Fonte: Courrier de Rome n.º 322, maio de 2009 – Tradução: Dominus Est
Autor: Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX
4.1 – Um dilema inalterado
Reencontramos aqui o mesmo dilema, onde apesar de tudo estamos obrigados a escolher entre duas concepções diferentes de Tradição. Por um lado, uma Tradição concebida como a transmissão fiel de uma doutrina substancialmente imutável; pelo outro, uma Tradição viva concebida como um movimento histórico. Quando ainda teólogo, Joseph Ratzinger havia explicado claramente: «Não somente deve-se dizer que a história dos dogmas, no âmbito da teologia católica, é fundamentalmente possível, mas também que todo dogma que não se elabora como história dos dogmas é inconcebível»[50]; e é por isso que «a formação do conceito de Tradição no catolicismo pós-tridentino constitui o maior obstáculo a uma compreensão histórica da realidade cristã»[51].
Com efeito, o conceito pós-tridentino de Tradição supõe que a revelação foi encerrada na morte do último dos apóstolos e que desde então ela se mantém substancialmente imutável. Ora, «o axioma do fim da revelação com a morte do último apóstolo», explica Joseph Ratzinger, «era e é, no interior da teologia católica, um dos principais obstáculos à compreensão positiva e histórica do cristianismo: o axioma assim formulado não pertence aos primeiros dados da consciência cristã»[52]. «Ao afirmar que a revelação encerrou-se com a morte do último apóstolo, concebe-se objetivamente a revelação como um conjunto de doutrinas que Deus comunicou à humanidade. Essa comunicação terminou em uma determinado dia e os limites desse conjunto de doutrinas reveladas permaneceram assim estabelecidos ao mesmo tempo. Tudo o que vem após seria ou a consequência dessa doutrina ou a corrupção dela»[53]. Ora, «não somente essa concepção se opõe a uma plena compreensão do desenvolvimento histórico do cristianismo, mas está inclusive em contradição com os dados bíblicos»[54].
Não vemos como seria possível conciliar essa proposta com os ensinamentos do papa São Pio X. No Decreto Lamentabili, ele condena efetivamente as duas proposições seguintes: «A revelação, que é objeto da fé católica, não terminou com os apóstolos»[55] e «Os dogmas que a Igreja apresenta como revelados não são verdades caídas do céu, mas uma interpretação dos fatos religiosos que o espírito humano logrou alcançar à custa de laboriosos esforços»[56].
4.2 – Congelar o magistério?
Nessas condições, podemos dizer que não é preciso «congelar a autoridade do magistério da Igreja em 1962»? Se a autoridade do magistério está «congelada» no sentido em que ela não poderia mais sequer ser exercida após essa data, e que só valeria em si mesma a doutrina já proposta nos atos do magistério anterior, resulta que só se teria na Igreja um magistério póstumo, contrastando com um magistério vivo. Ora, nós sabemos bem que a instituição divina da Igreja faz com que seja necessária uma autoridade social que seja exercida em cada época da história, no ambiente de uma pregação viva porque atual, e que essa pregação do magistério tenha como tarefa propor com autoridade, explicar e esclarecer, sempre no mesmo sentido, o depósito da fé. Nesse sentido, está bem claro que a Igreja católica não poderia ser definida, por princípio, como «a Igreja dos sete ou dos vinte primeiros concílios ecumênicos».
Mas por outro lado, é indubitável que a autoridade desse magistério vivo deve ser exercida em cada época da história para transmitir sem alteração o depósito da fé definitivamente revelada, e nesse sentido, para retomar a expressão metafórica do papa Bento XVI, tudo está «congelado» desde a morte do apóstolo São João e a doutrina católica permanece substancialmente imutável: «As definições são estáticas, as definições são definitivas, o Credo é algo definitivo, não se pode mudar o Credo»[57]. Ora, nós somos obrigados a constatar: para Bento XVI, se «não se pode congelar a autoridade do magistério da Igreja em 1962», isso se explica porque o «Vaticano II contém em si a história doutrinal inteira da Igreja», ou seja, porque a Tradição é viva. Mas nós encontramos aí a noção já indicada por João Paulo II no Motu proprioEcclesia Dei afflicta, noção que constitui uma novidade inaudita em relação aos ensinamentos do magistério anterior ao Vaticano II.
4.3 – A solução verdadeira requer a questão verdadeira
O fato é que, acerca de uma questão, devemos reconhecer em Bento XVI o mérito da clareza. Exprimindo sua intenção de unir no futuro a comissão pontificial Ecclesia Dei à Congregação para a Doutrina da Fé, o papa explica nos seguintes termos o sentido desse desejo: «Deste modo torna-se claro que os problemas, que agora se devem tratar, são de natureza essencialmente doutrinal e dizem respeito sobretudo à aceitação do Concílio Vaticano II e do magistério pós-conciliar dos Papas»[58]. A remissão da excomunhão é um «provimento no âmbito da disciplina eclesiástica. […] É preciso distinguir este nível disciplinar do âmbito doutrinal»[59].
Embora existam ainda muitos pontos de vista possíveis, é difícil de seguir um e impossível seguir muitos simultaneamente. Não distinguir a natureza das verdades que estão em jogo, e que tornam necessárias as discussões entre a Fraternidade São Pio X e a Santa Sé, pode fazer com que todo o esforço para dissipar os mal-entendidos acabe tendo como efeito a multiplicação deles. Se nos limitarmos às declarações recentes que citamos e analisamos, podemos perceber que o papa delimita inequivocamente o ponto da disputa, cuja solução deverá estar no centro de uma eventual discussão doutrinal entre a Santa Sé e a Fraternidade São Pio X.
Seria necessário começar por entender acerca da própria natureza da Tradição e do magistério. É somente às custas desse primeiro esclarecimento que o Concílio Vaticano II poderia ser objeto de uma discussão séria, e que se poderia esperar resolver seriamente os graves problemas que apareceram até aqui.
Fim.
Notas
- Joseph Ratzinger, Théologie et histoire. Notes sur le dynamisme historique de la foi, 1972, p. 108, citadopor Joaquim E. M. Terra, Itinerarioteologico di Benedetto XVI, Roma, 2007, p. 66.
- Id., ibid., p. 65.
- Id., ibid., p. 64.
- Id. ibid.
- Id. ibid.
- Proposição condenada n.º 21 em DS 3421.
- Proposição condenada n.º 22 em DS 3422.
- Mons. Lefebvre, «Conferência em Écône, 18 de outubro de 1976» em Vu de haut n.º 13 (outono 206), p. 47.
- Beto XVI, «Carta de Sua Santidade Bento Xvi aos bispos da Igreja católica a propósito da remissão da excomunhão aos quatro bispo consagrados pelo Arcebispo Lefebvre» em DC n.º 2321, p. 319-320.
- Id., ibid., p. 319.