Fonte: Courrier de Rome n.º 322, maio de 2009 – Tradução: Dominus Est
Autor: Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX
3.1 – Uma nova perspectiva
O magistério ordinário universal é regulado em função do magistério solene, visto que o ecoa. Isso quer dizer que o magistério ordinário conciliar deve se definir enquanto tal como eco do Vaticano II. E nós podemos ver que de fato é o que acontece[38]. Ora, segundo João XXIII, a intenção do Vaticano II foi adotar as «formas de investigação e de formulação literária do pensamento moderno»[39].
E pouco antes de sua eleição ao soberano pontificado, o cardeal Joseph Ratzinger havia explicado claramente o que se deveria entender nessa passagem: o pensamento moderno se identifica com a cultura do Iluminismo, «definida substancialmente pelos direitos da liberdade» e que «ela parte da liberdade como valor fundamental e à luz da qual tudo é medido»[40]. Conforme essas duas interpretações autorizadas de João XXIII e do futuro Bento XVI, o concílio Vaticano II não quis mudar diretamente a verdade da doutrina, mas propô-la desde um ponto de vista novo: do ponto de vista da liberdade. Os dois pontos culminantes desse ensinamento são a declaração Dignitatis humanae sobre a liberdade religiosa e a constituição pastoral Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo atual.
Mas certamente podermos nos perguntar como seria possível conciliar esse novo ponto de vista com a Tradição da Igreja. Com efeito, a verdade revelada por Deus é exprimida em conceitos que correspondem a uma filosofia bem determinada. Está é a filosofia natural à inteligência humana e é a única possível: filosofia do ser, que dá o primado à inteligência sobre a vontade e, portanto, sobre a liberdade, e onde a verdade se define como a exata conformidade da faculdade intelectual com a realidade, «adaequatio rei et intellectus». Não se pode mudar essa filosofia natural, dando o primado à liberdade, sem alterar profundamente a revelação divina, sem modificar o sentido das expressões dogmáticas[41]. No Motu proprio Doctoris angelici de 29 de junho de 1914, o papa São Pio X recorda a ligação necessária que existe entre uma sã filosofia, a filosofia perene de Aristóteles e de Santo Tomás, e a inteligência autêntica dos dogmas revelados: «Os principais pontos da filosofia de Santo Tomás não devem ser colocados no gênero de assuntos que podem ser disputados em um ou outro sentido, senão que devem ser considerados como fundamentos sobre os quais toda a ciência das coisas naturais se encontram estabelecidas; e se forem retirados ou alterados de qualquer maneira esses fundamentos, acontecerá necessariamente como consequência que os estudantes das ciências sagradas não percebam mais sequer o significado das palavras pelas quais os dogmas que Deus revelou são propostos pelo magistério da Igreja. É por isso que Nós quisemos que todos aqueles que se dedicam a ensinar a filosofia e a teologia sagrada fossem advertidos que, caso se afastem, sobretudo nas coisas da metafísica de Santo Tomás, não será sem grande prejuízo».
É por isso que o concílio Vaticano II dificilmente poderia propor a doutrina revelada do ponto de vista novo «das formas de investigação e de formulação literária do pensamento moderno» sem correr o risco de alterar profundamente a inteligência e o sentido do depósito da fé.
3.2 – Da Tradição da Igreja à nova tradição viva
Bento XVI busca todavia estabelecer uma continuidade entre Vaticano II e os ensinamentos do magistério anterior, quando ele afirma que o «Vaticano II contém em si a história doutrinal inteira da Igreja»[42].
Até então, todos os papas sempre ensinaram, em conformidade com a revelação divina e na dependência das próprias palavras de Cristo[43], que o exercício do magistério tem por objetivo conservar e transmitir sem alteração substancial o depósito da revelação sobrenatural. Daí decorre que o magistério tem por função pregar com autoridade, em nome de Deus, verdades que devem se manter invariáveis ao longo de todas as épocas da história, ou seja, verdades eternas.
Nesse caso, a pregação do magistério é a pregação de um magistério constante, e não é possível fazer com que ele dependa do pensamento do dia, seja ele passado, presente ou futuro, antigo ou moderno. É o que ensina o concílio Vaticano I na constituição dogmática Pastor aeternus, quando diz: «Pois o Espírito Santo não foi prometido aos sucessores de Pedro para que, por revelação sua, manifestassem uma nova doutrina, mas para que, com sua assistência, conservassem santamente e expusessem fielmente a revelação transmitida pelos Apóstolos, ou seja, o depósito da fé»[44]. E no Syllabus o papa Pio IX condenou a ideia de aggiornamento doutrinal, com a proposição seguinte: «O pontífice romano pode e deve se reconciliar e harmonizar com o progresso, com o liberalismo e com a cultura moderna»[45].
Se por outro lado, considerarmos junto com o papa Bento XVI que o exercício do magistério tem por fim não mais um ensino magistral, mas um diálogo entre fé e razão, o magistério tem por função propor a doutrina revelada em dependência do progresso do pensamento filosófico. O ato do magistério é o momento de uma história, a etapa presente de um movimento, e a Tradição deve ser concebida em uma perspectiva completamente histórica. Assim raciocina o papa Bento XVI em seu discurso de 22 de dezembro de 2005, onde ele retoma justamente as declarações maiores de João XXIII para explicar qual foi a intenção do Concílio Vaticano II. Seria necessário apresentar a verdade tendo em conta elementos essenciais do pensamento moderno e é por isso que o Concílio inaugurou uma nova etapa nas relações que devem existir entre a fé e o pensamento humano. Essas relações devem, com efeito, evoluir segundo o arbítrio da história, porque a fé deve buscar se exprimir da maneira que convém ao seu tempo.
Segundo Bento XVI, haveria aí um princípio de base claramente expressa pela revelação na Epístola de São Pedro (1Pe 3, 15). O Concílio Vaticano II representou para o pensamento moderno nascido no século XVIII o que Santo Tomás representou para o pensamento aristotélico do século XIII. A intenção desse concílio foi antes propor a verdade de fé em função do pensamento moderno e, portanto, de se conciliar com ele[46].
3.3 – Um postulado historicista
A continuidade da qual fala o papa atual deve então ser entendida como a continuidade de um mesmo movimento. Não é a continuidade de uma mesma doutrina imutável, que é transmitida e proposta pelo magistério através dos tempos, mantendo-se sempre substancialmente idêntica. É a continuidade de uma história, no decorrer da qual os homens da Igreja se esforçam para «colocar a fé em uma relação positiva com a forma de razão dominante de sua época»[47]. É por isso que, no espírito de Bento XVI, dizer que «o Vaticano II contém em si a história doutrinal inteira da Igreja» é afirmar uma continuidade, e não uma ruptura. Mas é a continuidade de uma evolução. Com efeito, isso significa que os ensinamentos do último concílio se inscrevem em seu lugar como parte de um movimento histórico, onde a Igreja tenta resolver «o problema eterno da relação entre fé e razão, que se apresenta sob formas sempre novas»[48].
Parece bem difícil colocar em acordo uma concepção similar com o ensinamento do Concílio Vaticano I, no capítulo IV da constituição dogmática Dei Filius, onde se diz que «a doutrina da fé, que Deus revelou, não foi proposta como uma descoberta filosófica a ser aperfeiçoada pelas mentes humanas, mas foi entregue à Esposa de Cristo como um depósito divino, para ser por ela fielmente guardada e infalivelmente declarada. Daí que sempre se deve manter aquele sentido dos sagrados dogmas que a santa mãe Igreja uma vez tenha declarado, e jamais, nem a título de uma inteligência mais elevada, é permitido afastar-se deste sentido. “Cresçam, pois, e multipliquem-se abundantemente, tanto em cada um como em todos, tanto no indivíduo como em toda a Igreja, segundo o progresso das idades e dos séculos, a inteligência, a ciência e a sabedoria, mas somente no gênero próprio dela, isto é, no mesmo dogma, no mesmo sentido e na mesma sentença” (São Vicente de Lérins)»[49].
Continua…
Notas:
38. Com efeito, podemos nos ater à proposta defendida por Bento XVI, durante uma entrevista dada à rede de televisão polonesa em 16 de outubro de 2005: «Falando da herança do papa num momento, esqueci de falar dos numerosos documentos que ele nos deixou – 14 encíclicas, muitas cartas pastorais e tantos outros – e tudo isso representa um patrimônio riquíssimo que não foi ainda suficientemente assimilado pela Igreja. Eu penso ter como missão essencial e pessoal não promulgar muitos novos documentos, mas fazer de alguma maneira que esses documentos sejam assimilados, porque eles constituem um tesouro riquíssimo; eles são a autêntica interpretação do Vaticano II. Nós sabemos que o papa era o homem do Concílio, que ele havia assimilado interiormente o espírito e a letra do Concílio e, por meio desses textos, ele nos faz compreender verdadeiramente o que queria e o que não queria o Concílio». (Bento XVI, «Entrevista à televisão polonesa, 16 de outubro de 2005» em DC n.º 2346 [20 de novembro de 2005], p. 1051).
39. «A finalidade principal deste Concílio não é, portanto, a discussão de um ou outro tema da doutrina fundamental da Igreja, repetindo e proclamando o ensino dos Padres e dos Teólogos antigos e modernos, que se supõe sempre bem presente e familiar ao nosso espírito. […] É necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo. […] e dever-se-á usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é prevalentemente pastoral» (João XXIII, «Discurso de Sua Santidade Papa João XXIII
na abertura solene do SS. Concílio», 11 de outubro de 1962, em AAS54 (1962), pp. 785-795). João XXIII retomará o mesmo pensamento numa alocução dirigida ao Sacro Colégio em 23 de dezembro de 1962. Ele diz: «[A doutrina da Igreja] deve ser estudada e exposta através das formas de investigação e de formulação literária do pensamento moderno, medindo tudo dentro das formas e proporções de um magistério com caráter prevalentemente pastoral» em AAS 55 (1963) 43; Discorsi-Messaggi-Colloqui del Santo Padre Giovanni XXIII, vol. V, pp. 54-57. A intenção do concílio Vaticano II, claramente explicitado por seu intérprete, o papa João XXIII, foi a de exercer um magistério pastoral, ou seja, de estudar e apresentar a doutrina católica através das formas de investigação e de formulação literária do pensamento moderno. A intenção fundamental do Concílio (poder-se-ia dizer em termos técnicos: seu objeto formal especificador) é proceder segundo um método moderno. O problema apresentado pelo Concílio é moderno; é um aggiornamento; é um concílio pastoral. Essas três expressões são equivalentes. O concílio inteiro deve ser interpretado sob essa luz para ser corretamente compreendido.
40. Pouco antes de sua eleição ao soberano pontificado, o cardeal Joseph Ratzinger explicou claramente em que consiste esse pensamento moderno, essa cultura iluminista com a qual o concílio Vaticano II quis se reconciliar: «O concílio Vaticano II, na Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo atual colocou em evidência essa correspondência profunda entre o cristianismo e o Iluminismo, tentando chegar a uma verdadeira conciliação entre a Igreja e a modernidade, que é a grande herança que devem salvaguardar ambos os lados. […] Essa cultura do Iluminismo é definida substancialmente pelos direitos da liberdade; ela parte da liberdade como valor fundamental à luz da qual tudo é medido: a liberdade de escolha religiosa, o que inclui a neutralidade religiosa por parte do Estado; a liberdade de expressão de suas opiniões, com a condição de não colocar em dúvida os próprios princípios; a organização parlamentar sobre os órgãos de Estado; a liberdade de formação de partidos; a independência da magistratura; e, enfim, a tutela dos direitos do homem e a proibição das discriminações». (Cardeal Joseph Ratzinger, «L’Europe dans la crise des cultures – Conférenceprononcée à Subiaco lors de la remise du Prix Saint-Benoît pour la promotion de la famille en Europe, levendredi 1er avril 2005» em DC Suplemento1, Cardinal Ratzinger : Discours et conférences de Vatican II à 2005, 2005, p. 121-124).
41. «Nem todas as filosofias têm o mesmo valor, mas (para retomar a bela imagem de Santo Agostinho em De doctrina christiana, livro II, capítulo 40, PL 34, n. 60, p. 63) umas são como os ídolos do Egito, que o povo de Israel devia detestar e fugir, enquanto que outras são como os utensílios e recipientes de ouro e de prata que, sob a ordem de Deus, o povo se apropriaria enquanto deixava o Egito, para fazer melhor uso deles» – Cardeal Louis Billot, Tradition et modernisme – De l’immuabletraditioncontrela nouvelle hérésie de l’évolutionnisme, Courrier de Rome, 2007, n° 230, p. 144.
42. Bento XVI, ibid., p. 230.
43. Mt 28, 19-20: «Ide, pois, ensinai todas as gentes, […] ensinando-as a observar todas as coisas que vos mandei. Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo».
44. DS 3070.
45. Proposição condenada n.º 80 em DS 2980.
46. «O passo dado pelo Concílio em direção à era moderna, que de modo tão impreciso foi apresentado como “abertura ao mundo” pertence definitivamente ao perene problema da relação entre fé e razão, que se apresenta sempre de novas formas. A situação que o Concílio devia enfrentar é comparável aos acontecimentos das épocas precedentes. São Pedro, na sua primeira Carta, tinha exortado os cristãos a estar sempre prontos a responder (apologia) a quem quer que perguntasse o logos, a razão da sua esperança (cf. 3, 15). Isto significava que a fé bíblica devia entrar em debate e em relação com a cultura grega e aprender a reconhecer mediante a interpretação a linha de distinção, mas igualmente o contato e a afinidade entre elas na única razão dada por Deus.
Quando no século XIII, através dos filósofos judeus e árabes, o pensamento aristotélico entrou em contato com a cristandade medieval formada na tradição platónica, e que fé e razão correram o risco de entrar em contradição inconciliável, foi sobretudo S. Tomás de Aquino a mediar o novo encontro entre fé e filosofia aristotélica, colocando assim a fé em uma relação positiva com a forma de razão dominante no seu tempo. O difícil debate entre a razão moderna e a fé cristã que, num primeiro momento, com o processo a Galileu, iniciou de modo negativo, certamente conheceu muitas fases, mas com o Concílio Vaticano II chegou a hora em que se requeria uma ampla reflexão. O seu conteúdo, nos textos conciliares, foi traçado seguramente em linhas gerais, mas com isto determinou a direção essencial, de modo que o diálogo entre razão e fé, hoje particularmente importante, com base no Vaticano II encontrou a sua orientação.» (Bento XVI, Discurso aos Cardeais, Arcebispos e Prelados da Cúria Romana na apresentação dos votos de Natal, 22 de dezembro de 2005) em DC n.º 2350, p. 61-62).
47. Bento XVI, ibid.
48. Id., ibid.
49. DS 3020.