e candidato a “guru” prover respostas públicas (o que pressupõe não só um conselho a um amigo que perguntou, mas um magistério pessoal à disposição de muitos leitores). Na maior parte dos casos, o guru começa se propondo a responder perguntas específicas sobre um assunto ao qual ele acredita dominar, mas não demora muito para que, embebido por sua própria “sabedoria”, ele comece a pontificar sobre qualquer assunto, como por exemplo: 

– namoro: mesmo que não tenha a experiência superior de um padre, diretor de almas, ou a de um fiel casado, que viveu por muitos anos a experiência diária do casamento e do namoro, e talvez venha a ter a graça de estado para dar um conselho particular a um afilhado, o guru das redes sociais se propõe a pontificar sobre o que quer que lhe perguntem sobre o assunto. Há até muitos gurus solteiros(as) prontos a dar conselhos sobre o assunto. Há absurdos bem piores, que não comentamos aqui para não escandalizar o leitor;

vocação: por incrível que pareça, não é raro os ouvintes pedirem conselhos vocacionais (sacerdócio ou matrimônio) e esses(as) gurus responderem provendo alguma “direção”. Há inclusive seminaristas enviando perguntas, conforme podemos deduzir dos enunciados. O que mais se vê aqui são respostas que parecem ter vindo de um despacho do quinto dos infernos. O silêncio que pouparia a alma do incauto seminarista e do soberbo guru passa ao largo;

literatura: mesmo que em alguns casos trate-se de algum sujeito que tenha lido algo a mais que a média da maioria, normalmente estamos falando de “gurus” que mal chegaram aos 30 anos e que sequer escreveram alguma obra relevante (ou sequer produziram qualquer material que seja) que lhe credencie como consultor sobre questões literárias. Parece que quanto menor tiver sido sua produção de obras escritas e publicadas, tanto maior a autoridade reivindicada nas respostas. Alguns desses catedráticos (sem obras e sem cátedra) inclusive se dispõem a vender vagas em um “clube de livros” virtual que eles mesmos criaram. Praticamente todos eles se sentem preparados para dar “dicas” de livros: desde a mais alta teologia sagrada até à decoração da casa, e ambos os assuntos são tratados com a mesma importância. Dificilmente alguém achará uma “caixinha de respostas” desses docentes da última hora dizendo para a pessoa procurar algum padre bem formado ou um estudioso de verdade antes de se arriscar a ler algo que poderia prejudicar sua alma para sempre. Há até quem se acredita na altura de repreender tanto o “Index de livros proibidos” da Igreja, por ter listado Balzac, quanto o próprio São Leonardo de Porto Maurício, por uma suposta severidade em seu sermão “O pequeno número daqueles que são salvos”; 

liturgia e religião: parece que quanto mais delicado é o assunto, mais esses jovens adultos se sentem preparados para lidar com eles: “É a profunda ignorância que inspira o tom dogmático”, conforme veremos a seguir. Grassam os absurdos sobre a questão ‘missa nova vs Missa de sempre’, conselhos sobre qual a melhor missa a se frequentar, qual comportamento adotar, sacramentos, religiões comparadas, etc.

acontecimentos do dia a dia: todos nós acabamos, talvez por impulso dos nossos tempos, emitindo uma opinião (mesmo que interior) sobre determinados fatos que acontecem no país e no mundo. O ideal seria nos abstermos, mas nem sempre é o que acontece. Aqui os gurus dão um toque a mais nesse movimento voluntarista da opinião: não basta só tê-la, mas é preciso dar aos fatos sua interpretação “correta” para milhares de ouvintes “formarem” suas respectivas opiniões. Agem como demiurgos de consciências.

graves problemas pessoais: algumas pessoas, passando por graves problemas, e talvez sem ter a quem recorrer, acreditam poder encontrar ali na voz desses “mestres” uma resposta que lhes aliviará. A esta altura, o leitor já deve imaginar o que esperar. O grau de inconsequência aqui deixa de ser só uma questão de destruir a própria alma e a do “aconselhado” (e da audiência) e passa a flertar com a violação do Código Penal.

Esta lista não é exaustiva, pois há muitos outros assuntos, tais como economia, tecnologia, política, história, filosofia, física, teologia, etc. que não constituem qualquer intimidação para que tão corajosos “professores” emitam suas respectivas opiniões. Falam de Vaticano II, da teoria da relatividade, bolsa de valores, processo canônico de anulação de casamentos e o que mais estiver à frente.

Parece tão surreal tudo isso, que novamente precisamos lembrar: não estamos falando que muitas pessoas falam separadamente de apenas um desses assuntos, mas sim que a maioria delas fala sobre praticamente todos esses assuntos! Estamos diante de uma profusão de “mestres” que acreditam ter conhecimento enciclopédico! Além disso, voltemos ao primeiro parágrafo e lembremos também: não estamos falando só de católicos de teor progressista, mas de conservadores e alguns até mesmo ditos tradicionais! 

A persistência em se colocar como sábios para uma quantidade tão grande de pessoas sobre assuntos que só conhecem sua superfície (e às vezes nem isso), fazem com que esses candidatos a futuros ex-católicos venham cada vez mais em direta oposição aos mais experimentados ensinamentos de todos os tempos, caindo assim em direta oposição também à virtude da prudência, que é a “reta razão no agir” que guia o homem (sob a luz da fé e em maior ou menor grau sob o Dom de Conselho) para conseguir da melhor maneira agir em conformidade com seu fim último, que é Deus.

Dito de outra maneira, se é verdade que a virtude da Caridade é a forma das virtudes, a Prudência mostra a elas os meios e as oportunidades, ou seja, isso significa que todas as virtudes serão exercidas “prudencialmente” (p. ex.: não se pode ser justo se a “reta razão no agir” não ditar o modo e mostrar a oportunidade pela qual se exercerá essa justiça). Assim, em assuntos delicados, tais como o ensinamento de muitas pessoas em vários assuntos, o desenvolvimento da prudência requer uma longa e madura reflexão respaldada por anos de um trabalho ordenado e em conformidade com o estado de vida ao qual se está colocado, e mesmo assim são pouquíssimos aqueles habilitados para falar de uma ampla gama de assuntos. O mero estudo de um assunto nem sempre qualificará alguém para lidar com ele de maneira pública a modo de magistério. Por isso, esses “mestres” faltam também com a misericórdia ao próximo quando vendem como pão uma massa envenenada, levando seus ouvintes a se tornarem igualmente doentes: “Pode porventura um cego guiar outro cego? Não cairão ambos no barranco?” (Lc. 6, 39).

Terminamos esta breve reflexão com um trecho muito interessante de um ensaio do Padre Jean-Michel Gleize, FSSPX, postado aqui neste mesmo blog (grifos nossos a seguir), quando, ao introduzir uma questão difícil, ele explicou a dificuldade de lidar com ela em meio a tantas opiniões desqualificadas:

“Fala-se mais frequentemente de «crítica» quando o juízo tem por objeto atos do intelecto ou da vontade. Por exemplo, critica-se o comportamento de seus semelhantes porque se exerce um juízo sobre os atos de vontade do outro; ou ainda criticam-se opiniões porque se exerce um juízo sobre outros juízos. Fala-se também de «crítica», mas não a respeito das operações humanas, mas a respeito das obras artificiais que podem resultar delas: crítica das obras de arte mecânica (tal como pode ocorrer no âmbito de competições agrícolas) ou crítica das belas artes (como a crítica literária).

Em um sentido particular, o juízo que se exerce sobre o ato do intelecto enquanto tal (na medida em que ele é o ponto de partida válido de toda especulação) pertence propriamente à sabedoria metafísica. E o juízo que se exerce sobre o ato de fé teologal enquanto tal pertence propriamente à teologia, na sua parte apologética. Enfim, fala-se também de «crítica» num sentido pejorativo, para denominar o juízo injusto, que se produz de dois modos: no caso do juízo temerário, quando aquele que pretende julgar não tem o conhecimento requerido – necessário e suficiente – para poder fazê-lo; ou no caso do juízo usurpado, quando aquele que pretende julgar não possui a autoridade requerida para poder fazê-lo.

No primeiro caso, há, em primeiro lugar e antes de tudo, uma ignorância, que levará a um erro e depois a uma injustiça; no segundo caso, há primeiro e antes de tudo uma injustiça que levará à outra injustiça, mesmo se não houver nem e ignorância e nem erro. Mas nos dois casos, a injustiça do juízo não consiste em decidir mal ao invés de decidir bem: o juízo é injusto na precisa medida em que aquele que julga (favoravelmente ou não, pouco importa) não pode reivindicar, valendo-se de seus dizeres, nem a ciência e nem a autoridade suficientes.

Na maior parte das vezes, as desordens que destroem a paz numa sociedade, e que acabam inclusive trazendo prejuízo ao bem pessoal dos indivíduos, têm por origem esses dois tipos de juízos injustos. Há aí uma consequência manifesta do pecado. E o individualismo moderno, nascido na Revolução, não faz senão agravar, até proporções inauditas, essa má inclinação. Cada um tem uma opinião sobre tudo, e essa opinião é tão mais rapidamente dita quanto mais flagrante for a incompetência e menos comprovada for a autoridade.

Hoje, o primeiro (ou melhor, o último) a chegar não hesita em opor-se, com inabalável confiança e em questões complexas e difíceis, ao parecer esclarecido dos entendidos que estudaram um determinado assunto por toda sua vida. E aqueles que geralmente ignoram as circunstâncias concretas das quais dependem uma decisão carregada de consequências, tratam como crianças os homens de experiência que, sobre o assunto, ponderaram demoradamente os prós e os contras antes de tomar o lado mais sábio. Cada indivíduo dogmatiza e pronuncia suas sentenças irreformáveis para invalidar sem outra forma de processo os juízos mais legítimos da mais incontestável autoridade.

A imprensa local, nacional e internacional, assim como naquilo que convencionou-se chamar de «Net», não fazem senão intensificar o caos ao repercutir sem intervalos todos esses aforismos dignos do Sr. Homais. Aqui, Flaubert se junta a La Bruyère: «É a profunda ignorância que inspira o tom dogmático».

Para evitar essas desordens, não percamos jamais de vista quais são os dois critérios insubstituíveis, necessários e suficientes para que um juízo seja justo. Esses dois critérios são, por um lado, a competência, que é fruto da ciência e da experiência concreta e, pelo outro, a autoridade, que decorre de um dever de estado legitimamente concedido. As outras qualidades pessoais, a ciência ou os anos de experiência em outras áreas diferentes, a autoridade no exercício de uma função distinta, jamais substituirão a competência e a autoridade requeridas para que se possa julgar justamente hic et nunc [aqui e agora].

Um professor de letras, seja o quão eminente for, não pode se pronunciar em matéria de logaritmos. Ninguém contestaria a experiência provada de um velho professor que passou toda sua vida instruindo as crianças do campo; todavia, esse professor teria muito a aprender, senão quase tudo, de um professor universitário, talvez até mais jovem que ele, mas não obstante mais experimentado que ele em sua área, e vice-versa. Mesmo os antigos alunos das grandes Écoles se especializam de tal maneira num determinado ramo particular do saber humano, que eles chegam a negligenciar os outros. Não é por culpa deles, mas sim por culpa da nossa civilização. Não vivemos mais no século de Pico dela Mirandola, onde um homem podia adquirir toda a ciência de sua época. E menos que as ciências, as experiências (e portanto as prudências) não são intercambiáveis. Da mesma maneira as autoridades. Por isso que Deus quis estabelecer sua Igreja como uma sociedade em que cada um cumprisse uma parte do trabalho necessário ao bem do conjunto. São Paulo constata isso de uma vez por todas: «Temos dons diferentes, segundo a graça que nos foi dada…». Em todos os tempos, o homem-orquestra foi um personagem não somente ridículo, mas odioso.

A rainha da Espanha, Isabel a católica, pediu um dia que fosse composto um quadro representando um padre, uma mulher e um assassino. Como o artista estava estupefato, Sua Majestade aproveitou para dar uma lição. A composição deveria representar o padre no altar, a mulher no parto e o assassino na forca. No espírito de Isabel, o quadro deveria dar uma ideia do famoso princípio de ordem que está no fundamento de toda a justiça: cada um no seu lugar e um lugar para cada um.[…]”