Fonte: SSPX Asia – Tradução: Dominus Est
O ponto da questão
A infalível garantia de assistência divina não é limitada somente aos atos do Magistério Solene; ela estende-se ao Magistério Ordinário, embora isso não cubra e assegure todos os atos deste último da mesma maneira (Fr. Labourdette, O.P., Revue Thomiste, 1950, p. 38).
Assim, o assentimento devido ao Magistério Ordinário “pode ir do simples respeito até ao verdadeiro ato de fé”. (Mons. Guerry, La Doctrine Sociale de l’Église, Paris, Bonne Presse, 1957, p. 172). É mais importante, portanto, saber precisamente quando o Magistério Ordinário do romano pontífice está imbuído do carisma da infalibilidade.
Dado que apenas o papa possui a mesma infalibilidade conferida por Jesus Cristo à sua Igreja (i.e., o papa mais os bispos em comunhão com ele, cf. Dz. 1839), devemos concluir que apenas o papa, em seu Magistério Ordinário, é infalível no mesmo grau e sob as mesmas condições que Magistério Ordinário da Igreja é.
Então a verdade que é ensinada deve ser proposta como já definida, ou como algo que sempre foi acreditado ou aceito pela Igreja, ou atestado pela concordância unânime e constante dos teólogos como sendo uma verdade católica [que é, portanto, estritamente obrigatório a todos os fiéis (“Infaillibilité du Pape”, DTC vol. VII, col. 1705)].
Essa condição foi relembrada pelo Cardeal Felici no contexto da Humanae Vitae:
Sobre esse problema, devemos lembrar que uma verdade deve ser indubitável e determinada, e portanto pode ser obrigatória, mesmo sem a sanção de uma definição ex cathedra. Então é com a encíclica Humanae Vitae, na qual o papa, o sumo pontífice da Igreja, declara uma verdade que foi constantemente ensinada pelo Magistério da Igreja e que está de acordo com os preceitos da Revelação (L’Osservatore Romano, 19 de outubro de 1968, p. 3).
Com efeito, ninguém pode recusar a acreditar o que foi com certeza revelado por Deus. E não são apenas as coisas que foram definidas como tais que certamente foram reveladas por Deus; esta última também inclui qualquer coisa que sempre foi em todos os lugares ensinada pelo Magistério Ordinário da Igreja como sendo revelado por Deus. Mais recentemente, Mons. Bertone lembrou-nos que o Magistério Pontificial Ordinário pode ensinar uma doutrina como sendo definitiva [ênfase em negrito no original] em virtude do fato de que foi constantemente preservada e mantida pela Tradição.
Tal é o caso de Ordinatio Sacerdotalis quando reafirma a invalidade da ordenação sacerdotal feminina, que sempre foi mantida pela Igreja com “unanimidade e estabilidade” (L’Osservatore Romano, 20 de dezembro 1996).
O Cardeal Siri, ainda falando de Humanae Vitae na edição da revista Renovatio, a qual nos referimos, explica o seguinte:
A questão, portanto, deve ser colocada objetivamente: dado que [Humanae Vitae] não é um ato do Magistério Infalível, e portanto não traz consigo a garantia de ser “irreformável” e de certeza, a sua substância não seria todavia garantida pelo Magistério Ordinário sob as condições as quais o Magistério Ordinário é tido como infalível?
Após sumarizar a contínua tradição da Igreja acerca do assunto contracepção, do Didache até à encíclica Casti Connubii do Papa Pio XI, o Cardeal Siri conclui:
Esta encíclica recapitulou o antigo ensinamento e o ensinamento habitual dos dias de hoje. Isso significa que podemos dizer que as condições para se ter o Magistério Ordinário irreformável [i.e. infalível – N.E.] foram atendidas. O período de turbulência generalizada é um fato muito recente e nada tem a ver com a posse serena [do Magistério – N.E.] ao longo dos séculos (Renovatio, op. cit.).
É um erro, portanto, estender incondicionalmente a infalibilidade a todo o Magistério Ordinário do papa, esteja ele falando urbi et orbi ou apenas falando aos peregrinos. É verdade que a infalibilidade do Magistério Extraordinário não basta para a Igreja; o Magistério Extraordinário é um evento raro, enquanto que “a fé precisa da infalibilidade, e precisa todos os dias”, como disse o próprio Cardeal Siri (Renovatio, op. cit.). Mas o Cardeal Siri é um teólogo bom demais para esquecer que mesmo a infalibilidade papal tem condições atreladas a ela. Se o Magistério Ordinário quer ser infalível, ele deve ser tradicional (cf. Salaverri, loc. cit.). Se rompe com a Tradição, o Magistério Ordinário não pode reivindicar infalibilidade. Aqui vemos claramente a natureza especial do Magistério Ordinário Infalível, o qual devemos dedicar alguma atenção.
A natureza especial do Magistério Ordinário Infalível
Conforme vimos, o Cardeal Siri observa que Humanae Vitae, mesmo não sendo um ato ex cathedra do Magistério, ainda forneceria a garantia de infalibilidade, mas não “por si mesma”, mas na medida em que recapitula “o antigo ensinamento e o ensinamento habitual de hoje” (Renovatio, op. cit.). Com efeito, em contraste com o Magistério Extraordinário ou o Juízo Solene, o Magistério Ordinário
não consiste em uma proposição isolada que pronuncia irrevogavelmente algo sobre a fé e contém sua própria garantia de verdade, mas é antes uma coleção de atos que podem coincidir na comunicação de um ensinamento.
Esse é o procedimento normal pelo qual a Tradição, no pleno sentido do termo, é transmitida… (Pope or Church? op. cit. p. 10).
É precisamente por isso que o DTC fala de “ensinamento papal infalível que flui do Magistério Ordinário do papa” (loc. cit.). Assim, enquanto uma simples apresentação doutrinal feita pelo papa jamais pode reivindicar a infalibilidade de uma definição, essa infalibilidade não obstante está rigorosamente implícita quando há uma convergência sobre o mesmo assunto em uma série de documentos cuja continuidade, em si mesma, exclui toda possibilidade de dúvida acerca do conteúdo autêntico do ensinamento Romano (Dom Paul Nau, Une source doctrinale: Les encycliques, p. 75).
Se falharmos em percebermos essa diferença, estaremos destruindo toda distinção entre Magistério Ordinário e Magistério Extraordinário:
Nenhum ato do Magistério Ordinário enquanto tal, tomado isoladamente, pode reivindicar a prerrogativa que pertence à suprema judicatura. Se fosse capaz de tal, deixaria de ser Magistério Ordinário. Um ato isolado é infalível apenas se o supremo Juiz empenhar toda sua autoridade nesse ato de tal modo que ele não possa voltar atrás. Tal ato não pode ser “reversível” sem estar reconhecidamente sujeito a erro. Mas é precisamente esse tipo de ato, contra o qual não pode haver recurso, que constitui o Juízo Solene [ou Extraordinário], e que, portanto, opõe-se como tal do Magistério Ordinário (ibid., nota 1).
Segue-se que a infalibilidade do Magistério Ordinário, seja da Igreja Universal ou da Sé Romana, não é de um juízo, não de um ato considerado isoladamente, como se pudesse em si mesmo dar toda a luz necessária para deixar tudo às claras. Mas antes, essa infalibilidade é a garantia concedida a uma doutrina que converge simultânea ou continuamente de uma pluralidade de afirmações ou explicações em que nenhuma delas poderia trazer certeza positiva se fosse tomada de maneira isolada. A certeza pode ser esperada apenas do todo complexo, mas todas as partes convergem na construção desse todo (Pope or Church? op. cit., p. 18).
Dom Paul Nau explica mais:
No caso do Magistério [Ordinário] universal, esse todo complexo é o do ensinamento concordante dos bispos em comunhão com Roma; no caso do Magistério Ordinário pontificial [i.e. o papa sozinho – N.E.], é a continuidade do ensinamento dos sucessores de Pedro: em outras palavras, é a “Tradição da Igreja de Roma” à qual Mons. Gasser recorreu no Vaticano I (Collana Lacensis, col. 404).
Acerca desse assunto, A. C. Martimort escreveu:
O erro de Bossuet consistiu na rejeição da infalibilidade do Magistério Extraordinário do papa; mas ele desempenhou o importante serviço de afirmar mais claramente a infalibilidade do Magistério Ordinário [do papa] e sua natureza específica, que significa que todo ato particular padece do risco de erro… Além disso, segundo o bispo de Meaux, o que aplica à série de romanos pontífices ao longo do tempo, aplica-se também ao colégio episcopal disperso pelo mundo (Le Gallicanisme de Bossuet, Paris, 1953, p. 558).
Com efeito, sabemos que, individualmente, os bispos não são infalíveis. Todavia, a totalidade dos bispos, ao longo do tempo e espaço, em sua totalidade moral, gozam de infalibilidade. Então, se alguém quiser determinar o ensinamento infalível da Igreja, esse alguém não deverá tomar isoladamente os ensinamentos de um bispo tomado isoladamente: é necessário buscar o “ensinamento comum e contínuo” do episcopado unido ao papa, que “não pode desviar do ensinamento de Jesus Cristo” (E. Piacentini, O.F.M. Conv., Infaillible même dans les causes de canonisation? ENMI, Roma, 1994, p. 37).
O mesmo se aplica ao Magistério Ordinário Infalível do romano pontífice por conta própria: esse Magistério Ordinário é infalível não por causa de cada ato proferido pelo papa, mas porque o ensinamento particular do papa está consistentemente “inserido em uma totalidade e uma continuidade” (Dom Paul Nau, Les encycliques, op. cit.), que é aquela da “série de romanos pontífices ao longo dos tempos” (Martimort, op. cit.).
Podemos entender porque, em seu Magistério Ordinário, os papas sempre tiveram o cuidado de se associarem aos seus “veneráveis predecessores”, frequentemente citando-os em detalhes. “A Igreja fala por Nossa boca”, disse o Papa Pio XI na Casti Connubii. O Papa Pio XII em Humani Generis enfatizou que “na maioria das vezes, o que é proposto e inculcado nas encíclicas, já por outras razões pertence ao patrimônio da doutrina católica”.
A própria natureza particular do Magistério Ordinário Infalível do papa estava assaz clara até o Vaticano I. Quando o Concílio estava em sessão, La Cività Cattolica, que publicou (e ainda publica) sob controle direto da Santa Sé, respondeu as seguintes palavras ao Pe. Gratry, que criticou a Bula Cum ex Apostolus do Papa Paulo IV:
Perguntamos ao Pe. Gatry, com toda serenidade, se ele acredita que a Bula de Paulo IV é um ato isolado, por assim dizer, ou um ato que é comparável a outros do mesmo tipo na série de romanos pontífices. Se ele responder que é um ato isolado, seu argumento não prova nada, pois ele mesmo afirma que a Bula de Paulo IV não contém definição dogmática. Se ele responder, como deve fazê-lo, que essa Bula é substancialmente conformável a incontáveis outros atos similares da Santa Sé, seu argumento diz muito mais do que ele desejaria. Em outras palavras, ele está dizendo que uma longa sucessão de romanos pontífices realizaram atos solenes e públicos de imoralidade e injustiça contra os princípios da razão humana, de impiedade para com Deus e de apostasia contra o Evangelho (vol. X, série VII, 1870, p. 54).
Isso significa efetivamente que um “ato isolado” do papa é infalível apenas no contexto de uma “definição dogmática”; fora das definições dogmáticas, i.e., no Magistério Ordinário, a infalibilidade é garantida pelo complexo de “incontáveis outros atos similares da Santa Sé” ou de uma “longa sucessão” de sucessores de Pedro.
Aplicação prática
Por ter se declarado não-dogmático, o carisma da infalibilidade não pode ser reivindicado pelo último Concílio, exceto na medida em que reiterava o ensinamento tradicional. Ademais, o que é oferecido como Magistério Ordinário Pontificial dos papas recentes – além de certos atos – não pode reivindicar a qualificação de “Magistério Ordinário Infalível”. Os documentos pontifícios acerca das novidades que confundiram as consciências dos fiéis não mostram qualquer preocupação em aderir ao ensinamento de seus “veneráveis predecessores”. Esses documentos não podem aderir a eles porque romperam com eles. Veja as notas de rodapé de Dominus Jesus; é como se o Magistério dos papas antecessores não existisse. Está claro que quando os papas atuais contradizem o Magistério dos papas de ontem, nossa obediência é devida aos papas de ontem: este é um claro sinal de um período de uma grave crise eclesiástica, de tempos anormais na vida da Igreja.
Finalmente, é evidente que a Nova Teologia, que é tão inescrupulosa em contradizer o ensino tradicional dos Romanos Pontífices, contradiz o Magistério Pontificial Infalível; por conseguinte, um católico deve opor-se com toda sua consciência à Nova Teologia e atacá-la ativamente.
O Eclipse quase total do Magistério “Autêntico”
A atual crise da Igreja não está no nível do Magistério Extraordinário ou do Ordinário Infalível. Isso seria simplesmente impossível. Ademais, não está no nível do Magistério Extraordinário Infalível porque o Concílio não desejou ser dogmático, e porque o próprio Paulo VI apontou qual “teor” teológico o Concílio carregava: “Magistério Ordinário; ou seja, é claramente autêntico” (Audiência geral de 1 de dezembro de 1966: Encycliques et discours de Paul VI, Ed. Paoline, 1966, pp. 51, 52). Por fim, não está no nível do Magistério Ordinário Infalível. O turbilhão e a divisão no mundo católico foram provocados por um rompimento com sua continuidade doutrinal. Tal rompimento é o extremo oposto do Magistério Ordinário Infalível. Assim, a Humanae Vitae de Paulo VI ou a intervenção de João Paulo II contra a ordenação feminina em Ordinatio Sacerdotalis não causou consternação nos filhos obedientes da Igreja.
A atual crise está no nível daquele que é apresentado como simplesmente Magistério “autêntico” que, conforme o Cardeal Siri nos lembra, “não implica por si só infalibilidade” (Renovatio, op. cit.). Mas estamos realmente lidando com o Magistério “autêntico”?
Romano Amerio, autor de Iota Unum, escreveu:
Nos dias de hoje, não é mais o caso de dizer que toda palavra do papa constitua o Magistério. Hoje, muito frequentemente, não é mais que a expressão da sua visão pessoal, ideias e considerações que se encontram disseminadas por toda a Igreja,… e de doutrinas que foram espalhadas e se tornaram dominantes em muitas teologias (“Église et Contre-Église au Concile Vatican II”, Segundo Congresso Teológico de SISINONO, Jan. 1996).
O Magistério, todavia, mesmo em sua forma não-infalível, deve sempre ser o ensinamento da Palavra divina, mesmo se proferido com menor grau de certeza. Atualmente, é muito frequente acontecer de “o papa não manifestar a palavra divina confiada a ele”, mas antes “exprimir suas opiniões pessoais” que são as mesmas da Nova Teologia. Aqui estamos diante de uma “manifestação da decadência do Magistério Ordinário [‘autêntico’] da Igreja”, uma decadência que “está criando uma gravíssima crise na Igreja, pois é o centro da Igreja que está sofrendo-a” (ibid.).
Pode-se realmente falar do Magistério Pontificial “autêntico” ou seria mais preciso falar de um eclipse quase total do Magistério Pontificial Autêntico perante uma crise análoga no nível do Magistério episcopal?