UM LIBERALISMO SUICIDA – AS REFORMAS PÓS-CONCILIARES

Resultado de imagem para marcel lefebvreOs espíritos leais e um mínimo perspicazes, falam de “crise da Igreja”, para assinalar a época pós-conciliar. Antigamente se falou  da “crise ariana”, da “crise protestante”, mas nunca na “crise da Igreja”… Mas infelizmente nem todos concordam com as causas desta tragédia. O Cardeal Ratzinger por exemplo, vê bem a crise, mas desculpa totalmente o Concílio e as reformas pós-conciliares. Começa por reconhecer a crise:

“Os resultados que vieram depois do Concílio parecem cruelmente opostos ao que todos esperavam, começando pelo Papa João XXIII e depois Paulo VI (…). Os papas e os Padres conciliares esperavam uma nova unidade católica, e pelo contrário chegou-se a uma dissensão que, como disse Paulo  VI, parece haver passado da autocrítica à autodestruição. Esperava-se um novo entusiasmo e ao contrário, freqüentemente se chegou ao tédio e ao desalento. Esperava-se um salto à frente e pelo contrário surgiu um processo evolutivo de decadência”248.

Eis a explicação para a crise, dada pelo Cardeal:

“Estou convencido que os estragos que sofremos nestes vinte anos, não se devem ao ‘verdadeiro’ concílio mas ao desencadeamento de forças latentes agressivas e centrífugas no interior da Igreja; e no exterior, devido ao impacto de uma revolução cultural no ocidente, a afirmação de uma classe média superior, a ‘burguesia’ com sua ideologia liberal radical do tipo individualista, racionalista, hedionda”249.

Mais adiante o Cardeal Ratzinger diz o que lhe parece a verdadeira causa “interior” da crise: um anti-espírito do Concílio:

“Já durante as sessões e cada vez mais durante o período seguinte, se opôs um pretendido ‘anti-espírito’. Segundo este pernicioso ‘Konzils-Ungeist’, tudo o que é novo (ou  presumido como tal: quantas antigas heresias têm sido apresentadas durante muitos anos, como novidades) seria sempre melhor do que existe ou do que existiu, qualquer coisa que seja. Este é o anti-espírito, segundo o qual a história da Igreja deveria começar a partir do Vaticano II, considerado como uma espécie de ponto zero”250.

Então o Cardeal propõe uma solução: voltar ao “verdadeiro Concílio”, considerando-o não “como um ponto de partida do qual se afaste correndo, mas uma base sobre a qual é necessário construir solidamente”.

Quero admitir considerar as causas exteriores da crise da Igreja, particularmente uma mentalidade liberal que gosta dos prazeres, quese estendeu pela sociedade, inclusive a cristã. Mas justamente o que fez o Vaticano II para se lhe opor? Nada! Ou melhor, o Vaticano II impulsionou neste sentido! Usarei uma comparação: o que pensariam se ante uma maré ameaçadora, o governo holandês decidisse abrir os diques para evitar o choque das águas? E depois se desculpasse da inundação total do país: “não tivemos culpa, foi a maré”. É exatamente o que fez o Concílio: abriu todas as comportas tradicionais ao espírito do mundo, declarando a “abertura ao mundo”, por uma liberdade religiosa, por uma constituição pastoral, “A Igreja no mundo atual” (Gaudium et Spes), que são o espírito mesmo do Concílio, e não o anti-espírito!

Quanto ao anti-espírito, admito sua existência no Concílio e depois do Concílio, com as opiniões completamente revolucionárias dos Kung, Boff, etc. que deixaram bem para trás os Ratzinger, Congar, etc. Concordo que este anti-espírito tenha gangrenado completamente os seminários e universidades, e ali um Ratzinger universitário e teólogo vêm bem os estragos, é seu domínio.

Mas afirmo duas coisas: o que o Cardeal Ratzinger chama de “anti- espírito do Concílio” não é mais do que o resultado final de teorias de teólogos que goram de grande influência no Concílio. Entre o espírito do Vaticano II e o chamado anti-espírito não há mais do que uma pequena diferença, e me parece fatal que o anti-espírito haja influído sobre o espírito mesmo do Concílio. Por outro lado é o espírito do Concílio, este espírito liberal que já temos analisado amplamente251, que é a raiz de quase todos os textos conciliares ed  e todas as reformas que se seguiram, que deve ser colocado no banco dos acusados.

Dito de outro modo, “acudo o Concílio” é a resposta necessária ao “escuso o Concílio” do Cardeal Ratzinger! Explico-me: sustento e vou provar que a crise da Igreja se reduz essencialmente às reformas pós-conciliares que emanam das autoridades oficiais mais importantes da Igreja e nas aplicações das doutrinas e diretivas do Vaticano II.

Então nada de marginal nem subterrâneo nas causas essenciais do desastre pós-conciliar! Não esqueçamos que são os mesmos homens e principalmente o mesmo papa Paulo VI que fizeram o Concílio e logo depois aplicaram-no metódica e oficialmente, usando sua autoridade hierárquica. Assim, o novo missal de Paulo VI foi “ex decreto sacrosanti oecumenici concilii Vaticani II instauratum, autoritate Pauli P.P. VI promulgatum”.

Seria um erro dizer: “Mas as reformas não começaram no Concílio”. Sem dúvida, sobre certos pontos as reformas ultrapassaram o texto do Concílio; por exemplo o Concílio não havia pedido a supressão  do latim na liturgia, pediu somente a introdução da língua vulgar, mas como já lhes disse, a intenção daqueles que abriram esta pequena porta era chegar à mudança radical. Mas em definitivo, basta verificar que todas as reformas se referem oficialmente ao Vaticano II: não somente as reformas da missa e dos sacramentos, mas também a das congregações religiosas, seminários, assembléias episcopais, a criação do Sínodo Romano, a reforma das relações entre a Igreja e o Estado, etc.

Limitar-me-ei a três desta reformas: a supressão do Santo Ofício, a política abertamente pró-comunista do Vaticano II e a nova Concordata entre a Santa Sé e a Itália. Qual terá sido o espírito  destas reformas? 

A Supressão do Santo Ofício 

Não sou eu quem inventou, eu mesmo fiz a pergunta ao Cardeal Browne, que durante muito tempo fez parte do Santo Ofício: “A troca do Santo Ofício pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, é uma troca acidental, superficial, uma simples troca de nome ou uma troca profunda e radical?” O Cardeal me respondeu: “uma troca essencial, é evidente”. Realmente o tribunal da fé foi substituído por um escritório de pesquisa teológica. Podem dizer o que quiserem, mas esta é a realidade. Por exemplo, as duas instruções sobre a teologia da libertação, longe de chegar a uma condenação clara desta “teologia” e de seus autores, tiveram como resultado claríssimo encorajá-los! Porque? Tudo porque este tribunal se tornou essencialmente um escritório de pesquisa. É um espírito completamente diferente, um espírito maçônico: não há verdade definitiva, sempre se está em procura da verdade. A comissão de teólogos de todo o mundo se perde em discussões e só consegue escrever textos intermináveis, cuja confusão espelha a incoerência  de seus autores.

Praticamente não se condena mais nada, já não se apostam as doutrinas reprovadas, não se marcam os hereges com o ferro em brasa da infâmia. Não. Pedem-lhes que se calem por um ano, e se declara: “Este ensinamento não é digno de uma cátedra de teologia católica”, e é tudo. Praticamente, a supressão do Santo Ofício estácaracterizada, como eu escrevi a João Paulo II252, pela livre difusão dos erros. O rebanho das ovelhas de Nosso Senhor Jesus Cristo, foi entregue sem defesa aos lobos devoradores. 

A Política Pró-Comunista da Santa Sé 

A “Ostpolitik”, ou política de mão estendida para o Leste, desgraçadamente não começou no Concílio. Já nos pontificados de Pio XI e de Pio XII haviam sido estabelecidos contatos, com conhecimento destes papas, que terminaram em catástrofes limitadas253. Mas a partir do Concílio, assiste-se a verdadeiros pactos; já vimos como os russos compraram o silêncio do Concílio sobre o ecumenismo (cap. XXIX).

Depois do Vaticano II, os acordos de Helsinki foram patrocinados pelo Vaticano: o primeiro e o último discursos foram pronunciados por Mons. Casaroli, sagrado arcebispo para a ocasião. A Santa Sé manifestou logo hostilidade a todos os governos anti-comunistas. No Chile a Santa Sé sustentou a revolução comunista de Allende254 de 1970 a 1972. O Vaticano age assim por meio de suas nunciaturas com a nomeação de cardeais como Tarancon (Espanha), Ribeiro (Portugal), Silva Henriquez (Chile), de acordo com a política pró- comunista da Santa Sé. A influência de tais cardeais é    considerávelnestes países católicos! Sua influências são determinantes sobre as conferências episcopais, na nomeação de bispos revolucionários que também são, na maioria, favoráveis à política da Santa Sé e em oposição ao governo. O que pode fazer um governo católico contra a maioria do episcopado que trabalha contra ele? É uma situação horrorosa! Assistimos a uma incrível subversão de forças: a Igreja se transforma na principal força revolucionária nos países católicos. 

A Nova Concordata com a Itália

Em virtude dos princípios do Vaticano II, a política liberal da Santa Sé procura a supressão dos Estados ainda católicos. É o que foi feito pelo nova concordata entre a Santa Sé e a Itália. Amadurecido durante doze anos de discussão, o que não é pequena coisa, este  texto foi adotado pelo Senado italiano, como noticiaram os jornais  de 7 de dezembro de 1978, logo após haver sido aprovado pela comissão designada pelo Estado italiano, como também pela comissão do Vaticano. Em vez de analisarmos este fato, citarei a declaração do presidente Andreotti feita neste dia, para apresentar o documento:

“… Eis uma disposição de princípios. O novo texto do artigo primeiro estabelece solenemente que o Estado e a Igreja Católica são, cada um em sua própria organização, independentes e soberanos”.

Isto é falso: “soberanos” sim é verdade, é o que ensina Leão XIII em “Immortale Dei”255; mas “independentes” não! “É necessário, diz Leão XIII, que haja entre os dois poderes um sistema de relações bem ordenadas, não sem analogia com aquilo que no homem constitui a união da alma com o corpo”. Leão XIII diz “união”, não diz “independência”! Releiam o capítulo em que tratamos das relações entre a Igreja e o Estado256. Eis a continuação do texto do discurso do presidente italiano:

“Em princípio é o abandono concluído de comum acordo, do conceito do Estado confessional, de acordo  com Constituição257 e em harmonia com as conclusões do Concílio Vaticano II”258.

Portanto já não pode existir um Estado católico, um Estado confessional, quer dizer que professe a religião, que professe a verdadeira religião! Decidiu-se por princípio, com a aplicação do Vaticano II. E como conseqüência deste princípio, a legislação do matrimônio está desorganizada e igualmente o ensino religioso259. Tudo isto está cheio de elementos capazes de fazer desaparecer o ensino religioso. E quanto aos bens eclesiásticos, foram feitos acordos prévios entre o Estado e as religiões metodistas, calvinistas  e hebraica; todas estão em pé de igualdade. Quero dar ênfase ao fato de que a vontade de suprimir todas as instituições católicas da vida civil é uma vontade de princípio. Ela se afirma quer pela boca do presidente italiano, do Cardeal Casaroli, de João Paulo II ou dos teólogos como Ratzinger e no texto da declaração conciliar sobre liberdade religiosa: que não deve haver “baluartes” católicos. É uma resolução de princípios, ou seja, que não deve existir Estado católico.

Outra coisa seria dizer: “nós concordamos em aceitar a separação da Igreja e do Estado porque a situação em nosso país mudou completamente pela malícia dos homens, a nação não tem mais maioria católica, etc. Estamos pois dispostos a fazer uma reforma  nas relações entre a Igreja e o Estado em vista dos fatos, mas não estamos de acordo com o princípio da laicização do Estado e das instituições públicas”. Nos países em que a situação mudou realmente, seria perfeitamente legítimo dizer isto.

Mas dizer que em nossa época, em todos os países o regime de união entre a Igreja e as instituições civis está superado, é absolutamente falso. Em primeiro lugar porque nenhum princípio da doutrina cristã jamais pode ser “superado”, inclusive sem sua aplicação deve levar em conta as circunstâncias; na verdade, o regime de união é um princípio da doutrina católica, tão imutável quanto ela mesma260. Durante e depois do Concílio, ainda havia Estados inteiramente católicos (Espanha, Colômbia, Valais suíço), ou quase (Itália, etc.) cuja laicização era totalmente injustificada. Tomando um exemplo, o Cardeal Ratzinger diz exatamente o contrário em seu livro “Les Príncipes de la Théologie Catholique”261:

“Já ninguém contesta mais hoje que as concordatas com a Espanha e a Itália procuravam conservar muitas coisas de uma concepção do mundo que há muito tempo não correspondiam mais às circunstâncias reais.

Do mesmo modo quase ninguém pode negar que este apego a uma concepção ultrapassada das relações entre a Igreja e o Estado corresponde a anacronismos semelhantes no domínio  da educação.

Nem os abraços nem o ghetto podem resolver, de maneira duradoura para o cristianismo, os problemas do mundo moderno. ‘O desmantelamento dos baluartes’ que Urs Von Balthazar reclamava em 1952, era verdadeiramente um dever urgente.

Foi necessário à Igreja separar-se de muitas coisas que até então lhe davam segurança e lhe pertenciam quase que por natureza. Foi necessário abater velhos baluartes e confiar somente na proteção da fé”.

Como se pode comprovar, são as mesmas trivialidades liberais que temos assinalado nos escritos de John Coutney Murray e de Yves Congar262: a doutrina da Igreja sobre a matéria, está reduzida a   uma“concepção do mundo” ligada a uma época caduca e a evolução da mentalidade para a apostasia é afirmada como algo indiferente, irresistível e generalizada. Finalmente Joseph Ratzinger não tem, por sua vez, mais do que desprezo e indiferença pelo Estado católico e  as instituições daí resultantes, na defesa que elas constituem para a fé.

Somente uma dúvida se apresenta: são ainda católicos, considerando-se que para eles Reino Social de Nosso Senhor Jesus Cristo é uma concepção ultrapassada? E uma segunda pergunta lhes farei: será que me engano ao dizer que a sociedade cristã e católica,  e portanto a Igreja, morre não tanto pelos ataques dos comunistas e dos maçons mas pela traição dos católicos liberais, que tendo feito o Concílio, realizaram depois as reformas pós-conciliares?

Admitam então comigo e com os fatos: atualmente o liberalismo conciliar conduz a Igreja para a sepultura. Os comunistas são clarividentes como mostra o seguinte: em um museu da Lituânia, consagrado em parte à propaganda atéia, há uma grande fotografia  da “troca de instrumentos” por ocasião da assinatura da nova concordata com a Itália. Nela aparecem o presidente da Itália e o Cardeal Casaroli, tendo este comentário: “A nova concordata entre a Itália e o Vaticano, grande vitória do ateísmo”. Qualquer comentário me parece supérfluo.

Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre

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248 Entrevista sobre a fé, Fayard, Paris 1985, págs. 30-31.

249 Op. cit. págs. 31-32.

250 Op. cit. págs. 36-37.

251 Cap. XXV

252 Carta aberta de D. Lefebvre e de D. Antônio de Castro Mayer a João Paulo II, em 21 de novembro de 1983.

253 Cf. Frère Michel de la Trinité, “Toute la Verité sur Fátima. T-II “Le Secret et l’Eglise, págs. 353-378; T.III “Le Troisieme Secret, págs. 237-244. G. De Nantes, editor.

254 Cf. Leon de Poncins, “Christianisme et Franc-Maçonnerie”, 2ª edição, DPF. 1975, pág. 208 e seguintes

255 Cf. cap. XIII (PIN. 136: “Les deux Puissances”).

256 Cap. XIII e XIV.

257 Nova Constituição Italiana, que aboliu seu primeiro capítulo que reconhecia o catolicismo como a religião do Estado.

258 O presidente se refere à declaração sobre a liberdade religiosa.

259 Com a nova concordata, é o Estado que propõe os professores de ensino religioso para a aprovação da Igreja. Inversão dos papéis! E mais ainda, se os professores de escola primária se recusam a ensinar religião, não podem ser obrigados, tendo em vista a liberdade de consciência.

261 Téqui, Paris 1985, págs. 427-437.

262 Confrontar capítulo XIX.