UM ATO BOM

Gustavo Corção - Edições Cristo Rei – Edição e Publicação de Obras Católicas

Gustavo Corção

Se nós tivéssemos de discutir com o Senhor a salvação de nossa cidade, como se vê no capítulo dezoito do Gênese que Abraão o fez para a defesa de Sodoma, deveríamos deter o regateio da misericórdia na condicional existência de uns quinhentos justos. Se Sodoma precisava de dez, nossa gloriosa e populosa cidade precisará cinquenta vezes mais. Digamos quinhentos.

Tomando o termo no sentido sobrenatural, como convém às passagens da Sagrada Escritura, e procurando-os entre os pobres, os oprimidos, as criadas de servir, os religiosos, os simples, facilmente apresentaríamos a Deus, creio eu, os quinhentos ou mais justos que obscuramente, na invisível comunhão, afastam de nós o fogo dos céus. Mas se transpusermos o problema da ordem sagrada para a profana, e se quisermos achar quinhentos homens de bem entre os que visível e oficialmente respondem pelas vigas das instituições e pelo arcabouço temporal da República, então veremos, com profunda apreensão, que nem a décima parte conseguiríamos reunir. Homens bons, graças a Deus, conheço muitos; mas homens públicos honestos, creio que não conheço cinquenta. Conhecerei quarenta? Trinta? Vinte? Ah! Se tivesse a certeza de poder contar dez!

Antes de continuar devo definir o que entendo por honesto e o que entendo por homem público honesto. O termo honesto, no tempo de Cícero, tinha uma austera significação que se estendia por toda a ordem moral. “Ita fit, ut, quod bonum sit, id etiam honestum sit”. Das letras clássicas o termo ingressou no vocabulário da filosofia escolástica para significar aquilo que é moralmente bom e que se distingue do bom deleitoso e do útil. Com o advento da moral burguesa, que sabidamente é uma regra de exterioridades, o termo entrou na linguagem comum com uma significação diferente. Ou melhor, com duas significações. Para homens: honesto é o que não tira o dinheiro do bolso do outro diretamente com a mão; e o que não se descuida de pagar suas contas em dia certo. Para Senhoras: honesta é a excelentíssima senhora que não dorme com homem que não seja o seu marido. Note, porém, o leitor, que o homem, nessa nova acepção do termo, pode dormir com uma senhora, que não seja exatamente aquela a que o ligaram os doces laços do himeneu, sem deixar de ser honesto. E a senhora pode enganar a cozinheira na conta dos dias, sem se tornar desonesta.

Com tal definição, que aliás, ao que parece, já é considerada rigorosa demais, poderíamos congregar algumas dúzias de justos. Mas voltemos à significação clássica, e procuremos o que quer dizer dirigente honesto, homem público honesto, nesse esquecido vocabulário. A função pública se define pela promoção do bem-comum. A obrigação moral do homem com cargo público se orienta por esse critério, e sua honestidade consistirá em jamais antepor seu interesse ao interesse público no exercício da função. Para ser honesto, dentro desta definição, não basta não roubar nem deixar que outros roubem: é preciso também não empregar os filhos recém-diplomados em lugares excelentes e com vencimentos de veterano; é preciso não transformar o poder em prestígio; é preciso que o cargo seja cargo e não carga para os outros; é preciso espírito de sacrifício, desapego, e fervor na defesa do interesse público. Tudo isto, aliás, costuma ser dito nos discursos de posse e nas inaugurações. Só não costuma aparecer no lugar próprio, isto é, nos atos dos homens públicos.

Pondere agora o leitor, e conte pelos dedos os homens honestos que conhece. Verá que são poucos, muito poucos. Mas não desanimemos. Nem imaginemos que as coisas do Brasil só andarão razoavelmente quando todos os titulados forem homens de grande estatura. A história dos dez justos de Sodoma aplica-se bem à ordem temporal, à política, para ensinar que sempre serão poucos os defensores e fiadores de muitos. A famosa frase de Churchill, relativa à defesa de Londres pelos aviadores da RAF, tem a mesma significação. Apenas, onde ele diz nunca eu diria sempre. Sempre será assim: muitos devendo muito a muito poucos. A excelência é rara, a bondade é difícil, mas em compensação é difusiva. Custa a aparecer, mas quando aparece tem força de cristalizar, de polarizar, e de melhorar milhares de pessoas menores, mais pusilânimes, que só precisavam de um exemplo, de um impulso, para produzirem atos bons. Há sem dúvida muita maldade no mundo, como se vê agora em Alagoas, onde parece que o demônio firmou residência; mas o que mais há no mundo é mediocridade, tolhimento, pequenez, burrice, chatice. No amago do mais encolhido coração sempre haverá, entretanto, uma nostalgia de bondade e até um secreto desejo de heroísmo. E por isso, basta aparecer um homem bom para que os homens melhorem, basta aparecer um ato honesto, uma explosão de generosidade, para que todos tenham ao menos um pequeno movimento voltado para o bem de todos. O mal é contagioso, mas o bem é difusivo e explosivo.

(O Globo, 17/02/57)